EDITORIAIS
Sólida reprovação
Folha de S. Paulo
Fragilidade de Bolsonaro, medida pelo
Datafolha, afigura-se de difícil reversão
A
popularidade de Jair Bolsonaro continua a diminuir, em ritmo menor, mas
significativo, indicam os números da pesquisa Datafolha realizada nesta semana.
O governo é considerado ruim ou péssimo por
53% dos brasileiros aptos a votar e ótimo ou bom por 22%. Em julho, as taxas
eram de 51% e 24%, respectivamente. A diferença, portanto, passou de 27 pontos
negativos para 31. Em dezembro de 2020, auge do prestígio presidencial,
apurou-se um saldo positivo de 5 pontos.
As taxas de aprovação de Bolsonaro jamais
foram muito expressivas. Ele teve 37%, sua melhor avaliação, apenas entre
agosto e dezembro do ano passado —período em que o governo pagava um auxílio
emergencial maior e uma complementação de salário.
Como de hábito, a avaliação do governo é
pior entre mulheres, mais pobres, moradores do Nordeste e mais jovens. Mesmo na
região Sul, em que o mandatário colhe resultados menos ruins, a taxa de
reprovação é de 44%.
Se a retomada da economia parecia a melhor aposta para uma mudança de humores do eleitorado, a situação de Bolsonaro nessa frente vai se tornando dramática.
Mesmo com manobras orçamentárias, reduz-se o espaço para a prometida ampliação do Bolsa Família. As projeções para o crescimento econômico no próximo ano recuam para o patamar de 1%; as perspectivas de escassez de água e energia elétrica agravam o quadro.
O desemprego tende a permanecer alto por
muito tempo, e mesmo algum alívio entre pobres e informais é ofuscado pelo
impacto da alta da inflação. Não haverá tão cedo aumento de rendimentos do
trabalho que supere de modo notável as perdas do poder de compra.
Difícil conceber outras áreas de atuação
que permitam a Bolsonaro somar pontos a seu favor.
Não tem como apagar o desastre que promoveu
na saúde e a mortandade provocada pela Covid-19; pode, quando muito, apostar no
esquecimento ou na complacência do eleitorado. Não tem nem terá realizações de
governo a apresentar, pois, afinal, não governa.
O que faz para reter seu eleitorado mais
fervoroso —atos antidemocráticos, pregação de ódio, manifestação de
preconceitos variados contra a diversidade humana— alimenta a sua reprovação
entre estratos majoritários da sociedade. Mesmo aos fiéis, que decepcionou com
um recuo recente, nada tem a apresentar além de falatório.
Sua impopularidade não é circunstancial,
motivada por algum revés inesperado. Trata-se de tendência consistente,
correlacionada com a tensão política e econômica e, tudo indica, de difícil
reversão.
A fatia da educação
Folha de S. Paulo
PEC para flexibilizar gasto expõe norma que
garante verba sem cobrar resultado
Há previsível celeuma em torno da proposta
de emenda à Constituição que autoriza governadores e prefeitos a descumprir
temporariamente o gasto mínimo em educação, aprovada
em primeiro turno pelo Senado.
Conforme o artigo 212 da Carta, estados,
municípios e o Distrito Federal são obrigados a aplicar 25% das receitas de
impostos em “manutenção e desenvolvimento do ensino”, um grupo de despesas
definido na legislação. A PEC abre exceções para os anos de 2020 e 2021,
determinando que seja feita uma compensação até 2023.
A pandemia de Covid-19 parece uma
justificativa plausível para a medida. Afinal, houve grande desorganização das
finanças públicas, motivada pela queda temporária da arrecadação e pelo
imperativo de destinar mais recursos à saúde, além de profundas mudanças nas
rotinas escolares.
Ademais, a fixação de prazo não muito longo
para a reposição dos gastos deve evitar uma oscilação excessiva dos dispêndios
no setor. Pelo que foi dito nos debates da PEC, apenas cerca de 5% dos
municípios descumpriram as exigências legais no ano passado, e um único estado,
o Rio, foi mencionado.
