sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Flávia Oliveira - Muito além da escassez de energia

O Globo

Não bastassem a turbulência político-institucional provocada pelo presidente da República, o PIB estagnado, a inflação galopante, a fome à espreita, a variante Delta do coronavírus se multiplicando, o Brasil se vê acossado por uma crise hídrica que ameaça bem mais que a oferta de eletricidade. No mesmo dia em que o ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, voltou à TV para apelar aos brasileiros por economia de luz — sem mencionar o tarifaço que vai até o fim do primeiro quadrimestre do ano eleitoral de 2022 —, Jair Bolsonaro, em campanha antecipada, cavalgava em Uberlândia (MG), numa cena mais constrangedora que heroica. A escassez de energia pressiona a inflação, freia atividade econômica e investimento, empobrece a população. É uma consequência da falta de água, não a única. E talvez nem seja a mais grave.

A crise hídrica explicitou-se no primeiro trimestre, ainda no período úmido brasileiro, de novembro a abril. O volume de chuvas foi o mais baixo em 91 anos. Os reservatórios das hidrelétricas dos sistemas Sudeste e Centro-Oeste, os mais relevantes, iniciaram a temporada seca nos menores níveis deste século, até piores que no 2001 do racionamento que sepultou o governo de Fernando Henrique Cardoso. O MME determinou a operação plena das termelétricas e anunciou interesse na importação de energia. Em boletins, o Operador Nacional do Sistema (ONS) tem feito alertas recorrentes sobre o provável nível crítico da oferta de energia no mês que vem.

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recorreu a reajustes seguidos na bandeira tarifária para, de um lado, cobrir custos de contratação de geradoras mais caras (e poluentes) e , de outro, forçar a redução da demanda pelo preço. A bandeira tarifária vermelha nível 2 saiu de R$ 6,23 em junho para R$ 9,49, a cada cem quilowatts-hora consumidos, no bimestre julho-agosto. Neste setembro e até abril de 2022, estará em R$ 14,20. De tão cara, perdeu a cor. Passou a se chamar bandeira de escassez hídrica.

Desde a crise energética de 2001, a dependência do Brasil das hidrelétricas diminuiu de mais de 80% para perto de 60%. Ganharam espaço as matrizes eólica, solar, além das térmicas a gás e até a óleo diesel. Ainda assim, são gravíssimos para a vida da população e para a atividade econômica o ambiente de incerteza na oferta e a volatilidade nos preços da eletricidade. O custo de vida sobe direta e indiretamente. O orçamento das famílias encarece porque a conta de luz fica mais alta, mas também pelo repasse no valor de produtos e serviços. A Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) estimou o peso da energia em alguns dos itens comuns nos lares brasileiros. Do preço do leite, abocanha quase metade (48%); na carne e no frango, um terço; no açúcar e nos materiais de construção, 10%.

Comida, gás de cozinha e energia são itens que pesam muito nas despesas de quem ganha menos. “A escalada na tarifa de eletricidade e seu efeito cascata penaliza particularmente os mais pobres, seja porque os preços sobem, seja porque, se o setor produtivo se retrair, vai ter mais desemprego”, diz o professor Marcos Freitas, da Coppe-UFRJ. Ex-diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e ex-superintendente da Aneel, ele confirma que a crise hídrica “tem potencial para se alastrar para outros usos”.

A falta de segurança energética prejudica em particular a manufatura. “Empresas desistem de investir; há redução no processo de industrialização de cadeias inteiras”, alerta Freitas. Agricultura e transportes já sofrem consequências da falta de chuvas. No fim de agosto, a Hidrovia Tietê-Paraná parou, porque o nível do rio tornou-se inviável para navegação das barcaças que escoavam milho, soja, cana-de-açúcar e adubo. A movimentação passou às rodovias, mais caras e menos produtivas. São necessárias 160 carretas para transportar o que levam quatro barcaças. Não foi só por apreço à democracia que o agronegócio divulgou manifesto crítico à conjuntura nacional.

Anteontem, o IBGE divulgou os resultados do PIB no segundo trimestre (-0,1%); a agropecuária caiu 2,8% em relação a janeiro-março. Culturas de café (-21%), algodão (-16,6%) e milho (-11,3%) despencaram em relação ao período abril-junho 2020, auge da primeira onda da pandemia de Covid-19. As condições climáticas pesaram. Não por acaso, projeções para o crescimento econômico em 2022 estão sendo revistas. Para dar conta da oferta de energia, o governo está gastando reservas de água que podem afetar irrigação de lavouras e até o abastecimento das cidades em áreas localizadas, se as chuvas não caírem em volume adequado na próxima temporada. Evitar a tragédia demanda agilidade, competência, capacidade de coordenação, atributos que faltam a um mandatário que escolheu cavalgar.

 

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