quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Elio Gaspari - A ruína do coronel Queiroga

Folha de S. Paulo / O Globo

Os tupinambás que dançaram em 1550 em Rouen na festa da rainha Catarina de Médici eram pitorescos, e seus costumes intrigavam os franceses. Já a comitiva de Jair Bolsonaro comendo pizzas numa calçada de Nova York não tinha graça alguma. Selvagem seminu, tudo bem, mas Gilson Machado, o ministro do Turismo da Terra dos Papagaios, estava com a parte frontal da cueca para fora da calça. Quem já viu coisa igual ganha um cinto. Ao seu lado, estava o doutor Marcelo Queiroga, quarto ministro da Saúde do governo de um país onde falta pouco para que seja atingida a marca dos 600 mil mortos.

Queiroga comeu pizza de dia, mostrou o dedo à noite e ontem ouviu um discurso delirante. Está há seis meses na cadeira e tornou-se símbolo do caos da administração de Jair Bolsonaro. Quem achava que, depois do general Eduardo Pazuello, qualquer substituto seria boa escolha enganou-se.

No início da pandemia, com 2.141 mortos, Bolsonaro demitiu Luiz Henrique Mandetta e nomeou o médico Nelson Teich, que havia farfalhado em torno do cargo, mas foi-se embora depois de 29 dias, honrando seu diploma. O capitão substituiu-o por um general que ocupou a pasta com uma desastrosa patrulha. Entrou na marca dos 15 mil mortos e saiu com 298 mil. Ficou a lembrança do seu humor de caserna e de um mandonismo inútil. Pior, parecia impossível.

Foi quando chegou o médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Aos poucos, saiu da casca um coronel paisano. Astucioso, evitou a discussão da cloroquina e colocou-se sob a proteção da família Bolsonaro. Dizia que seu ministério “não vai colocar qualquer tipo de óbice para ampliar a vacinação”. Passou-se o tempo e suspendeu a vacinação de adolescentes para agradar a seu chefe. Fez propaganda de 500 milhões de vacinas inexistentes e deu-se a pitis durante entrevistas. Nomeou a médica Luana Araújo para a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 e demitiu-a quando o Planalto viu que a doutora criticava charlatanices. Mandão, não quis se explicar: “Já falei sobre a doutora Luana. Esse é um assunto que nós consideramos encerrado. Não vou mais abordar esse assunto”. Abordou-o, para dizer que cumpre ordens. Cumprindo-as, nomeou uma inimiga da vacinação para a diretoria de um hospital federal do Rio. De trapalhada em trapalhada, Queiroga firmou-se como um coronel do gênero paisano, um tipo que ao autoritarismo junta hábitos senhoriais.

Essa percepção poderia parecer má vontade com o doutor, até que o repórter Mateus Vargas mostrou a planilha dos voos do ministro pela FAB-Air. Entre março e agosto, o Ministério da Saúde fez 68 requisições. Em 11 voos, Queiroga estava com a mulher. Como ela é médica, e há uma pandemia por aí, vá lá. Três filhos de Queiroga voaram oito vezes. Coronel que se preza esparge seu poder. Assim, num voo dos Queirogas viajou uma parente do ministro do Turismo, o da cueca. Noutro, embarcou o casal Fernando e Adriana Bezerra. Ele, um Coelho, teve tio governador, foi ministro de Dilma Rousseff e de Michel Temer. É o atual líder de Bolsonaro no Senado. Ela é uma Souza Leão. Ilustres representantes da elite pernambucana, os Coelhos mandam em Petrolina desde 1895. Os Souzas Leão deram ao Império sete barões e são famosos pelo bolo que serviram a Dom Pedro II em 1859. O coronel Queiroga chegou lá — e pegou Covid-19.

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