EDITORIAIS
Alta da gasolina não é culpa dos
governadores
O Globo
Há exatamente um ano, para encher o tanque
de um carro popular, como o Onix, com gasolina comum no Rio, o dono do veículo
gastava R$ 211, de acordo com pesquisa da Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis em postos da cidade. Hoje o mesmo motorista precisa
desembolsar R$ 288. Há um ano, o valor gasto atualmente para encher três
tanques era suficiente para pagar por quatro e ainda sobravam uns trocados. A
alta de 36% em tão curto espaço de tempo assusta os proprietários de
automóveis, alimenta a inflação e tira o sono do presidente Jair Bolsonaro,
ciente de que essa é uma das principais causas da queda em sua popularidade a
cerca de um ano das eleições de 2022.
O presidente da Câmara dos Deputados,
Arthur Lira (PP), num discurso em Alagoas na terça-feira, mostrou estar
acompanhando o tema ao dizer que “ninguém aguenta mais o combustível alto”.
Quando uma autoridade da República dá sinais de que também se interessa pelo
que acontece aos cidadãos nas ruas, merece aplausos. Lira parece, contudo, mais
preocupado com o custo político para o governo que com o bolso dos motoristas.
Em seu discurso, ele deu provas de que não sabe — ou não quer — mirar no alvo. De forma retórica, perguntou: “Sabe o que faz o combustível ficar caro?”. Em seguida, deu a resposta: “São os impostos estaduais. Os governadores têm de se sensibilizar”. Lira prometeu debater um projeto sobre a incidência do ICMS, um tributo estadual. É o mesmo argumento falacioso usado pelo governo Bolsonaro para transferir a responsabilidade para seus adversários políticos.
Um ano atrás, quando a gasolina estava mais
barata, as alíquotas de ICMS eram as mesmas de hoje. Não foi o imposto que fez
os preços subirem. A principal causa é a alta na cotação do petróleo. O dólar
subindo também dá sua contribuição. E o maior motivo para o real continuar a
desvalorizar, não é novidade, é o risco decorrente da política econômica
errática do governo e das sucessivas crises políticas protagonizadas por
Bolsonaro.
Ao falar no assunto, Lira nem cogitou
mudanças nos vários impostos federais que incidem sobre a gasolina: a
Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), as contribuições ao
Programa de Integração Social (PIS) e ao Programa de Formação do Patrimônio do
Servidor Público (Pasep), além da Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (Cofins), que juntas somam 11% do preço final. Em março, o
governo alterou PIS e Cofins para o diesel e o gás, mas não para a gasolina.
Num sinal de que não aprendeu nada com os
desmandos na Petrobras e as tentativas de manipulação dos preços nos tempos de
Dilma Rousseff, o presidente da Câmara também defendeu numa rede social que a
petrolífera mudasse a política de repasses de aumentos.
Se Lira estivesse seriamente preocupado com
a surreal estrutura de impostos do Brasil, teria apoiado a proposta de reforma
tributária que colocava fim à guerra fiscal. Não o fez e agora ecoa o discurso
bolsonarista que tem apenas duas finalidades: eximir o presidente de qualquer
responsabilidade pelo aumento dos combustíveis e jogar a culpa nos
governadores.
Volta do público aos estádios exige
responsabilidade e fiscalização
O Globo
Depois de um ano e meio de estádios
fechados na pandemia, os times brasileiros poderão se reconciliar com suas
torcidas. Na terça-feira, o Conselho Técnico de Clubes da Série A liberou a
volta do público a partir da 23ª rodada do Brasileirão, no próximo fim de
semana. Dos 20 participantes, apenas Athletico Paranaense foi contra. Defendia
que as regras atuais se estendessem até o fim do torneio. O Flamengo, que
chegou a recorrer ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) para
garantir a presença de torcida em seus jogos, não foi à reunião.
Embora a aprovação se aplique a todos os
clubes da elite do futebol brasileiro, as normas não serão iguais, já que
dependerão dos protocolos de estados e municípios. Melhor assim, pois a
epidemia tem características diferentes nos diversos locais. Em São Paulo, as
regras de flexibilização só permitirão a presença de torcedores a partir de 4
de outubro. Na Bahia, onde os casos de Covid-19 voltaram a subir, o governo
ainda não liberou a volta do público. O percentual de ocupação das arenas
ficará a critério das autoridades locais.