A proposta, impulsionada pelo lobby das
prefeituras, obteve maioria relativamente confortável de 57 a 17 no primeiro
turno —uma mudança constitucional exige o apoio de 49 dos 81 senadores. Mas a
resistência ao texto, ainda a ser examinado pela Câmara dos Deputados, deve
continuar ruidosa.
O financiamento da educação será sempre
questão prioritária. Causam alarme, além disso, os danos provocados pela
pandemia e pela gestão ruinosa do MEC sob Jair Bolsonaro. Está em jogo também,
entretanto, uma norma constitucional há muito questionada.
O Brasil já destina à educação pública uma
fatia de sua renda compatível com os padrões internacionais, embora seus
resultados deixem a desejar. Os dados indicam que aumento da eficiência e
melhor distribuição do gasto, agora, são os objetivos mais relevantes.
Nesse contexto, faz pouco sentido manter
indefinidamente uma mesma regra de gasto para milhares de unidades federativas
tão diferentes entre si, como advogam as corporações do setor.
Esta Folha defende que as políticas educacionais,
em todos os níveis de governo, deem ênfase a metas plurianuais para indicadores
de aprendizado e evasão escolar, entre outros. A despesa, que não é objetivo em
si mesma, deve estar condicionada a desempenho.
Quarentena para juízes e policiais entrarem
na política é decisão correta
O Globo
Em meio ao retrocesso que representa quase
todo o Novo Código Eleitoral de 898 artigos — aprovado pela Câmara numa
velocidade espantosa sem a discussão detida que cada tema mereceria —, uma das
medidas que despertaram mais controvérsia acabou tendo uma solução
satisfatória.
Foi acertada a decisão dos deputados de
modificar a proposta de quarentena para juízes, procuradores, policiais e
militares. Na versão original — cujo objetivo inconfessado era impedir a candidatura
do ex-juiz Sergio Moro à Presidência —, quem quisesse concorrer já em 2022
deveria estar há mais de cinco anos afastado do cargo. A absurda regra
retroativa foi substituída por outra mais razoável: quem quiser disputar
eleições a partir de 2026 deverá deixar a função a partir de 2022.
Na prática, a medida, se aprovada no
Senado, preservará o Legislativo e o Executivo de oportunistas que usam
carreiras de Estado como trampolim para a política. Será uma tentativa de
blindar o país daqueles que, ainda exercendo cargos públicos, tomam decisões
mais de olho nas urnas que nas suas funções.
Um dos que mais protestaram contra a decisão foi o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP), líder da “bancada da bala”. O deputado Vitor Hugo (PSL-GO), outro integrante da bancada, argumentou que a decisão desprestigiava “aqueles que todos os dias lutam pela nossa segurança pública”. Os dois parecem ter esquecido casos de policiais que lideraram greves ilegais para depois disputar eleições.
Pelo menos um bom motivo foi alegado contra
a medida. Ela fora retirada por uma diferença de três votos do texto do Código
Eleitoral na primeira fase de análise das emendas para modificar o conteúdo do
projeto. Depois o tema voltou ao texto pelas mãos de deputados do Centrão por meio
de uma manobra conhecida, a emenda aglutinativa, que resulta da fusão de outras
emendas. Parlamentares argumentaram com razão já terem rejeitado a proposta.
Infelizmente, a emenda aglutinativa é um recurso que consta do regimento da
Câmara.
A reforma precisa ser aprovada no Senado e
sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro até 2 de outubro para valer nas
eleições do ano que vem. Não está descartada a hipótese de um acordo lograr a
proeza, mesmo com esse prazo exíguo. O melhor, no entanto, seria o Senado
prosseguir com o devido cuidado.
O acerto na definição da quarentena é
apenas uma mudança positiva entre tantas outras problemáticas. O novo Código
Eleitoral diminui a transparência dos gastos dos partidos, enfraquece a
fiscalização, tira poder da Lei da Ficha Limpa e censura a divulgação de
pesquisas eleitorais na véspera e no dia das eleições. Os senadores devem fazer
todas as correções necessárias e enviar o texto de volta para a Câmara. Não há
problema se não der tempo de as mudanças valerem no ano que vem. Um retrocesso
sempre é pior.
