sexta-feira, 17 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Sólida reprovação

Folha de S. Paulo

Fragilidade de Bolsonaro, medida pelo Datafolha, afigura-se de difícil reversão

A popularidade de Jair Bolsonaro continua a diminuir, em ritmo menor, mas significativo, indicam os números da pesquisa Datafolha realizada nesta semana.

O governo é considerado ruim ou péssimo por 53% dos brasileiros aptos a votar e ótimo ou bom por 22%. Em julho, as taxas eram de 51% e 24%, respectivamente. A diferença, portanto, passou de 27 pontos negativos para 31. Em dezembro de 2020, auge do prestígio presidencial, apurou-se um saldo positivo de 5 pontos.

As taxas de aprovação de Bolsonaro jamais foram muito expressivas. Ele teve 37%, sua melhor avaliação, apenas entre agosto e dezembro do ano passado —período em que o governo pagava um auxílio emergencial maior e uma complementação de salário.

Como de hábito, a avaliação do governo é pior entre mulheres, mais pobres, moradores do Nordeste e mais jovens. Mesmo na região Sul, em que o mandatário colhe resultados menos ruins, a taxa de reprovação é de 44%.

Se a retomada da economia parecia a melhor aposta para uma mudança de humores do eleitorado, a situação de Bolsonaro nessa frente vai se tornando dramática.

Mesmo com manobras orçamentárias, reduz-se o espaço para a prometida ampliação do Bolsa Família. As projeções para o crescimento econômico no próximo ano recuam para o patamar de 1%; as perspectivas de escassez de água e energia elétrica agravam o quadro.

O desemprego tende a permanecer alto por muito tempo, e mesmo algum alívio entre pobres e informais é ofuscado pelo impacto da alta da inflação. Não haverá tão cedo aumento de rendimentos do trabalho que supere de modo notável as perdas do poder de compra.

Difícil conceber outras áreas de atuação que permitam a Bolsonaro somar pontos a seu favor.

Não tem como apagar o desastre que promoveu na saúde e a mortandade provocada pela Covid-19; pode, quando muito, apostar no esquecimento ou na complacência do eleitorado. Não tem nem terá realizações de governo a apresentar, pois, afinal, não governa.

O que faz para reter seu eleitorado mais fervoroso —atos antidemocráticos, pregação de ódio, manifestação de preconceitos variados contra a diversidade humana— alimenta a sua reprovação entre estratos majoritários da sociedade. Mesmo aos fiéis, que decepcionou com um recuo recente, nada tem a apresentar além de falatório.

Sua impopularidade não é circunstancial, motivada por algum revés inesperado. Trata-se de tendência consistente, correlacionada com a tensão política e econômica e, tudo indica, de difícil reversão.

A fatia da educação

Folha de S. Paulo

PEC para flexibilizar gasto expõe norma que garante verba sem cobrar resultado

Há previsível celeuma em torno da proposta de emenda à Constituição que autoriza governadores e prefeitos a descumprir temporariamente o gasto mínimo em educação, aprovada em primeiro turno pelo Senado.

Conforme o artigo 212 da Carta, estados, municípios e o Distrito Federal são obrigados a aplicar 25% das receitas de impostos em “manutenção e desenvolvimento do ensino”, um grupo de despesas definido na legislação. A PEC abre exceções para os anos de 2020 e 2021, determinando que seja feita uma compensação até 2023.

A pandemia de Covid-19 parece uma justificativa plausível para a medida. Afinal, houve grande desorganização das finanças públicas, motivada pela queda temporária da arrecadação e pelo imperativo de destinar mais recursos à saúde, além de profundas mudanças nas rotinas escolares.

Ademais, a fixação de prazo não muito longo para a reposição dos gastos deve evitar uma oscilação excessiva dos dispêndios no setor. Pelo que foi dito nos debates da PEC, apenas cerca de 5% dos municípios descumpriram as exigências legais no ano passado, e um único estado, o Rio, foi mencionado.

