quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Alta da gasolina não é culpa dos governadores

O Globo

Há exatamente um ano, para encher o tanque de um carro popular, como o Onix, com gasolina comum no Rio, o dono do veículo gastava R$ 211, de acordo com pesquisa da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis em postos da cidade. Hoje o mesmo motorista precisa desembolsar R$ 288. Há um ano, o valor gasto atualmente para encher três tanques era suficiente para pagar por quatro e ainda sobravam uns trocados. A alta de 36% em tão curto espaço de tempo assusta os proprietários de automóveis, alimenta a inflação e tira o sono do presidente Jair Bolsonaro, ciente de que essa é uma das principais causas da queda em sua popularidade a cerca de um ano das eleições de 2022.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), num discurso em Alagoas na terça-feira, mostrou estar acompanhando o tema ao dizer que “ninguém aguenta mais o combustível alto”. Quando uma autoridade da República dá sinais de que também se interessa pelo que acontece aos cidadãos nas ruas, merece aplausos. Lira parece, contudo, mais preocupado com o custo político para o governo que com o bolso dos motoristas.

Em seu discurso, ele deu provas de que não sabe — ou não quer — mirar no alvo. De forma retórica, perguntou: “Sabe o que faz o combustível ficar caro?”. Em seguida, deu a resposta: “São os impostos estaduais. Os governadores têm de se sensibilizar”. Lira prometeu debater um projeto sobre a incidência do ICMS, um tributo estadual. É o mesmo argumento falacioso usado pelo governo Bolsonaro para transferir a responsabilidade para seus adversários políticos.

Um ano atrás, quando a gasolina estava mais barata, as alíquotas de ICMS eram as mesmas de hoje. Não foi o imposto que fez os preços subirem. A principal causa é a alta na cotação do petróleo. O dólar subindo também dá sua contribuição. E o maior motivo para o real continuar a desvalorizar, não é novidade, é o risco decorrente da política econômica errática do governo e das sucessivas crises políticas protagonizadas por Bolsonaro.

Ao falar no assunto, Lira nem cogitou mudanças nos vários impostos federais que incidem sobre a gasolina: a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), as contribuições ao Programa de Integração Social (PIS) e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), além da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que juntas somam 11% do preço final. Em março, o governo alterou PIS e Cofins para o diesel e o gás, mas não para a gasolina.

Num sinal de que não aprendeu nada com os desmandos na Petrobras e as tentativas de manipulação dos preços nos tempos de Dilma Rousseff, o presidente da Câmara também defendeu numa rede social que a petrolífera mudasse a política de repasses de aumentos.

Se Lira estivesse seriamente preocupado com a surreal estrutura de impostos do Brasil, teria apoiado a proposta de reforma tributária que colocava fim à guerra fiscal. Não o fez e agora ecoa o discurso bolsonarista que tem apenas duas finalidades: eximir o presidente de qualquer responsabilidade pelo aumento dos combustíveis e jogar a culpa nos governadores.

Volta do público aos estádios exige responsabilidade e fiscalização

O Globo

Depois de um ano e meio de estádios fechados na pandemia, os times brasileiros poderão se reconciliar com suas torcidas. Na terça-feira, o Conselho Técnico de Clubes da Série A liberou a volta do público a partir da 23ª rodada do Brasileirão, no próximo fim de semana. Dos 20 participantes, apenas Athletico Paranaense foi contra. Defendia que as regras atuais se estendessem até o fim do torneio. O Flamengo, que chegou a recorrer ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) para garantir a presença de torcida em seus jogos, não foi à reunião.

Embora a aprovação se aplique a todos os clubes da elite do futebol brasileiro, as normas não serão iguais, já que dependerão dos protocolos de estados e municípios. Melhor assim, pois a epidemia tem características diferentes nos diversos locais. Em São Paulo, as regras de flexibilização só permitirão a presença de torcedores a partir de 4 de outubro. Na Bahia, onde os casos de Covid-19 voltaram a subir, o governo ainda não liberou a volta do público. O percentual de ocupação das arenas ficará a critério das autoridades locais.