Texto da reforma administrativa ficou
inaceitável
O Globo
A pressão das corporações do funcionalismo
deteriorou significativamente a proposta de reforma administrativa. O texto que
deverá ser votado na Comissão Especial na semana que vem constitui um arremedo
de reforma. Fica muito distante de promover a transformação necessária para
modernizar o Estado brasileiro. Em vez de corrigir injustiças, a proposta
mantém privilégios, instaura novas blindagens para o funcionalismo na
Constituição e, se aprovada na atual formulação, agravará as distorções que
fazem do setor público brasileiro uma máquina de gerar desigualdade. Na forma
como está, o texto é inaceitável.
O relator, deputado Arthur Maia (DEM-BA),
atendeu a quase todas as demandas corporativas das categorias que souberam
exercer pressão. Excluiu das mudanças todos os funcionários já contratados e
deixou de lado a elite do funcionalismo, em particular juízes e procuradores.
Na prática, a vedação de privilégios como férias de 60 dias, promoções
automáticas, licenças-prêmio e aposentadorias compulsórias se tornará inócua,
pois eles já não existem nas categorias contempladas — e permanecerão intocados
lá onde existem, no Judiciário e no Ministério Público.
A injustiça não para aí. O texto grava na
Constituição a autorização para acúmulo de salários e verbas indenizatórias,
como os auxílios moradia, viagem, alimentação. Deixa intactos privilégios como
o duplo teto salarial (comum entre militares em cargos no governo) e a licença
remunerada para concorrer em eleições. É omisso quanto aos cargos comissionados
e, mesmo que crie a dispensa por funções obsoletas, preserva todos os já
contratados. Embora crie a possibilidade de contratos temporários, mantém a
estabilidade de todos os funcionários, independentemente do que façam, e nem
toca na possibilidade de reduzir salários e jornadas diante de necessidades
orçamentárias. Para não falar nos jabutis inseridos nesta semana para agradar a
policiais e forças de segurança.
Em benefício dessas categorias, Maia impôs
um recuo nos avanços conquistados pela reforma da Previdência em vários
estados. Garantiu aposentadoria integral e paridade nos reajustes aos policiais
contratados até 2019. Assegurou pensão integral por morte no exercício da
função, em vez de proporcional ao tempo de serviço (como instituíra a reforma
previdenciária). Para completar, concedeu foro privilegiado aos
diretores-gerais da Polícia Federal (PF) e da Polícia Civil, além de conferir à
PF um status especial que a preserva do controle externo pelo Ministério
Público. Rigorosamente tudo isso é absurdo.
O mais lamentável é que, de todas as reformas, a administrativa é a crucial para desvencilhar o Brasil de seu mal mais tenaz e insidioso: a ineficiência crônica do setor público, incapaz de prestar serviços de qualidade ao cidadão. A maior deficiência na gestão do Estado brasileiro é a falta de critérios de avaliação que permitam atrair e manter a mão de obra competente nos setores em que é mais necessária. A tentação nessas horas é sempre gravar direitos em pedra, transformando a Constituição numa catedral em cuja fachada cada corporação tenta esculpir seu privilégio particular, mas cujas fundações são incapazes de suportar todo o peso. É uma lástima que, diante da oportunidade de promover uma reforma robusta, Maia tenha cedido às pressões e seguido esse mesmo caminho.
Sem política social, apenas interesse
eleitoral
O Estado de S. Paulo
O governo Bolsonaro não tem política pública social. Alega não dispor de recursos. No entanto, tem dinheiro para agradar sua base
O governo de Jair Bolsonaro não tem
política pública social. Alega não dispor de recursos. No entanto, Bolsonaro
tem dinheiro para agradar a sua base eleitoral. Na segunda-feira, o governo e a
Caixa Econômica Federal anunciaram uma nova linha de financiamento imobiliário,
com juros subsidiados, voltada exclusivamente para policiais e bombeiros.