A proposta, impulsionada pelo lobby das prefeituras, obteve maioria relativamente confortável de 57 a 17 no primeiro turno —uma mudança constitucional exige o apoio de 49 dos 81 senadores. Mas a resistência ao texto, ainda a ser examinado pela Câmara dos Deputados, deve continuar ruidosa.

O financiamento da educação será sempre questão prioritária. Causam alarme, além disso, os danos provocados pela pandemia e pela gestão ruinosa do MEC sob Jair Bolsonaro. Está em jogo também, entretanto, uma norma constitucional há muito questionada.

O Brasil já destina à educação pública uma fatia de sua renda compatível com os padrões internacionais, embora seus resultados deixem a desejar. Os dados indicam que aumento da eficiência e melhor distribuição do gasto, agora, são os objetivos mais relevantes.

Nesse contexto, faz pouco sentido manter indefinidamente uma mesma regra de gasto para milhares de unidades federativas tão diferentes entre si, como advogam as corporações do setor.

Esta Folha defende que as políticas educacionais, em todos os níveis de governo, deem ênfase a metas plurianuais para indicadores de aprendizado e evasão escolar, entre outros. A despesa, que não é objetivo em si mesma, deve estar condicionada a desempenho.

Quarentena para juízes e policiais entrarem na política é decisão correta

O Globo

Em meio ao retrocesso que representa quase todo o Novo Código Eleitoral de 898 artigos — aprovado pela Câmara numa velocidade espantosa sem a discussão detida que cada tema mereceria —, uma das medidas que despertaram mais controvérsia acabou tendo uma solução satisfatória.

Foi acertada a decisão dos deputados de modificar a proposta de quarentena para juízes, procuradores, policiais e militares. Na versão original — cujo objetivo inconfessado era impedir a candidatura do ex-juiz Sergio Moro à Presidência —, quem quisesse concorrer já em 2022 deveria estar há mais de cinco anos afastado do cargo. A absurda regra retroativa foi substituída por outra mais razoável: quem quiser disputar eleições a partir de 2026 deverá deixar a função a partir de 2022.

Na prática, a medida, se aprovada no Senado, preservará o Legislativo e o Executivo de oportunistas que usam carreiras de Estado como trampolim para a política. Será uma tentativa de blindar o país daqueles que, ainda exercendo cargos públicos, tomam decisões mais de olho nas urnas que nas suas funções.

Um dos que mais protestaram contra a decisão foi o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP), líder da “bancada da bala”. O deputado Vitor Hugo (PSL-GO), outro integrante da bancada, argumentou que a decisão desprestigiava “aqueles que todos os dias lutam pela nossa segurança pública”. Os dois parecem ter esquecido casos de policiais que lideraram greves ilegais para depois disputar eleições.

Pelo menos um bom motivo foi alegado contra a medida. Ela fora retirada por uma diferença de três votos do texto do Código Eleitoral na primeira fase de análise das emendas para modificar o conteúdo do projeto. Depois o tema voltou ao texto pelas mãos de deputados do Centrão por meio de uma manobra conhecida, a emenda aglutinativa, que resulta da fusão de outras emendas. Parlamentares argumentaram com razão já terem rejeitado a proposta. Infelizmente, a emenda aglutinativa é um recurso que consta do regimento da Câmara.

A reforma precisa ser aprovada no Senado e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro até 2 de outubro para valer nas eleições do ano que vem. Não está descartada a hipótese de um acordo lograr a proeza, mesmo com esse prazo exíguo. O melhor, no entanto, seria o Senado prosseguir com o devido cuidado.

O acerto na definição da quarentena é apenas uma mudança positiva entre tantas outras problemáticas. O novo Código Eleitoral diminui a transparência dos gastos dos partidos, enfraquece a fiscalização, tira poder da Lei da Ficha Limpa e censura a divulgação de pesquisas eleitorais na véspera e no dia das eleições. Os senadores devem fazer todas as correções necessárias e enviar o texto de volta para a Câmara. Não há problema se não der tempo de as mudanças valerem no ano que vem. Um retrocesso sempre é pior.