Com o avanço da vacinação — quase 70% dos brasileiros já receberam ao menos a primeira dose, e cerca de 40% estão completamente imunizados — e a redução no número de infectados e mortos por Covid-19, é razoável que as atividades sejam gradualmente retomadas. No dia 10, a Prefeitura do Rio já flexibilizara normas para frequentadores de academias, centros de treinamento e piscinas, além de permitir aumento de capacidade para teatros, cinemas, museus e pontos turísticos.

Mas não se deve pensar num “liberou geral”. Estádios de futebol são ambientes propícios à superdifusão (situação em que um único infectado transmite a doença a dezenas de pessoas). A vacina, eficaz para reduzir hospitalizações e mortes, não impede toda transmissão do vírus. Daí a necessidade de manter protocolos, como exigência de certificado de vacinação, uso obrigatório de máscaras, distanciamento e redução da capacidade dos estádios.

Antes mesmo de os clubes da Série A aprovarem a volta do público às arenas, algumas experiências pontuais já estavam em andamento, especialmente nas partidas da Copa Libertadores. Nem sempre com resultados satisfatórios. Na noite de terça-feira, em Belo Horizonte, a disputa entre Atlético Mineiro e Palmeiras serviu de alerta às autoridades. Houve aglomeração na entrada do Mineirão, os portões foram fechados além do horário previsto, torcedores tiravam a máscara tão logo passavam pelas barreiras de fiscalização.

É desejável que os clubes possam retomar sua rotina. Está claro que teremos de conviver com o vírus por um bom tempo, e o jeito é se adaptar. A volta do público exigirá responsabilidade e fiscalização. Embora a Justiça tenha suspendido em caráter liminar a exigência da carteira de vacinação no Rio, o passaporte sanitário deveria ser obrigatório para entrar nos estádios. Espera-se que instâncias superiores derrubem a decisão. E é importante que as autoridades monitorem os efeitos da liberação, para que ela não se transforme numa derrota para todos.

Combustível para a demagogia

O Estado de S. Paulo

Pretender que problemas como o do preço dos combustíveis sejam resolvidos com passes de mágica fajuta é típico de quem vive de vender terrenos na Lua

O presidente Jair Bolsonaro ganhou um reforço de peso em sua campanha para confundir a opinião pública a respeito dos preços dos combustíveis e atribuir a terceiros uma responsabilidade que é parcialmente sua e de seu governo. Trata-se do presidente da Câmara, Arthur Lira, que, na terça-feira passada, sem nenhum pudor, disse que “ninguém aguenta mais” a alta da gasolina e anunciou que vai colocar em debate um projeto para fixar o valor do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre os combustíveis.

“Sabe o que faz o combustível ficar caro? São os impostos estaduais”, declarou o deputado, acrescentando que os governadores têm arrecadado muito na pandemia – sugerindo haver interesse dos Estados na carestia.

Trata-se de uma farsa em múltiplas dimensões, a começar por uma inexistente relação de causalidade. De fato, os Estados estão aumentando expressivamente sua arrecadação, graças em parte ao aumento dos preços dos combustíveis e da tarifa da energia elétrica, principais fontes de cobrança de ICMS. Mas, no caso dos combustíveis, o ICMS é cobrado sobre o preço médio ponderado ao consumidor final – ou seja, mesmo na hipótese maluca de que o ICMS fosse zero (o que, diga-se, o presidente Bolsonaro já teve a audácia de propor, ignorando a enorme importância desse imposto para os Estados), o preço provavelmente seria pouco afetado. 

Por isso, não é o aumento da arrecadação do ICMS que faz subir o preço do combustível, como dizem os bolsonaristas; é, ao contrário, o aumento do preço dos derivados de petróleo que faz crescer a arrecadação, porque a base de cálculo sobre a qual incide o tributo é o preço final do combustível; se essa base aumenta, necessariamente aumentará a arrecadação sobre esse produto, sem que tenha havido mudança nas regras de cálculo ou aumento da alíquota.

