quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Cora Rónai – Do baixo clero a baixa presidência

O Globo

O país parece destinado a passar vergonha, seja em restaurante estrelado em Paris, seja em calçada de Nova York

Bolsonaro não existe mais. Depois da tentativa de golpe do dia 7 de setembro, quando ficou claro que o Brasil consegue funcionar a despeito do que ele, as milícias e os caminhoneiros propõem, deixou de ter qualquer importância. Vai continuar esbravejando e causando, vai continuar fabricando Medidas Provisórias e PLs cheios de más intenções, mas o seu show acabou. Morreu. Se vai ser enterrado nas urnas ou antes disso só importa porque há muito a reconstruir no Brasil, e cada dia perdido é mais um prejuízo.

Bolsonaro juntou o que tinha e o que não tinha para a sua cartada golpista. Ao longo dia 7, mas sobretudo na noite tenebrosa do dia 6, o bolsonarismo veio com tudo. Felizmente havia adultos em Brasília, e eles tomaram providências. O tudo se fez nada muito rápido porque era nada desde o começo: onde o Messias se via como um leão rugindo, foi fácil perceber o pato, manco das duas patas.

A carta de Temer afastou o impeachment da fervura para o banho-maria, mas cortou as asas do pato e reduziu-o à sua devida dimensão.

Agora, a viagem a Nova York deixou ainda mais clara a sua irrelevância.

Não há político que já não tenha tentado passar a impressão de ser um sujeito humilde comendo na rua, mas até aqui não se tinha notícia de político comendo na rua por não cumprir normas sanitárias universais.

Bolsonaro não entende a liturgia do cargo, não compreende o que significa ser presidente.

Poderia comer até debaixo da ponte se estivesse com os papéis em dia, mas quando optou por se dizer não-vacinado se pôs no lugar do pária, aquele que ninguém quer por perto. A sua foto comendo pizza em pé na calçada, cercado de basculhos, vai entrar para a História como um dos pontos mais baixos da iconografia brasileira, páreo duro para a clássica farra dos guardanapos.

O país parece destinado a passar vergonha, seja em restaurante estrelado em Paris, seja em calçada de Nova York.

Como já era esperado, o discurso do presidente não fez o menor sentido, mas também não fez (ou faz) qualquer diferença. Não quer dizer nada.

Tanto faz o que ele diga ou o que deixe de dizer.

Discordo de quem acha que perdeu uma oportunidade de ouro para discutir grandes questões. Não se perde o que não se tem.

Bolsonaro não só não sabe separar os problemas do mundo das picuinhas domésticas, como já deixou de ser levado a sério como interlocutor no cenário internacional há bastante tempo. Ninguém mais presta atenção às suas palavras.

A única coisa que lhe restava a fazer era mesmo o que fez: usar o discurso de abertura da ONU como palanque para se dirigir aos seus fiéis, os únicos que ainda lhe dão ouvidos.

Nós jornalistas estamos falando e escrevendo sobre esse discurso desde terça-feira, mas estamos perdendo tempo. Um ex-deputado que passou 30 anos embromando, mas que, numa pandemia, acredita que entende mais de imunologia do que os melhores imunologistas, não é caso de análise política, é caso de hospício.

O mundo já percebeu isso, e aponta para o Brasil como uma piada que deu errado.

 

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