Texto da reforma administrativa ficou inaceitável

O Globo

A pressão das corporações do funcionalismo deteriorou significativamente a proposta de reforma administrativa. O texto que deverá ser votado na Comissão Especial na semana que vem constitui um arremedo de reforma. Fica muito distante de promover a transformação necessária para modernizar o Estado brasileiro. Em vez de corrigir injustiças, a proposta mantém privilégios, instaura novas blindagens para o funcionalismo na Constituição e, se aprovada na atual formulação, agravará as distorções que fazem do setor público brasileiro uma máquina de gerar desigualdade. Na forma como está, o texto é inaceitável.

O relator, deputado Arthur Maia (DEM-BA), atendeu a quase todas as demandas corporativas das categorias que souberam exercer pressão. Excluiu das mudanças todos os funcionários já contratados e deixou de lado a elite do funcionalismo, em particular juízes e procuradores. Na prática, a vedação de privilégios como férias de 60 dias, promoções automáticas, licenças-prêmio e aposentadorias compulsórias se tornará inócua, pois eles já não existem nas categorias contempladas — e permanecerão intocados lá onde existem, no Judiciário e no Ministério Público.

A injustiça não para aí. O texto grava na Constituição a autorização para acúmulo de salários e verbas indenizatórias, como os auxílios moradia, viagem, alimentação. Deixa intactos privilégios como o duplo teto salarial (comum entre militares em cargos no governo) e a licença remunerada para concorrer em eleições. É omisso quanto aos cargos comissionados e, mesmo que crie a dispensa por funções obsoletas, preserva todos os já contratados. Embora crie a possibilidade de contratos temporários, mantém a estabilidade de todos os funcionários, independentemente do que façam, e nem toca na possibilidade de reduzir salários e jornadas diante de necessidades orçamentárias. Para não falar nos jabutis inseridos nesta semana para agradar a policiais e forças de segurança.

Em benefício dessas categorias, Maia impôs um recuo nos avanços conquistados pela reforma da Previdência em vários estados. Garantiu aposentadoria integral e paridade nos reajustes aos policiais contratados até 2019. Assegurou pensão integral por morte no exercício da função, em vez de proporcional ao tempo de serviço (como instituíra a reforma previdenciária). Para completar, concedeu foro privilegiado aos diretores-gerais da Polícia Federal (PF) e da Polícia Civil, além de conferir à PF um status especial que a preserva do controle externo pelo Ministério Público. Rigorosamente tudo isso é absurdo.

O mais lamentável é que, de todas as reformas, a administrativa é a crucial para desvencilhar o Brasil de seu mal mais tenaz e insidioso: a ineficiência crônica do setor público, incapaz de prestar serviços de qualidade ao cidadão. A maior deficiência na gestão do Estado brasileiro é a falta de critérios de avaliação que permitam atrair e manter a mão de obra competente nos setores em que é mais necessária. A tentação nessas horas é sempre gravar direitos em pedra, transformando a Constituição numa catedral em cuja fachada cada corporação tenta esculpir seu privilégio particular, mas cujas fundações são incapazes de suportar todo o peso. É uma lástima que, diante da oportunidade de promover uma reforma robusta, Maia tenha cedido às pressões e seguido esse mesmo caminho.

Sem política social, apenas interesse eleitoral

O Estado de S. Paulo

O governo Bolsonaro não tem política pública social. Alega não dispor de recursos. No entanto, tem dinheiro para agradar sua base

O governo de Jair Bolsonaro não tem política pública social. Alega não dispor de recursos. No entanto, Bolsonaro tem dinheiro para agradar a sua base eleitoral. Na segunda-feira, o governo e a Caixa Econômica Federal anunciaram uma nova linha de financiamento imobiliário, com juros subsidiados, voltada exclusivamente para policiais e bombeiros.