Na segunda-feira passada, o presidente da República queixou-se de novo do alto preço dos combustíveis. De maneira elegante, o presidente da Petrobras, general da reserva Joaquim Silva e Luna – escolhido por Bolsonaro com a intenção óbvia de interferir na estatal para frear os preços dos combustíveis –, disse que a empresa não alteraria sua política de preços, que procura acompanhar as alterações do mercado internacional. Ato contínuo, a Petrobras aumentou o preço do diesel, o que afetará os fretes rodoviários, num país cuja matriz de transporte é predominantemente rodoviária.

Em favor de Bolsonaro e Arthur Lira, é preciso reconhecer que os dois não são os únicos demagogos a oferecer aos incautos a ilusão de que o preço dos combustíveis sobe ou desce por ato de vontade, e não por força das circunstâncias de mercado. A política da Petrobras foi criticada também pelo antípoda de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o chefão petista, “o que está acontecendo é que a Petrobras está acumulando verba para pagar acionista americano”. É o estado da arte da vigarice lulopetista – a mesma que, sob o infausto governo de Dilma Rousseff, obrigou a Petrobras a subsidiar gasolina barata para segurar a inflação, o que quase quebrou a estatal. 

A explicação para a alta dos preços dos combustíveis é bem mais complexa do que pretendem fazer crer os populistas irresponsáveis. O cenário econômico difícil e uma conjuntura política tensa, graças à incompetência e à truculência de Bolsonaro, tiveram como uma de suas consequências a disparada do dólar – e, por tabela, dos derivados de petróleo.

Ademais, a desvalorização do real potencializa, no caso dos combustíveis, um problema mundial, que é o crescimento muito rápido da demanda. O alívio proporcionado pelo avanço da vacinação estimula a procura por muitos bens, inclusive os da área energética. O resultado é o aumento dos preços – o petróleo alcançou, nesta semana, sua cotação mais alta em três anos – e, agora, o temor de sua escassez.

Pretender que problemas dessa extensão sejam resolvidos com passes de mágica fajuta é típico de quem, como Bolsonaro, Lula, Arthur Lira e companhia bela, vive de vender terrenos na Lua.

Propaganda descarada

O Estado de S. Paulo

Beneficiários do Conecta Brasil são obrigados a assistir à propaganda oficial

O presidente Jair Bolsonaro é conhecido por não separar assuntos de Estado, de governo e os relativos a seus interesses particulares. Na visão deturpada do mandatário sobre os limites do cargo e a relativa autonomia de ação que a legitimidade das urnas lhe confere, toda política pública implementada por seu governo tem de vir em benefício do próprio presidente ou de seus apaniguados antes de qualquer outra coisa. Essa má concepção do que seja exercer a Presidência da República está na origem de uma série de atitudes de Bolsonaro que têm levado o País à ruína moral, política, econômica e social.

O exemplo mais recente dessa perniciosa confusão se deu na zona rural do Piauí, no município de Santa Filomena, escolhido para a instalação de um novo hub de internet sem fio do projeto Conecta Brasil, do Ministério das Comunicações. Estudantes, professores e moradores da cidade têm de assistir, obrigatoriamente, a 30 segundos de propaganda sobre programas sociais do governo federal a cada vez que acessam a rede. Não há como “pular” o vídeo institucional, pois a peça publicitária é uma imposição aos beneficiários do chamado Wi-Fi Brasil. O descalabro foi revelado pelo Estado.

“Para usar o Google e o Caixa Tem, a gente tem de assistir ao vídeo”, disse à reportagem a estudante Gabriela Silva, de 14 anos, aluna do 9.º ano da Escola Municipal Anita Studer, localizada no povoado de Sete Lagoas. “Se o usuário precisar entrar na internet cinco vezes no dia, ele vai ter de assistir à propaganda cinco vezes. Se demorar para usar, a rede desconecta e tem de assistir tudo de novo.” O único aplicativo que pode ser usado sem propaganda oficial é o WhatsApp.