Com o avanço da vacinação — quase 70% dos
brasileiros já receberam ao menos a primeira dose, e cerca de 40% estão
completamente imunizados — e a redução no número de infectados e mortos por
Covid-19, é razoável que as atividades sejam gradualmente retomadas. No dia 10,
a Prefeitura do Rio já flexibilizara normas para frequentadores de academias,
centros de treinamento e piscinas, além de permitir aumento de capacidade para
teatros, cinemas, museus e pontos turísticos.
Mas não se deve pensar num “liberou geral”.
Estádios de futebol são ambientes propícios à superdifusão (situação em que um
único infectado transmite a doença a dezenas de pessoas). A vacina, eficaz para
reduzir hospitalizações e mortes, não impede toda transmissão do vírus. Daí a
necessidade de manter protocolos, como exigência de certificado de vacinação,
uso obrigatório de máscaras, distanciamento e redução da capacidade dos
estádios.
Antes mesmo de os clubes da Série A
aprovarem a volta do público às arenas, algumas experiências pontuais já
estavam em andamento, especialmente nas partidas da Copa Libertadores. Nem
sempre com resultados satisfatórios. Na noite de terça-feira, em Belo
Horizonte, a disputa entre Atlético Mineiro e Palmeiras serviu de alerta às
autoridades. Houve aglomeração na entrada do Mineirão, os portões foram
fechados além do horário previsto, torcedores tiravam a máscara tão logo
passavam pelas barreiras de fiscalização.
É desejável que os clubes possam retomar
sua rotina. Está claro que teremos de conviver com o vírus por um bom tempo, e
o jeito é se adaptar. A volta do público exigirá responsabilidade e
fiscalização. Embora a Justiça tenha suspendido em caráter liminar a exigência
da carteira de vacinação no Rio, o passaporte sanitário deveria ser obrigatório
para entrar nos estádios. Espera-se que instâncias superiores derrubem a
decisão. E é importante que as autoridades monitorem os efeitos da liberação,
para que ela não se transforme numa derrota para todos.
Combustível para a demagogia
O Estado de S. Paulo
Pretender que problemas como o do preço dos combustíveis sejam resolvidos com passes de mágica fajuta é típico de quem vive de vender terrenos na Lua
O presidente Jair Bolsonaro ganhou um
reforço de peso em sua campanha para confundir a opinião pública a respeito dos
preços dos combustíveis e atribuir a terceiros uma responsabilidade que é
parcialmente sua e de seu governo. Trata-se do presidente da Câmara, Arthur
Lira, que, na terça-feira passada, sem nenhum pudor, disse que “ninguém aguenta
mais” a alta da gasolina e anunciou que vai colocar em debate um projeto para
fixar o valor do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
incidente sobre os combustíveis.
“Sabe o que faz o combustível ficar caro?
São os impostos estaduais”, declarou o deputado, acrescentando que os
governadores têm arrecadado muito na pandemia – sugerindo haver interesse dos
Estados na carestia.
Trata-se de uma farsa em múltiplas
dimensões, a começar por uma inexistente relação de causalidade. De fato, os
Estados estão aumentando expressivamente sua arrecadação, graças em parte ao
aumento dos preços dos combustíveis e da tarifa da energia elétrica, principais
fontes de cobrança de ICMS. Mas, no caso dos combustíveis, o ICMS é cobrado
sobre o preço médio ponderado ao consumidor final – ou seja, mesmo na hipótese
maluca de que o ICMS fosse zero (o que, diga-se, o presidente Bolsonaro já teve
a audácia de propor, ignorando a enorme importância desse imposto para os
Estados), o preço provavelmente seria pouco afetado.
Por isso, não é o aumento da arrecadação do
ICMS que faz subir o preço do combustível, como dizem os bolsonaristas; é, ao
contrário, o aumento do preço dos derivados de petróleo que faz crescer a
arrecadação, porque a base de cálculo sobre a qual incide o tributo é o preço
final do combustível; se essa base aumenta, necessariamente aumentará a
arrecadação sobre esse produto, sem que tenha havido mudança nas regras de
cálculo ou aumento da alíquota.
