terça-feira, 21 de setembro de 2021

Joel Pinheiro da Fonseca – A desonestidade dos céticos seletivos

Folha de S. Paulo

Questionar eficácia dos imunizantes sem crivo técnico é socialmente desastroso

A atitude cética é fundamental para o avanço do conhecimento. Se estamos confortáveis com nossas crenças, o progresso é impossível ou só virá depois que a realidade aplique golpes duros.

Grande parte da ciência é exatamente isso: procurar problemas nas teses estabelecidas, extrair previsões delas para falseá-las, identificar inconsistências, encontrar explicações que possam reabilitar teorias já descartadas.

Uma possível reação fatal a uma vacina, por exemplo, merece a atenção dos especialistas e os debates que a cercam: será que a morte foi causada pela vacina? Será que a vacina agravou um quadro preexistente que explica a morte? Qual a probabilidade que devemos atribuir a essa possibilidade? Por mais sólido que seja nosso conhecimento, a certeza nunca é absoluta.

No campo do conhecimento, colocar as próprias certezas em dúvida é sempre salutar. Na esfera prática, no entanto, é preciso agir. E essa ação se baseia em alguma crença, melhor ou pior embasada. Se, no momento da ação, a colocamos em dúvida, não iremos agir. Na esfera prática, o ceticismo é paralisante.

No debate público amplo, longe dos redutos de especialistas, a discussão tem, via de regra, uma finalidade prática: influenciar a conduta dos indivíduos, das organizações ou dos governos.

Qual é o valor, para o conhecimento humano, de se enganar um leigo usando argumentos facilmente refutáveis por um especialista, não raro com informações falsas, e persuadi-lo de que as vacinas guardam efeitos colaterais perigosíssimos? Nenhum. Mas essa prática teve impacto direto na condução de política pública: fez o governo tentar impedir a vacinação de adolescentes.

A tática é manjada desde que a indústria do cigarro se mobilizou para impedir restrições ao tabaco desde os anos 1950: se for difícil defender o seu lado, basta semear a dúvida sobre o lado contrário.

Qualquer fiapo de possível evidência contrária ao consenso científico serve, não para realmente mudar o estado da questão junto aos especialistas, mas para confundir o grande público e justificar que nada seja feito. Esse “ceticismo” seletivo é hoje empregado pelos lobbies de diversas indústrias: para desacreditar o aquecimento global, para combater restrições a pesticidas etc.

É o que vemos hoje com o movimento antivacina por parte dos militantes bolsonaristas. Incapazes de realmente apresentar dados contrários à vacinação, limitam-se a colocar em dúvida a política nacional, tentando reduzir ao máximo possível a confiança da população nos imunizantes, agarrando-se a cada fato que possa enfraquecer a confiança popular, mesmo que ele seja espúrio.

Teria sido a coisa mais fácil do mundo para Bolsonaro —populisticamente— abraçar a vacinação desde o primeiro momento e se vender como o Capitão Vacina. Não o fez. Pelo contrário, ele e seus influenciadores continuam propagando desinformação.

Talvez o grau de loucura conspiratória de seu eleitorado limite as ações possíveis do governo. Ele se queimaria junto a seus eleitores se resolvesse defender enfaticamente a vacinação. Quem dera tivessem demonstrado o mesmo “ceticismo” com a cloroquina.

Num ambiente acadêmico, questionar a eficácia e os riscos da vacina é bem-vindo, mesmo que esse questionamento acabe sendo, ele próprio, rebatido. Fazê-lo diretamente junto à opinião pública, sem passar pelo crivo da discussão técnica, baseado numa suposta capacidade do cidadão médio de avaliar evidências científicas de uma área que ele desconhece, é intelectualmente desonesto e socialmente desastroso.

 

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