Num Estado Democrático de Direito, no qual vigora o princípio da igualdade, é inconstitucional que algumas categorias profissionais sejam privilegiadas com juros mais baixos, enquanto o restante da população não tem acesso ao benefício. Por que um policial deve ter mais facilidade para comprar a casa própria do que uma professora, uma enfermeira, uma assistente social ou um motorista de ônibus, por exemplo?

Por definição, políticas públicas devem atender quem mais precisa. Os recursos públicos não podem ser usados para beneficiar familiares, amigos ou base eleitoral de um político. Tal restrição é evidente. O dinheiro público deve atender ao interesse público, não a objetivos particulares.

Segundo o governo, o novo programa de subsídio de juros receberá R$ 100 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública. Ora, o objetivo desse fundo é apoiar projetos na área de segurança pública e prevenção à violência, segundo as diretrizes do Plano Nacional de Segurança Pública. São recursos que devem servir a toda a população. Seu destino não é favorecer funcionários públicos envolvidos na segurança pública.

A concessão de privilégios por parte de Bolsonaro a policiais e bombeiros não apenas tem um explícito caráter eleitoreiro – usa e abusa do cargo para tentar se manter no poder –, mas evidencia desprezo pela situação da população. Sempre, mas especialmente num quadro de crise social e econômica, é preciso priorizar quem mais necessita.

Num cenário de crescimento acelerado da pobreza e da extrema pobreza, com cada vez mais pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, o presidente Bolsonaro, como se fosse um vereador, anunciou que sua base eleitoral poderá comprar a casa própria com juros subsidiados pelo restante da população. Eis um governo que prima pela total ausência de solidariedade.

A rigor, política pública social não é questão de altruísmo, mas dever essencial do governante. Diz o artigo 3.º da Constituição: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Jair Bolsonaro não cumpre, portanto, o compromisso que fez de respeitar a Constituição quando omite a promoção de políticas públicas sociais. Vale lembrar que, no primeiro semestre, o País bateu recordes de desigualdade social. De acordo com o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), no período de janeiro a março, a desigualdade de renda proveniente do trabalho foi a maior da série iniciada no fim de 2012. Com tal cenário, não há espaço fiscal, cívico ou moral para conceder privilégios à base eleitoral.

No mês passado, o governo federal editou a Medida Provisória (MP) 1.061/21, que extinguiu o programa Bolsa Família e criou o Auxílio Brasil. Em tese, a mudança poderia ser uma oportunidade de retificar e melhorar o programa de distribuição de renda. No entanto, além de ter graves deficiências, a MP 1.061/21 não recebeu nenhuma atenção do Palácio do Planalto, preocupado em promover as manifestações do 7 de Setembro.

É necessário realizar uma profunda reforma social, capaz de promover a autonomia de todos os cidadãos. Com urgência, o País precisa de políticas públicas sociais responsáveis, que atendam de forma mais efetiva possível quem mais precisa. Segundo a Constituição, esse é o melhor destino para o dinheiro público – que, por sinal, nunca deve ser usado para comprar voto ou arrebanhar simpatizantes. Dependência é antônimo de cidadania.

A democracia e a privacidade de dados

O Estado de S. Paulo

Internet, redes sociais e tecnologias de vigilância podem ameaçar valores democráticos

Promovido pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV), o seminário sobre Os desafios da regulação moderna debateu as questões relativas às dificuldades que os regimes democráticos vêm enfrentando atualmente em decorrência da expansão da internet e das redes sociais. 

Essa questão, que envolve a privacidade dos usuários da internet e o questionamento da eficácia das leis sobre proteção de dados no mundo inteiro, foi discutida pelo economista francês Jean Tirole, da Universidade de Toulouse. Especialista em regulação dos mercados, especialmente nos setores com poucas e poderosas empresas com atuação em escala mundial, como é o caso do Google e do Facebook, Tirole foi ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2014. Seus livros discutem a teoria dos jogos, assimetria de informações e modelos de oligopólio. 