Num Estado Democrático de Direito, no qual
vigora o princípio da igualdade, é inconstitucional que algumas categorias
profissionais sejam privilegiadas com juros mais baixos, enquanto o restante da
população não tem acesso ao benefício. Por que um policial deve ter mais facilidade
para comprar a casa própria do que uma professora, uma enfermeira, uma
assistente social ou um motorista de ônibus, por exemplo?
Por definição, políticas públicas devem
atender quem mais precisa. Os recursos públicos não podem ser usados para beneficiar
familiares, amigos ou base eleitoral de um político. Tal restrição é evidente.
O dinheiro público deve atender ao interesse público, não a objetivos
particulares.
Segundo o governo, o novo programa de
subsídio de juros receberá R$ 100 milhões do Fundo Nacional de Segurança
Pública. Ora, o objetivo desse fundo é apoiar projetos na área de segurança
pública e prevenção à violência, segundo as diretrizes do Plano Nacional de
Segurança Pública. São recursos que devem servir a toda a população. Seu destino
não é favorecer funcionários públicos envolvidos na segurança pública.
A concessão de privilégios por parte de
Bolsonaro a policiais e bombeiros não apenas tem um explícito caráter
eleitoreiro – usa e abusa do cargo para tentar se manter no poder –, mas
evidencia desprezo pela situação da população. Sempre, mas especialmente num
quadro de crise social e econômica, é preciso priorizar quem mais necessita.
Num cenário de crescimento acelerado da
pobreza e da extrema pobreza, com cada vez mais pessoas em situação de extrema
vulnerabilidade, o presidente Bolsonaro, como se fosse um vereador, anunciou
que sua base eleitoral poderá comprar a casa própria com juros subsidiados pelo
restante da população. Eis um governo que prima pela total ausência de solidariedade.
A rigor, política pública social não é
questão de altruísmo, mas dever essencial do governante. Diz o artigo 3.º da
Constituição: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o
desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; (iv) promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”.
Jair Bolsonaro não cumpre, portanto, o
compromisso que fez de respeitar a Constituição quando omite a promoção de
políticas públicas sociais. Vale lembrar que, no primeiro semestre, o País bateu
recordes de desigualdade social. De acordo com o Centro de Políticas Sociais da
Fundação Getulio Vargas (FGV), no período de janeiro a março, a desigualdade de
renda proveniente do trabalho foi a maior da série iniciada no fim de 2012. Com
tal cenário, não há espaço fiscal, cívico ou moral para conceder privilégios à
base eleitoral.
No mês passado, o governo federal editou a
Medida Provisória (MP) 1.061/21, que extinguiu o programa Bolsa Família e criou
o Auxílio Brasil. Em tese, a mudança poderia ser uma oportunidade de retificar
e melhorar o programa de distribuição de renda. No entanto, além de ter graves
deficiências, a MP 1.061/21 não recebeu nenhuma atenção do Palácio do Planalto,
preocupado em promover as manifestações do 7 de Setembro.
É necessário realizar uma profunda reforma
social, capaz de promover a autonomia de todos os cidadãos. Com urgência, o
País precisa de políticas públicas sociais responsáveis, que atendam de forma
mais efetiva possível quem mais precisa. Segundo a Constituição, esse é o
melhor destino para o dinheiro público – que, por sinal, nunca deve ser usado
para comprar voto ou arrebanhar simpatizantes. Dependência é antônimo de
cidadania.
A democracia e a privacidade de dados
O Estado de S. Paulo
Internet, redes sociais e tecnologias de
vigilância podem ameaçar valores democráticos
Promovido pela Escola de Direito do Rio de
Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV), o seminário sobre Os desafios da regulação moderna debateu
as questões relativas às dificuldades que os regimes democráticos vêm
enfrentando atualmente em decorrência da expansão da internet e das redes
sociais.
Essa questão, que envolve a privacidade dos
usuários da internet e o questionamento da eficácia das leis sobre proteção de
dados no mundo inteiro, foi discutida pelo economista francês Jean Tirole, da
Universidade de Toulouse. Especialista em regulação dos mercados, especialmente
nos setores com poucas e poderosas empresas com atuação em escala mundial, como
é o caso do Google e do Facebook, Tirole foi ganhador do Prêmio Nobel de
Economia de 2014. Seus livros discutem a teoria dos jogos, assimetria de informações
e modelos de oligopólio.
