quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Maria Cristina Fernandes - Matar, morrer ou acomodar

Valor Econômico

No balé das instituições, quem vai dar o tom é o Brasil real dos saques a supermercados

O presidente do Supremo Tribunal Federal falou duas vezes que ninguém fecharia a Corte. Deixou a magistratura incomodada com a contenção. Se duplicou a bravata porque há um cabo e um soldado à sua porta há outros usos para a energia despendida. Poderia, por exemplo, oficiar o procurador-geral da República a se manifestar sobre o crime de responsabilidade do não-cumprimento de decisões judiciais. Ou representar ao TSE por propaganda eleitoral antecipada. E ainda cobrar um posicionamento do presidente da Câmara sobre os 126 pedidos de impeachment.

Ante um presidente que bateu de frente, o ministro Luiz Fux optou pela estratégia de comer pelas beiradas. Elogiou as polícias, militar e federal, e as Forças Armadas, como a cativá-las para os embates do golpismo permanente decretado pelo presidente e já evidenciado nos ataques desta quarta ao Ministério da Saúde e na permanência dos caminhões na Esplanada.

A estratégia de Fux ainda passa pelo freio na negociação dos precatórios, a conta que não deixa o Orçamento fechar. Antes da manifestação, STF e TCU buscavam, junto com o Ministério da Economia, uma solução que arriscava até o calote. Agora os dois tribunais voltaram a colaborar, desta vez em busca dos financiadores nacionais - e internacionais - da guerrilha bolsonarista. Se a busca é por símbolos do isolamento, aí está um.

Este foi um dos temas tratados na reunião entre os ministros, na noite do dia 7, quando se combinaram as linhas do discurso do presidente da Corte, Luiz Fux. As evidências de financiamento privado irregular já tinham ficado claras no bloqueio das contas da Aprosoja. Confirmaram-se com o transporte de manifestantes para Brasília e São Paulo, onde uma pesquisa da USP detectou que 27% vinham de fora da Região Metropolitana.

E, finalmente, a presença do ex-assessor do ex-presidente Donald Trump, Jason Miller, em Brasília, levou autoridades americanas a colaborar com a Polícia Federal para mapear a origem do jatinho que o trouxe ao Brasil. Trata-se de uma das cabeças da estratégia de comunicação da extrema-direita mundial, que deu as caras com as placas bilíngues a reproduzir o grito de ordem “a vida pela liberdade” ecoado no discurso presidencial.

É isto que, ao fim e ao cabo, destrói quaisquer perspectivas de acomodação como foi tentado ontem pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Se nunca usufruiu de credibilidade, Lira agora também parece desprovido de um redator de discursos original. Lira achou por bem “enaltecer a todos os brasileiros que foram às ruas de modo pacífico”.

Quem destrói as perspectivas de acomodação é o próprio presidente que, sem força para dar um golpe clássico, investe no golpismo permanente. O tempo de um não converge com o do outro. Lira precisa conter o STF, de um lado, e o presidente, do outro, para aprovar o orçamento com uma equação para as emendas de relator, com as quais não apenas espera garantir seu gado na Câmara como as condições para sua recondução ao cargo em 2023.

Falta ainda a Lira uma estratégia para lidar com a pressão crescente por impeachment. Um fino observador da cena brasiliense comparava ontem a situação que cerca Bolsonaro daquela que emparedou a ex-presidente Dilma Rousseff. Ao contrário dela, o presidente já demonstrou que topa entregar tudo - à Câmara ou ao Senado. No impeachment de Dilma, ao contrário daquele de Fernando Collor de Mello, houve um intervalo de 20 dias entre as decisões das duas Casas.

Se Dilma tivesse enfiado 20 senadores na Esplanada poderia ter liquidado o impeachment, diz. Ela optou pela biografia de torturada. Lira mantém a blindagem do Palácio do Planalto com uma dúvida: e se agora for diferente? Bolsonaro já demonstrou que não mede esforços nem dinheiro do contribuinte para comprar apoio. O presidente do Senado tem dado demonstrações de que não engole esta isca, mas irritou seus pares ontem com a decisão de suspender as sessões do Senado onde eram previstos discursos enfurecidos contra o golpismo presidencial. Na fala, que completou a discurseira do dia, voltou a se apresentar como mediador da crise.

O enredo de Arthur Lira pode cair no vazio se o Supremo, de fato, levar à frente sua disposição de reagir contra a ameaça que a unanimidade dos ministros avalia ser real contra a instituição. Bolsonaro confia no piso da votação do voto impresso, quando perdeu na tese mas obteve 59 votos a mais do que precisa para barrar um processo de impeachment. Se confiar demais, porém, pode perder o pé da capacidade de articulação política de ministros que têm relações estreitas com o MDB, o DEM, o PSDB, o Rede, o PT, o PSB e o próprio PP de Lira.

O presidente da Câmara ainda ganha mais com Bolsonaro fraco do que com um Hamilton Mourão empossado e disposto a mostrar serviço. Mas esta conta pode virar se a blindagem se mostrar desfavorável ao STF. A Corte pode pautar, por exemplo, a ação direta de inconstitucionalidade que questiona as emendas de relator.

O Supremo ainda aposta em alguma margem de manobra com o procurador-geral da República, Augusto Aras. Depois de sua recondução, sucessivos pedidos de prisão de blogueiros e agitadores bolsonaristas começaram a sair da PGR. A isso se some a tese do senador Davi Alcolumbre, de que se Bolsonaro quer fechar o STF não vale a pena confirmar o ministro indicado.

A percepção de que a indicação do ex-AGU, André Mendonça, subiu ao telhado pode despertar em Aras o dom ainda mais refinado da ubiquidade. Calibrará sua atuação pela avaliação sobre o senhor ao qual vale mais a pena servir - se àquele que precisa manter o cargo ou àqueles que preparam o bote. No discurso de ontem não disse que sim, nem que não, muito pelo contrário.

O tom dissonante do balé das instituições pode vir do Brasil real. Acumulam-se indicadores a mostrar a confiança de agentes econômicos em declínio acelerado a se refletir no câmbio, na inflação. Se é o caos dos saques a supermercados e cargas de alimentos que Bolsonaro pretende, o tiro pode sair pela culatra, adverte um ministro do Supremo. A convicção dos parlamentares contrários ao impeachment, diz, tem a dureza de uma pedra de sabão.

 

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