Apesar de considerar que o compartilhamento e a difusão de dados pela internet são importantes na execução de políticas públicas, Tirole afirmou que eles pecam pela falta de transparência e lembrou dos problemas que isso traz para a democracia. Para ele, os formulários de concordância sobre uso de dados para acessar os dados não são compreensíveis para os usuários comuns, chegando algumas vezes a ponto de iludi-los. 

Além disso, as leis sobre proteção de dados contêm brechas no que se refere ao uso de dados sem consentimento, ao volume de investimentos em segurança digital e dúvidas sobre sua retransmissão a terceiros. O mais adequado seria a adoção de mecanismos de regulação paralela aos previstos pela legislação e iniciativas mais firmes dos governos para proteger os usuários, disse Tirole. A seu ver, a privacidade não deve ser entendida só como uma questão individual, mas como algo fundamental para a democracia. Ela é um bem coletivo cuja preservação afeta toda a sociedade, uma vez que depende não só de decisões individuais, mas, também, de decisões de outros cidadãos. 

O ganhador do Nobel de 2014 também discutiu os procedimentos de coleta de dados no ambiente virtual, especialmente os sistemas de crédito social que estão sendo concebidos com o objetivo de dar ou limitar o acesso das pessoas a serviços ou de funcionar como indicador de confiabilidade. Na China, por exemplo, o sistema de crédito social que vem sendo desenvolvido usará big data e inteligência artificial para classificar cidadãos e empresas, o que vai incluir uma série de critérios sobre pagamento de impostos e dívidas. 

O problema desse tipo de sistema é que, quando utilizado como mecanismo de avaliação de opiniões políticas e religiosas, permite o controle governamental de dissidentes do regime chinês, advertiu Tirole. Ele lembrou que esse tipo de controle não é novo, tendo sido utilizado na forma analógica pela polícia política da antiga Alemanha Oriental, a Stasi, durante a guerra fria. A diferença é que o custo para a Stasi era muito alto, enquanto agora, com a internet, é baixo. “A inteligência artificial vai descobrir o que cada cidadão fez e quem são seus amigos. Suas atividades estarão registradas por câmeras na rua. E isso vai destruir o tecido social de quem tiver baixa classificação. Isso já existe e é atraente para os regimes autocráticos”, lembrou Tirole.

Neste período de competição geoestratégica, em que os Estados Unidos encaram a era digital como negócio e a China a vê como instrumento de poder, a exposição feita por Tirole sobre a tensão entre big data e democracia no seminário promovido pela FGV não poderia ter sido mais oportuna. Ele chamou a atenção para o risco de que a proteção da privacidade seja deturpada e convertida em mecanismo de perseguição política, abrindo assim caminho para a substituição de sociedades plurais, em que prevalecem os valores democráticos e as liberdades políticas, pela chamada “sociedade disciplinar”, em que as tecnologias de vigilância permitem aos governantes desprezar as garantias e liberdades fundamentais em nome da segurança do regime. 

Um respiro em julho

O Estado de S. Paulo

Há sinais positivos, mas desgoverno e incertezas derrubam projeções econômicas

A economia avançou 0,6% em julho, prenunciando talvez um segundo semestre melhor que o primeiro, de acordo com o Índice de Atividade do Banco Central (IBC-Br), usado como sinalizador de tendência dos negócios. Alguns sinais positivos já haviam aparecido. Ainda em julho as vendas do comércio varejista cresceram 1,2% e o setor de serviços produziu 1,1% mais que no mês anterior. A indústria, no entanto, continuou emperrada, sua produção foi 1,3% menor que a de junho e ficou de novo abaixo do patamar pré-crise, de fevereiro do ano passado. Apesar de alguma melhora, o cenário continuou apresentando áreas de luz e de sombra.