Sabe-se que o governo Bolsonaro, entusiasta do tal “Escola sem Partido”, é obcecado por fantasmas que habitariam livros didáticos e pela suposta ação insidiosa de professores “comunistas” e “libertinos” na formação dos alunos. Pois é esse mesmo governo que força as crianças e adolescentes do interior do Piauí e de outras localidades onde está presente o Wi-Fi Brasil, seus professores e moradores da cidade a se tornarem público cativo da propaganda governista. De acordo com o Ministério das Comunicações, são 26 milhões de cidadãos atendidos pelo programa Conecta Brasil. Um ativo eleitoral que um presidente nada afeito à ética republicana dificilmente deixaria incólume.

A ação já seria condenável do ponto de vista moral, mas ainda se trata de uma clara violação do princípio da impessoalidade, um dos pilares da administração pública consagrados pela Constituição. O que o governo Bolsonaro faz, de forma descarada, é usar uma política pública como plataforma de veiculação de propaganda eleitoral – uma propaganda obviamente ilegal.

Tão desvirtuado foi o Conecta Brasil que o ministro das Comunicações, Fábio Faria (PSD), disse no discurso de lançamento do programa em Santa Filomena que “a internet é a fonte alternativa de informações” ao que chamou de “notícias contra o presidente”. Sabe-se muito bem o que o governo quer dizer com “alternativa”: propagação de mentiras e distorções da realidade. Que membros do governo e blogueiros bolsonaristas lancem mão do artifício nas redes sociais já é problemático por si só, como mostram as ações que correm no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral. A conversão de políticas públicas em instrumento de agitação e propaganda a serviço do governo é típica de regimes autoritários, o que requer a pronta ação dos órgãos de controle do Poder Executivo.

Levar a internet gratuita aos municípios não atendidos nos rincões do País, uma espécie de zona de exclusão digital no território nacional, é mandatório para que o Brasil possa avançar na melhoria da qualidade da educação pública, garantindo a alunos e professores condições pedagógicas minimamente satisfatórias. Mas o objetivo de Bolsonaro é bem menos republicano. O que o presidente pretende, basicamente, é usar recursos e equipamentos públicos para ampliar o alcance de sua propaganda eleitoral, sem qualquer consideração ética ou legal.

A reforma previdenciária em SP

O Estado de S. Paulo

Trata-se de um tema espinhoso, que se impõe pela sobrevivência do próprio sistema

Com um déficit de R$ 171 bilhões, as contas do Instituto de Previdência Municipal de São Paulo (Iprem) não fecham. É louvável, portanto, a iniciativa do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), de encaminhar à Câmara Municipal um projeto de reforma previdenciária que avança sobre pontos importantes que não foram cobertos pelo projeto aprovado no governo de seu antecessor, Bruno Covas (PSDB), em dezembro de 2018. Caso seja aprovada, a nova reforma proposta por Nunes reduzirá o déficit projetado para R$ 60 bilhões em 75 anos.

A perseverança de Covas para aprovar seu projeto de reforma da Previdência municipal, no fim vitorioso, por si só já havia representado um considerável avanço na direção do saneamento das finanças públicas da capital paulista. Mas é preciso ir além. Questões como idade mínima para aposentadoria e contribuição de inativos, não tratadas na reforma de 2018, deverão ser enfrentadas agora. Não será fácil. O tema é tão espinhoso, mexe com tantos interesses localizados, que, na última década, a despeito da premência de uma revisão dos meios de financiamento do Iprem, os ex-prefeitos Fernando Haddad (PT) e João Doria (PSDB) simplesmente desistiram de seus projetos para reduzir o déficit do sistema previdenciário e o volume de aportes anuais do Tesouro para subsidiá-lo, tão fortes foram as resistências.