Apesar de considerar que o compartilhamento
e a difusão de dados pela internet são importantes na execução de políticas
públicas, Tirole afirmou que eles pecam pela falta de transparência e lembrou
dos problemas que isso traz para a democracia. Para ele, os formulários de
concordância sobre uso de dados para acessar os dados não são compreensíveis
para os usuários comuns, chegando algumas vezes a ponto de iludi-los.
Além disso, as leis sobre proteção de dados
contêm brechas no que se refere ao uso de dados sem consentimento, ao volume de
investimentos em segurança digital e dúvidas sobre sua retransmissão a
terceiros. O mais adequado seria a adoção de mecanismos de regulação paralela
aos previstos pela legislação e iniciativas mais firmes dos governos para
proteger os usuários, disse Tirole. A seu ver, a privacidade não deve ser
entendida só como uma questão individual, mas como algo fundamental para a
democracia. Ela é um bem coletivo cuja preservação afeta toda a sociedade, uma
vez que depende não só de decisões individuais, mas, também, de decisões de
outros cidadãos.
O ganhador do Nobel de 2014 também discutiu
os procedimentos de coleta de dados no ambiente virtual, especialmente os
sistemas de crédito social que estão sendo concebidos com o objetivo de dar ou
limitar o acesso das pessoas a serviços ou de funcionar como indicador de
confiabilidade. Na China, por exemplo, o sistema de crédito social que vem
sendo desenvolvido usará big data e inteligência artificial para classificar
cidadãos e empresas, o que vai incluir uma série de critérios sobre pagamento
de impostos e dívidas.
O problema desse tipo de sistema é que,
quando utilizado como mecanismo de avaliação de opiniões políticas e
religiosas, permite o controle governamental de dissidentes do regime chinês,
advertiu Tirole. Ele lembrou que esse tipo de controle não é novo, tendo sido
utilizado na forma analógica pela polícia política da antiga Alemanha Oriental,
a Stasi, durante a guerra fria. A diferença é que o custo para a Stasi era
muito alto, enquanto agora, com a internet, é baixo. “A inteligência artificial
vai descobrir o que cada cidadão fez e quem são seus amigos. Suas atividades
estarão registradas por câmeras na rua. E isso vai destruir o tecido social de
quem tiver baixa classificação. Isso já existe e é atraente para os regimes
autocráticos”, lembrou Tirole.
Neste período de competição geoestratégica,
em que os Estados Unidos encaram a era digital como negócio e a China a vê como
instrumento de poder, a exposição feita por Tirole sobre a tensão entre big
data e democracia no seminário promovido pela FGV não poderia ter sido mais
oportuna. Ele chamou a atenção para o risco de que a proteção da privacidade
seja deturpada e convertida em mecanismo de perseguição política, abrindo assim
caminho para a substituição de sociedades plurais, em que prevalecem os valores
democráticos e as liberdades políticas, pela chamada “sociedade disciplinar”,
em que as tecnologias de vigilância permitem aos governantes desprezar as
garantias e liberdades fundamentais em nome da segurança do regime.
Um respiro em julho
O Estado de S. Paulo
Há sinais positivos, mas desgoverno e
incertezas derrubam projeções econômicas
A economia avançou 0,6% em julho,
prenunciando talvez um segundo semestre melhor que o primeiro, de acordo com o
Índice de Atividade do Banco Central (IBC-Br), usado como sinalizador de
tendência dos negócios. Alguns sinais positivos já haviam aparecido. Ainda em
julho as vendas do comércio varejista cresceram 1,2% e o setor de serviços
produziu 1,1% mais que no mês anterior. A indústria, no entanto, continuou
emperrada, sua produção foi 1,3% menor que a de junho e ficou de novo abaixo do
patamar pré-crise, de fevereiro do ano passado. Apesar de alguma melhora, o
cenário continuou apresentando áreas de luz e de sombra.
