quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Cristiano Romero - O quão frágil é a nossa democracia?

Valor Econômico

Ainda faltam duas condições para abertura de impeachment

Quando o chefe do Poder Executivo ameaça não cumprir decisões judiciais e nada o constrange, há algo de muito errado na institucionalidade da República brasileira. Afinal, quem deve proteger a sociedade de ameaças ao Estado democrático direito?

Na data em que se comemorou o 199º aniversário da independência deste país, o presidente Jair Bolsonaro, eleito pelo voto popular, por meio de urnas eletrônicas, processo que permite aos brasileiros saberem quem ganhou a disputa em menos de três horas, algo que não ocorre nem na maior democracia do planeta _ a dos Estados Unidos, pátria da Microsoft e de outras gigantes do mercado de softwares _, ameaçou descumprir a Constituição, a lei máxima do país promulgada em 1988.

Ao anunciar que não cumprirá eventuais decisões tomadas pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que recado deu Bolsonaro aos milhões de brasileiros que, de forma legítima, lhe conferiram mandato para assumir a presidência da República, e também aos milhões que não votaram nele, mas aceitaram o resultado da eleição porque, numa democracia, é assim que as coisas funcionam? É preciso desenhar ou o distinto público entendeu que o temido golpe já começou a ser instaurado?

O que é golpe num Estado democrático de direito, senão, o desrespeito ao “império das leis”, que devem valer para todos. Ninguém, muito menos o presidente da República, está acima das leis. Golpe também ocorre quando um poder da República ameaça o funcionamento de outro poder, quando grupos da sociedade se organizam para, por meio da força, interromper o processo institucional, impedir que uma eleição ocorra.

É por isso que, em 1964, não houve "revolução, mas, sim, um golpe militar, afinal, o que se fez foi interromper a ordem constitucional instituída. As Forças Armadas, detentoras do monopólio da violência, a serviço de setores políticos, derrubaram o presidente eleito.

Jair Bolsonaro, ao ameaçar descumprir decisões da instância máxima do Poder Judiciário, se predispõe a cometer crime de responsabilidade. O artigo 85 da Constituição é cristalino como as águas dos arrecifes da praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca (PE), ao tipificar os crimes de responsabilidade:

"São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I _ a existência da União;

II _ o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III _ o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV _ a segurança interna do país;

V _ a probidade na administração;

VI _ a lei orçamentária;

VII _ o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

A Constituição de 1988, na verdade, consagrou ipsis literis princípios inscritos no artigo IV da Lei 1.079, de 1950. Só excluiu um inciso, o que dizia que é crime de responsabilidade de um presidente da República atentar contra "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos” _ uma forma edulcorada, daquele tempo, de dizer “roubar o erário público”.

A Constituição Federal estabelece que o presidente da República será processado e julgado por crimes de responsabilidade perante o Senado, após admitida acusação feita pela Câmara dos Deputados. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, admitida a acusação pela Câmara, não cabe ao Senado emitir novo juízo. A decisão da Câmara, portanto, vincula e obriga o Senado a proceder ao julgamento do crime de responsabilidade.

Trata-se de uma enorme e grave distorção do Estado de direito democrático brasileiro o fato de o presidente da Câmara dos Deputados deter o poder monocrático de decidir se um processo de impeachment contra o presidente da República deva ser tirado do escaninho. É evidente que isso confere um poder desproporcional a apenas um ator da Praça dos Três Poderes. Por outro lado, não se deve esperar que, diante de tamanha responsabilidade, presidentes da Câmara usem esse poder de maneira discricionária. Isto simplesmente não acontece.

Todo presidente é alvo de dezenas de pedidos de impeachment. Isso faz parte até do folclore político nacional, qual seja: grupos derrotados nas urnas entram com pedidos de afastamento do presidente eleito no primeiro dia de seu mandato, assim, tivemos o “Fora Collor”, o “Fora FHC”, o “Fora Lula”, o “Fora Dilma”, o “Fora Bolsonaro”.

Não foi por causa dessas iniciativas que dois, dos cinco presidentes eleitos desde a redemocratização, sofreram impeachment. Este é um processo político que, para sair da gaveta do presidente da Câmara, precisa atender a três condições: uma de caráter jurídico, isto é, o desrespeito às leis; apoio político; e o “clamor das ruas”.

Analisemos friamente o caso Bolsonaro:

Condição jurídica: as promessas de descumprimento das leis criam, antes mesmo de os fatos virem a ocorrer, materialidade que justifique abertura de processo por crime de responsabilidade; isto, sem falar, que há quatro inquéritos contra o presidente tramitando no Supremo Tribunal Federal.

Condição política: Bolsonaro, por mais isolado que esteja e cada vez menos popular nas pesquisas de opinião, ainda tem ao seu lado o principal agrupamento político-partidário do país neste momento _ o Centrão;

O “clamor” das ruas: o bolsonarismo fez todos crerem que o 7 de setembro seria o dia D do golpe, com possíveis atos de violência nas manifestações. Reconheça-se: o 7 de setembro, com todos os atentados verbais de Bolsonaro e seus seguidores aos princípios democráticos, transcorreram sem transgressão da ordem. Mais: mostraram que o presidente tem, hoje, enorme capacidade para promover eventos de apoio a seu governo e a suas perigosas ideias.

 

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