A reforma de 2018 elevou de 11% para 14% a alíquota de contribuição dos servidores. Naquela ocasião, também foi criada a Sampaprev, entidade de previdência complementar à qual podem aderir os servidores que desejam receber benefícios acima do teto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), de R$ 6,4 mil, contribuindo a mais para isso. O projeto apresentado pela atual gestão mantém a alíquota de contribuição em 14% – embora a Constituição autorize um aumento de até 19% –, mas propõe o fim da isenção de contribuição para inativos que recebem benefícios entre um salário mínimo (R$ 1,1 mil) e o teto do INSS (R$ 6,4 mil). É o ponto que deverá enfrentar maior resistência na Câmara. A vereadora Luana Alves (PSOL) afirmou ser “impensável” tributar aposentados que recebem pouco mais de um salário mínimo, sobretudo neste momento difícil do País, que combina a emergência sanitária com uma profunda crise econômica.

O projeto de reforma apresentado pela Prefeitura também prevê a adoção das idades mínimas para aposentadoria de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres, com exceção dos professores da rede municipal. Nesse ponto, o projeto municipal acompanha os limites determinados pela reforma previdenciária federal.

A discussão sobre novos modelos de financiamento do Iprem é inarredável. Ano após ano, é cada vez menor a diferença entre o número de beneficiários e o de servidores ativos, que contribuem para o sistema. Em 2010, havia 137 mil servidores ativos para 78 mil inativos. Dez anos depois, o número de ativos caiu para 121 mil e o de inativos subiu para 113 mil. Se nada for feito, o colapso do sistema previdenciário da capital paulista é certo, um imperativo matemático.

A fim de garantir o pagamento dos benefícios de inativos e pensionistas neste ano, é previsto um aporte de R$ 6 bilhões do Tesouro. O valor é quase o dobro do que a Prefeitura investe em projetos de melhorias para a cidade. Se a reforma não for aprovada nos moldes em que foi proposta pelo Executivo, estima-se que em 2030 o subsídio do Tesouro poderá chegar a R$ 8,43 bilhões, o que representará significativas reduções de investimentos e risco para o custeio da chamada máquina pública.

“(A proposta de reforma previdenciária) é uma declaração de guerra aos servidores”, disse a vereadora psolista, dando o tom da oposição que o governo deverá enfrentar no Palácio Anchieta. Mexer com interesses de servidores públicos não é algo trivial em nenhum lugar do mundo. Menos ainda no Brasil, um país capturado por corporações muito bem articuladas. Contudo, os anos de debate sobre a reforma previdenciária no âmbito federal amadureceram a sociedade para tratar do tema com a responsabilidade que ele exige.

Vetos em queda

Folha de S. Paulo

Combinação de presidente frágil e Congresso oportunista tende a ser perigosa

Só na segunda-feira (27), o Congresso derrubou 12 vetos que o presidente Jair Bolsonaro apusera a projetos de lei. Nesta quinta (30), está prevista uma nova rodada de votações do tipo, e o governo poderá sofrer novas derrotas.

Bolsonaro já é, de longe, o recordista dos vetos derrubados. Ele já teve mais de meia centena de vetos revertidos. Michel Temer (MDB), o campeão anterior, sofrera 21 reveses; Dilma Rousseff (PT), 7; Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 2.

A comparação direta não é perfeita porque, ao longo dos anos, as regras para tais medidas sofreram alterações. Foi só a partir de 2013, por exemplo, que se efetivou o trancamento de pauta do Congresso caso a matéria não fosse apreciada. Naquele mesmo ano, as votações deixaram de ser secretas.

De toda maneira, quaisquer que sejam as normas, a derrubada de veto não deveria ser um fato corriqueiro, já que exige maioria absoluta nas duas Casas legislativas, ou seja, pelo menos 257 votos dos 513 da Câmara e 41 dos 81 do Senado. É inescapável, portanto, a conclusão de que Bolsonaro se encontra politicamente fragilizado.

Seu acordo com o centrão se mostra suficiente para protegê-lo de um processo de impeachment e talvez de pautas-bombas que desestabilizem de vez o governo, mas não para conferir-lhe a liderança do processo político.

Basicamente, os parlamentares não derrubam o presidente, mas fazem o que querem —não o que interessa à administração.