É lenta a recuperação indicada pelo BC. No
trimestre móvel encerrado em julho a atividade foi 0,02% inferior à do período
fevereiro-abril. Além disso, o crescimento de junho em relação a maio foi
revisto de 1,14% para 0,92%. Os dados continuam mostrando uma forte retomada a
partir do ano passado, mas a base do confronto – a fase inicial da pandemia – é
muito baixa. Por isso, o indicador de julho foi 5,53% superior ao de um ano
antes e o dado trimestral superou por 9,44% o de maio-julho de 2020. O avanço
acumulado no ano foi 6,60% maior que o de janeiro a julho do ano passado, e o
crescimento em 12 meses chegou a 3,26%.
O crescimento mensal do indicador ficou
dentro das projeções captadas no mercado pelo Broadcast, serviço em tempo real
da Agência Estado, mas superou a taxa apontada pela maioria dos consultados,
0,40%. Nesta altura, só uma grande surpresa positiva – nos indicadores
econômicos e na política – poderia alimentar expectativas mais otimistas. O
IBC-Br foi divulgado na manhã de quarta-feira. No dia anterior, instituições de
peso haviam confirmado a redução das estimativas de crescimento em 2022.
O Itaú Unibanco baixou de 1,5% para 0,5% a
expansão do Produto Interno Bruto (PIB) projetada para o próximo ano. A consultoria
MB Associados cortou sua estimativa de 1,4% para 0,4%. Na XP Investimentos a
revisão foi de 1,7% para 1,3%. No Banco BV, de 1,8% para 1,5%. Na segunda-feira
o BTG havia reduzido sua previsão de 2,2% para 1,5%.
Comparadas com as mais sombrias, apostas em
crescimento superior a 1% em 2022 parecem apontar uma situação quase normal,
quase tolerável. Mas um olhar mais amplo ajuda a perceber a enorme deterioração
das expectativas. Em um mês, a mediana das projeções do mercado caiu de 2,04%
para 1,72%, apontando um desastroso final de mandato para o presidente Jair
Bolsonaro.
As estimativas para este ano também têm
piorado e já chegaram a 5,04%. Quatro semanas antes ainda estavam em 5,28%. As
expectativas para 2021 ainda são próximas de 5%, no entanto, porque se referem
à retomada inicial depois de um tombo de 4,1%.
Mas é arriscado falar até de um retorno ao
normal. Economistas levam em conta, ao desenhar cenários para 2021, o baixo
potencial de crescimento, já conhecido antes da recessão de 2015-2016, e alguns
fatores característicos da era Bolsonaro. Desgovernado, o País vive o dia a dia
sem planejamento, sem programas e sem rumo, com projetos lançados aqui e ali
sem articulação de propósitos, enquanto os ministros se atropelam e o
presidente negocia seus interesses com apoiadores famintos por dinheiro
público.
O chefe de governo cuida de si e de sua
família, ouve os piores conselheiros, escolhe o conflito como estilo de ação,
gera tensões, despreza os cuidados com o Tesouro, cria insegurança, desarranja
o câmbio e agrava, com sua irresponsabilidade, a incerteza econômica e as
pressões inflacionárias.
Sem um Executivo para proteger as contas públicas e transmitir sinais positivos ao mercado, fica para o BC todo o trabalho de cuidar das expectativas e tentar conter a inflação crescente. O BC fará o necessário, tem dito seu presidente, Roberto Campos Neto, para frear a alta dos preços. Diante desse compromisso, analistas do mercado elevam suas projeções de juros e baixam suas estimativas de crescimento, já afetadas pelo desgoverno cada vez mais perigoso e pela irresponsabilidade presidencial.
Sob pressão, governo chinês amplia
intervenção doméstica
Valor Econômico
Ofensiva atinge os setores mais inovadores
da economia
Após uma ascensão sem obstáculos à posição
de segunda maior potência econômica do mundo, a China enfrenta agora a oposição
dos países desenvolvidos a suas aspirações de liderar a revolução tecnológica,
de estender seu poderio militar em sua área de influência, com ambições
territoriais revividas. A reação começou com o presidente americano Donald
Trump, ganhou contornos estratégicos definidos com Joe Biden e conta com apoio
matizado da União Europeia. A reação do governo chinês aos perigos que marcam o
presente e se arrastarão pelo futuro foi aumentar sua intervenção em vastos
setores da vida social, cultural e econômica do país. A resposta se adequa à
estratégia de poder do presidente Xi Jinping, o mais poderoso líder desde Mao
Tse-tung.