É lenta a recuperação indicada pelo BC. No trimestre móvel encerrado em julho a atividade foi 0,02% inferior à do período fevereiro-abril. Além disso, o crescimento de junho em relação a maio foi revisto de 1,14% para 0,92%. Os dados continuam mostrando uma forte retomada a partir do ano passado, mas a base do confronto – a fase inicial da pandemia – é muito baixa. Por isso, o indicador de julho foi 5,53% superior ao de um ano antes e o dado trimestral superou por 9,44% o de maio-julho de 2020. O avanço acumulado no ano foi 6,60% maior que o de janeiro a julho do ano passado, e o crescimento em 12 meses chegou a 3,26%.

O crescimento mensal do indicador ficou dentro das projeções captadas no mercado pelo Broadcast, serviço em tempo real da Agência Estado, mas superou a taxa apontada pela maioria dos consultados, 0,40%. Nesta altura, só uma grande surpresa positiva – nos indicadores econômicos e na política – poderia alimentar expectativas mais otimistas. O IBC-Br foi divulgado na manhã de quarta-feira. No dia anterior, instituições de peso haviam confirmado a redução das estimativas de crescimento em 2022.

O Itaú Unibanco baixou de 1,5% para 0,5% a expansão do Produto Interno Bruto (PIB) projetada para o próximo ano. A consultoria MB Associados cortou sua estimativa de 1,4% para 0,4%. Na XP Investimentos a revisão foi de 1,7% para 1,3%. No Banco BV, de 1,8% para 1,5%. Na segunda-feira o BTG havia reduzido sua previsão de 2,2% para 1,5%.

Comparadas com as mais sombrias, apostas em crescimento superior a 1% em 2022 parecem apontar uma situação quase normal, quase tolerável. Mas um olhar mais amplo ajuda a perceber a enorme deterioração das expectativas. Em um mês, a mediana das projeções do mercado caiu de 2,04% para 1,72%, apontando um desastroso final de mandato para o presidente Jair Bolsonaro.

As estimativas para este ano também têm piorado e já chegaram a 5,04%. Quatro semanas antes ainda estavam em 5,28%. As expectativas para 2021 ainda são próximas de 5%, no entanto, porque se referem à retomada inicial depois de um tombo de 4,1%.

Mas é arriscado falar até de um retorno ao normal. Economistas levam em conta, ao desenhar cenários para 2021, o baixo potencial de crescimento, já conhecido antes da recessão de 2015-2016, e alguns fatores característicos da era Bolsonaro. Desgovernado, o País vive o dia a dia sem planejamento, sem programas e sem rumo, com projetos lançados aqui e ali sem articulação de propósitos, enquanto os ministros se atropelam e o presidente negocia seus interesses com apoiadores famintos por dinheiro público.

O chefe de governo cuida de si e de sua família, ouve os piores conselheiros, escolhe o conflito como estilo de ação, gera tensões, despreza os cuidados com o Tesouro, cria insegurança, desarranja o câmbio e agrava, com sua irresponsabilidade, a incerteza econômica e as pressões inflacionárias.

Sem um Executivo para proteger as contas públicas e transmitir sinais positivos ao mercado, fica para o BC todo o trabalho de cuidar das expectativas e tentar conter a inflação crescente. O BC fará o necessário, tem dito seu presidente, Roberto Campos Neto, para frear a alta dos preços. Diante desse compromisso, analistas do mercado elevam suas projeções de juros e baixam suas estimativas de crescimento, já afetadas pelo desgoverno cada vez mais perigoso e pela irresponsabilidade presidencial.

Sob pressão, governo chinês amplia intervenção doméstica

Valor Econômico

Ofensiva atinge os setores mais inovadores da economia

Após uma ascensão sem obstáculos à posição de segunda maior potência econômica do mundo, a China enfrenta agora a oposição dos países desenvolvidos a suas aspirações de liderar a revolução tecnológica, de estender seu poderio militar em sua área de influência, com ambições territoriais revividas. A reação começou com o presidente americano Donald Trump, ganhou contornos estratégicos definidos com Joe Biden e conta com apoio matizado da União Europeia. A reação do governo chinês aos perigos que marcam o presente e se arrastarão pelo futuro foi aumentar sua intervenção em vastos setores da vida social, cultural e econômica do país. A resposta se adequa à estratégia de poder do presidente Xi Jinping, o mais poderoso líder desde Mao Tse-tung.

