sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Rogério L. F. Werneck* - Aposta irresponsável

O Globo /O Estado de S. Paulo

País inicia a Semana da Pátria alarmado com as demonstrações de rua conclamadas pelo governo para o 7 de Setembro. O que se teme é que, em sua escalada de desestabilização, Bolsonaro possa ter desencadeado, agora, um processo com desdobramentos impensáveis que escapam a seu controle.

Em meio a este clima de alta tensão, o conceito de brinkmanship ajuda a entrever contradições dessa deplorável marcha da insensatez. A palavra, de tradução concisa difícil, significa a arte ou a prática de levar uma situação perigosa – uma confrontação “à beira do abismo” – além do limite do que pode ser considerado seguro, para conseguir determinado desfecho. O alto risco assumido, claro, tanto pode levar ao desastre quanto ao sucesso.

Esta conotação mais ampla de brinkmanship convive com o significado mais preciso que o termo tem em teoria dos jogos, bem discutido há mais de 60 anos por Thomas Schelling – Prêmio Nobel de Economia de 2005 – no seu Strategy of Conflict. Envolve uma prática que diplomatas, estadistas e negociadores conhecem desde tempos imemoriais: a tática de criar um risco perceptível, e não completamente controlável, e deixar a situação fugir de certa forma ao controle para intimidar o adversário, na expectativa de que este recue, temendo o pior. Ou seja, temendo que quem o ameaça esteja de fato disposto a ir às últimas consequências, ultrapassando, se necessário, a borda fatal e arrastando-o consigo na queda.

Para que a tática funcione, entre adversários racionais, a represália prometida não pode ser percebida como certeza absoluta. Afinal, a eficácia da ameaça decorre da percepção de que quem a faz poderá ser obrigado a cumpri-la, mesmo que, no último momento, isso seja contrário aos seus melhores interesses. Para que a ameaça tenha credibilidade, portanto, é necessário que ela envolva não uma represália certa, mas o desencadeamento de um processo não perfeitamente controlável que aumente de forma significativa o risco de a represália acabar sendo cumprida.

A imagem correta, portanto, não é um plano em cuja extremidade há uma borda que, se ultrapassada, leva à queda inevitável no abismo. Mas, sim, uma borda na extremidade de uma “rampa escorregadia”, um conceito crucial na prática de brinkmanship. A ameaça crível é a disposição de levar o conflito rampa abaixo. De iniciar a descida da rampa, mesmo tendo em conta que cada movimento na direção da borda envolve o risco de um escorregão fatal para ambas as partes. A postura norte-americana na crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, é um exemplo clássico dessa tática.

Vista dessa perspectiva, a conclamação para as demonstrações do 7 de Setembro, nos termos radicais em que tem sido feita, é uma evidência inequívoca da intenção de Bolsonaro de arrastar sua escalada de desestabilização rampa escorregadia abaixo, desencadeando um processo com consequências imprevisíveis sobre o qual poderá não ter controle.

Quanto a isso não há dúvida. Mas, antes de levar a noção de brinkmanship mais longe do que parece razoável, na interpretação da crise institucional por que passa o País, há dois pontos que merecem reflexão.

Qual seria, mesmo, o adversário que Bolsonaro estaria tentando intimidar à beira do abismo? O Supremo? O Congresso? Os governadores? O eleitorado não bolsonarista? Ou, quem sabe, “as quatro linhas da Constituição”? A resposta mais simples é que tudo não passa de reles e insana aposta golpista do presidente num quadro de conflagração que possa dar margem à ampliação de seus poderes.

Disso se segue o segundo ponto. A ideia de brinkmanship pressupõe embate entre adversários racionais. É essa presunção de racionalidade que torna a rampa escorregadia essencial para que a ameaça se torne crível. Mas alguém acredita mesmo que Bolsonaro esteja atuando de forma fria e racional? Claro que não. É por mera inconsequência que agora se dispõe a arrastar o País rampa escorregadia abaixo. Pura irresponsabilidade, que lhe deixará ainda mais fragilizado do que já está.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-RIO

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