Isso fica claro quando se considera o teor dos vetos derrubados. Como se viu na segunda, há um pouco de tudo, desde interesses corporativos, como a volta das federações de partidos para escapar à cláusula de desempenho, a gestos simpáticos para a população, caso da suspensão da prova de vida do INSS até o fim do ano.

Há também decisões relevantes, mas caras —tome-se a ampliação do acesso à internet em escolas públicas. Medidas com impacto ainda maior serão apreciadas.

Se não houver surpresas políticas, econômicas ou sanitárias, a tendência é que o centrão mantenha esse arranjo por mais tempo. O grupo, afinal, tem acesso a cargos e verbas e ainda se vê praticamente livre para votar como prefere.

A situação pode mudar à medida que as eleições se aproximarem, e os parlamentares se vejam compelidos a posicionar-se de forma mais vantajosa para o pleito.

De todo modo, a combinação de um presidente fraco e um Congresso oportunista traz riscos consideráveis, aí incluídos danos ao erário e legislação de má qualidade.

Temores globais

Folha de S. Paulo

Mercados financeiros refletem percepção de risco de alta mundial da inflação

Com a redução dos riscos de contágio oriundos da variante delta do coronavírus, vai se firmando uma perspectiva de reabertura mais ampla da economia mundial nos próximos meses —e com ela parecem se generalizar, em contrapartida, as pressões de preços.

O risco de um fenômeno inflacionário mais duradouro já traz ruídos nos mercados globais, que temem uma reviravolta no ambiente de juros baixos que vigora até agora. Foi o que levou Bolsas de Valores a amargarem perdas expressivas em países diversos, Brasil incluído, na terça-feira (28).

As análises mais comuns há algumas semanas consideravam a inflação como um fenômeno setorial de curto prazo, derivado da desorganização produtiva e das alterações nos padrões de consumo durante a pandemia, que deveria ser revertido em poucos meses.

Segundo tal raciocínio, a inflação elevada neste ano —por causa da escassez de itens essenciais por interrupções fabris, caso dos chips de computador que equipam bens duráveis, ou excesso pontual de demanda— daria lugar a uma desaceleração em 2022.

No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a inflação ao consumidor acumulada em 12 meses chegou a inusuais 5,3% em agosto, mas prevaleceu até aqui a expectativa de retorno ao patamar histórico próximo a 2% nos próximos anos. Não haveria uma alteração duradoura do padrão, portanto.

Mas há outros elementos que turvam essa leitura benigna. Generaliza-se um quadro de escassez de energia em vários centros produtores mundiais —a falta de gás natural na Europa e de carvão na China fez disparar os custos de geração.

O mesmo ocorre com as cotações do petróleo, que superaram os US$ 80 por barril nesta semana, antes mesmo que a retomada mundial esteja consolidada.

A pressão por redução de emissões de carbono compõe o pano de fundo para os aumentos dos preços das fontes tradicionais de geração de energia e dos metais que farão parte dessa transformação.

A disparada nos custos de insumos, inclusive de mão de obra, pode ser mais persistente se for derivada de alterações sustentadas nos padrões estabelecidos para a produção e o comércio mundial.

O risco é o súbito e profundo processo de reorientação produtiva das últimas décadas contaminar as expectativas de empresas e famílias, o que faria a inflação mundial mudar de patamar.

Isso já leva bancos centrais a reverem seus juros —e o caso do Brasil é agravado por desvalorização do real e descrédito do governo.

Congresso admite programa social com verbas inexistentes

Valor Econômico

É preciso acabar com a mamata anti-republicana das emendas do relator

A ação legislativa está se deteriorando a olhos vistos com a adesão lucrativa dos partidos fisiológicos à sustentação do governo de Jair Bolsonaro. Muitas das propostas que estão sendo aprovadas, ou encaminhadas, sobre temas essenciais são uma amostra real do quanto é ruim deixar o Centrão solto, a realizar seus desejos, boa parte deles contrários às necessidades do país. O exemplo mais recente, que não será o último, foi a aprovação de projeto que destina recursos para o Auxílio Brasil, novo nome do Bolsa Família, que Bolsonaro quer propagandear durante as eleições.