Xi sepultou o esquema de direção colegiada do Partido Comunista Chinês, vigente desde Deng Xiao-ping, e obteve apoio para eliminar restrições para a continuidade no cargo (dois mandatos de 5 anos) e nas instâncias decisórias do partido - é secretário-geral e presidente da Comissão Militar desde 2012. Ele está mudando orientações consolidadas que, mal ou bem, permitiram o estrondoso sucesso econômico da China.

Ditaduras de partido único nunca abriram mão do controle total. “Aquele que domina a informação tem a dianteira”, disse certa vez Xi. Diante da ofensiva externa e das necessidades de consolidação de seu mando, Xi busca a reconfiguração do poder e raio de ação das gigantes tecnológicas, como Alibaba, Tencent, Didi, Meituan etc. Informações pessoais ganharam status de segurança nacional e nesse ponto ninguém conhece melhor a vida e hábito dos chineses do que as donas dos aplicativos mais usados do planeta, bem à frente do enorme aparato de segurança oficial.

Os líderes chineses criam slogans para carimbar seus movimentos políticos. O de Xi é “prosperidade comum”, em substituição ao “fique rico antes”. Com isto, os órgãos reguladores estão pondo fim ao autêntico vale-tudo, típico do capitalismo selvagem, das big techs chinesas. A lista de proibições mostra o alcance das práticas anticompetitivas: explorar dados de clientes para vetar produtos de concorrentes, limitar tráfego de outras plataformas bloqueando hiperlinks, propaganda e análise online fraudulentas etc.

A Alibaba, de Jack Ma, é o alvo mais vistoso e exemplar. O governo obrigou o Alipay, com 1 bilhão de usuários, a criar outra companhia e app para empréstimos e mais uma, para o score de crédito. Detalhe: será uma joint venture em que uma estatal entra com participação ínfima no capital, mas com direito a assento na direção da empresa. Outras três estatais entraram com 1% de participação, mas vaga no Conselho, da Bytedance, que controla o TikTok, hit mundial.

Ações com a mesma finalidade se espalham em várias direções. Negócios de US$ 280 bilhões de empresas de cursos preparatórios ao ingresso nas melhores universidades chinesas - mais difícil até que na liga de elite americana - foram dizimados com a determinação oficial de que só serão permitidas entidades sem fins lucrativas nesse setor.

Há mais: em novembro entra em vigor a Lei de Proteção de Informação Pessoal, que determina que dados que saem da China terão de ser submetidos à aprovação do Administração do Cyberespaço ou outro órgão oficial, o que obrigará as multinacionais instaladas no país a ter in loco parte de seus data-centers. E os chineses estão inovando ao regular os algoritmos, restringindo induções de compra feitas com base em todo o tipo de informações pessoais dos clientes.

As mudanças de Xi não são impopulares. A China tem uma péssima distribuição de renda e as ações atingem, em primeiro lugar, os bilionários, com efeitos colaterais benéficos aos trabalhadores. O governo abriu fogo contra o habitual 996, a dura jornada de 9 horas de trabalho seis dias por semana vigente no país e comum entre big techs, entregadores e transportes por aplicativos, e contra a sabida baixa remuneração que todo esse esforço proporciona.

O fim último do governo é se apropriar da fantástica rede de dados sobre os cidadãos em posse das empresas de tecnologia. A ela já se acrescentam as fornecidas pela tecnologia de ponta do reconhecimento facial, apoiada por 450 milhões de câmeras de vigilância - uma para cada três habitantes. A questão vital é o poder político, mas a ofensiva atinge os setores mais inovadores da economia. Para conquistar a vanguarda tecnológica, meta declarada do governo, ele não pode matar a inovação. Esse é um equilíbrio, porém, que uma liderança sem controles pode destruir.

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