Xi sepultou o esquema de direção colegiada
do Partido Comunista Chinês, vigente desde Deng Xiao-ping, e obteve apoio para
eliminar restrições para a continuidade no cargo (dois mandatos de 5 anos) e
nas instâncias decisórias do partido - é secretário-geral e presidente da
Comissão Militar desde 2012. Ele está mudando orientações consolidadas que, mal
ou bem, permitiram o estrondoso sucesso econômico da China.
Ditaduras de partido único nunca abriram
mão do controle total. “Aquele que domina a informação tem a dianteira”, disse
certa vez Xi. Diante da ofensiva externa e das necessidades de consolidação de
seu mando, Xi busca a reconfiguração do poder e raio de ação das gigantes
tecnológicas, como Alibaba, Tencent, Didi, Meituan etc. Informações pessoais
ganharam status de segurança nacional e nesse ponto ninguém conhece melhor a
vida e hábito dos chineses do que as donas dos aplicativos mais usados do
planeta, bem à frente do enorme aparato de segurança oficial.
Os líderes chineses criam slogans para
carimbar seus movimentos políticos. O de Xi é “prosperidade comum”, em
substituição ao “fique rico antes”. Com isto, os órgãos reguladores estão pondo
fim ao autêntico vale-tudo, típico do capitalismo selvagem, das big techs
chinesas. A lista de proibições mostra o alcance das práticas anticompetitivas:
explorar dados de clientes para vetar produtos de concorrentes, limitar tráfego
de outras plataformas bloqueando hiperlinks, propaganda e análise online
fraudulentas etc.
A Alibaba, de Jack Ma, é o alvo mais
vistoso e exemplar. O governo obrigou o Alipay, com 1 bilhão de usuários, a
criar outra companhia e app para empréstimos e mais uma, para o score de
crédito. Detalhe: será uma joint venture em que uma estatal entra com
participação ínfima no capital, mas com direito a assento na direção da
empresa. Outras três estatais entraram com 1% de participação, mas vaga no
Conselho, da Bytedance, que controla o TikTok, hit mundial.
Ações com a mesma finalidade se espalham em
várias direções. Negócios de US$ 280 bilhões de empresas de cursos
preparatórios ao ingresso nas melhores universidades chinesas - mais difícil
até que na liga de elite americana - foram dizimados com a determinação oficial
de que só serão permitidas entidades sem fins lucrativas nesse setor.
Há mais: em novembro entra em vigor a Lei
de Proteção de Informação Pessoal, que determina que dados que saem da China
terão de ser submetidos à aprovação do Administração do Cyberespaço ou outro
órgão oficial, o que obrigará as multinacionais instaladas no país a ter in
loco parte de seus data-centers. E os chineses estão inovando ao regular os
algoritmos, restringindo induções de compra feitas com base em todo o tipo de
informações pessoais dos clientes.
As mudanças de Xi não são impopulares. A
China tem uma péssima distribuição de renda e as ações atingem, em primeiro
lugar, os bilionários, com efeitos colaterais benéficos aos trabalhadores. O
governo abriu fogo contra o habitual 996, a dura jornada de 9 horas de trabalho
seis dias por semana vigente no país e comum entre big techs, entregadores e
transportes por aplicativos, e contra a sabida baixa remuneração que todo esse
esforço proporciona.
O fim último do governo é se apropriar da fantástica rede de dados sobre os cidadãos em posse das empresas de tecnologia. A ela já se acrescentam as fornecidas pela tecnologia de ponta do reconhecimento facial, apoiada por 450 milhões de câmeras de vigilância - uma para cada três habitantes. A questão vital é o poder político, mas a ofensiva atinge os setores mais inovadores da economia. Para conquistar a vanguarda tecnológica, meta declarada do governo, ele não pode matar a inovação. Esse é um equilíbrio, porém, que uma liderança sem controles pode destruir.
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