A toque de caixa, Senado e Câmara deram aval a uma peça que permite estabelecer como fonte de receita para bancar o programa social de Bolsonaro projetos com essa finalidade que ainda estejam em tramitação no Legislativo, ou seja, que ainda não foram aprovados - e, o que é surreal, que podem não ser, ou sofrerem modificações substanciais. A lógica é simples, irresponsável e o princípio, destrutivo: pode-se inventar receitas para custear os planos do Executivo no orçamento - e depois dá-se um jeito.

A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga a compensação de novos gastos continuados por meio de corte de despesas ou indicação de fonte de receitas correspondentes. Como a primeira opção sequer passa pela cabeça do Centrão, a forma escolhida foi pedalar a receita. É em nome do interesse da reeleição de Bolsonaro e, mais ainda, em seu próprio, que manejam-se deslocamentos bilionários no Congresso. No caso do Auxílio Brasil, esses bilhões sequer existem.

Pelo programa social remodelado o governo, com o ministro Paulo Guedes à frente, faz pressão contra o teto de gastos. Em primeiro lugar, seus recursos viriam de uma reforma do Imposto de Renda, que atropelou uma reforma tributária ampla, contemplada por dois projetos muito debatidos, um na Câmara e outro no Senado, e passou à frente da proposta oficial de fusão de PIS-Cofins, no IVA Dual. A taxação da distribuição dos dividendos serviria para bancar o substituto do Bolsa Família.

O governo resolveu pagar com atraso sua promessa eleitoral, de reajustar a tabela do IR, isentando novas faixas de renda, usando-a como fachada para algum aumento de tributação sobre as empresas. A Câmara mudou tudo, ampliando a isenção também para as empresas e o resultado foi que, da forma como saiu das mãos dos deputados, haverá perda, e não ganho, de arrecadação (algo como R$ 30 bilhões, ou 0,4% do PIB).

Depois a criatividade do governo se dirigiu a um calote nos precatórios, fingindo uma surpresa já inscrita nos números, isto é, a de que o pagamento destas sentenças irrecorríveis na Justiça traria despesas de R$ 89 bilhões. O governo propôs parcelar os débitos para obter R$ 39 bilhões para o Auxílio Brasil. Sob risco de derrota no STF, tenta-se agora pagar uma parte dentro do teto e outra fora, que seria ressarcida com várias alternativas à pura discrição do devedor, o que é inacreditável. A fórmula joga dívidas para a frente para financiar mais gastos, que não poderiam ser feitos pela regra do teto - outra pedalada.

Toda essa ginástica fantasiosa, que burla as regras fiscais, foi feita para preservar de toda a forma um acordo com o Centrão que destinará R$ 18 bilhões às emendas do relator - de um total de R$ 34 bilhões de emendas parlamentares -, uma excrecência cujo principal atributo é a falta total de transparência. Um grupo seleto de parlamentares se apropria da distribuição dessas verbas para seus redutos eleitorais. No ano passado, foram R$ 3 bilhões que selaram o embarque do Centrão no governo. O destino desse dinheiro, rastreado pela imprensa, abasteceu a prefeitura dirigida pela mãe do relator, e até mesmo um empreendimento turístico ao lado de um negócio imobiliário do ministro Rogério Marinho, revelado por “O Estado de S. Paulo”. Como o governo Bolsonaro é regressivo, a Câmara volta à época dos escandalosos anões do Orçamento.

Nada disso, porém, era necessário. Como bem aponta a Instituição Fiscal Independente, do Senado, é possível pagar os precatórios e ainda reservar recursos suficientes para ampliação do Bolsa Família sem atropelar o teto e a austeridade fiscal. Mas para isso, uma das principais condições seria acabar com a mamata obscura e anti-republicana das emendas do relator. Como estão no cerne da aliança do Planalto com a banda retrógrada da política nacional, elas seguirão de pé.

 

 

 

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