Na segunda-feira passada, o presidente da
República queixou-se de novo do alto preço dos combustíveis. De maneira
elegante, o presidente da Petrobras, general da reserva Joaquim Silva e Luna –
escolhido por Bolsonaro com a intenção óbvia de interferir na estatal para
frear os preços dos combustíveis –, disse que a empresa não alteraria sua
política de preços, que procura acompanhar as alterações do mercado
internacional. Ato contínuo, a Petrobras aumentou o preço do diesel, o que
afetará os fretes rodoviários, num país cuja matriz de transporte é
predominantemente rodoviária.
Em favor de Bolsonaro e Arthur Lira, é
preciso reconhecer que os dois não são os únicos demagogos a oferecer aos
incautos a ilusão de que o preço dos combustíveis sobe ou desce por ato de
vontade, e não por força das circunstâncias de mercado. A política da Petrobras
foi criticada também pelo antípoda de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Para o chefão petista, “o que está acontecendo é que a Petrobras
está acumulando verba para pagar acionista americano”. É o estado da arte da
vigarice lulopetista – a mesma que, sob o infausto governo de Dilma Rousseff,
obrigou a Petrobras a subsidiar gasolina barata para segurar a inflação, o que quase
quebrou a estatal.
A explicação para a alta dos preços dos
combustíveis é bem mais complexa do que pretendem fazer crer os populistas
irresponsáveis. O cenário econômico difícil e uma conjuntura política tensa,
graças à incompetência e à truculência de Bolsonaro, tiveram como uma de suas
consequências a disparada do dólar – e, por tabela, dos derivados de petróleo.
Ademais, a desvalorização do real
potencializa, no caso dos combustíveis, um problema mundial, que é o
crescimento muito rápido da demanda. O alívio proporcionado pelo avanço da
vacinação estimula a procura por muitos bens, inclusive os da área energética.
O resultado é o aumento dos preços – o petróleo alcançou, nesta semana, sua
cotação mais alta em três anos – e, agora, o temor de sua escassez.
Pretender que problemas dessa extensão
sejam resolvidos com passes de mágica fajuta é típico de quem, como Bolsonaro,
Lula, Arthur Lira e companhia bela, vive de vender terrenos na Lua.
Propaganda descarada
O Estado de S. Paulo
Beneficiários do Conecta Brasil são obrigados a assistir à propaganda oficial
O presidente Jair Bolsonaro é conhecido por
não separar assuntos de Estado, de governo e os relativos a seus interesses
particulares. Na visão deturpada do mandatário sobre os limites do cargo e a
relativa autonomia de ação que a legitimidade das urnas lhe confere, toda
política pública implementada por seu governo tem de vir em benefício do
próprio presidente ou de seus apaniguados antes de qualquer outra coisa. Essa
má concepção do que seja exercer a Presidência da República está na origem de
uma série de atitudes de Bolsonaro que têm levado o País à ruína moral,
política, econômica e social.
O exemplo mais recente dessa perniciosa
confusão se deu na zona rural do Piauí, no município de Santa Filomena,
escolhido para a instalação de um novo hub de internet sem fio do projeto
Conecta Brasil, do Ministério das Comunicações. Estudantes, professores e
moradores da cidade têm de assistir, obrigatoriamente, a 30 segundos de
propaganda sobre programas sociais do governo federal a cada vez que acessam a
rede. Não há como “pular” o vídeo institucional, pois a peça publicitária é uma
imposição aos beneficiários do chamado Wi-Fi Brasil. O descalabro foi revelado
pelo Estado.
“Para usar o Google e o Caixa Tem, a gente
tem de assistir ao vídeo”, disse à reportagem a estudante Gabriela Silva, de 14
anos, aluna do 9.º ano da Escola Municipal Anita Studer, localizada no povoado
de Sete Lagoas. “Se o usuário precisar entrar na internet cinco vezes no dia,
ele vai ter de assistir à propaganda cinco vezes. Se demorar para usar, a rede
desconecta e tem de assistir tudo de novo.” O único aplicativo que pode ser
usado sem propaganda oficial é o WhatsApp.
Sabe-se que o governo Bolsonaro, entusiasta
do tal “Escola sem Partido”, é obcecado por fantasmas que habitariam livros
didáticos e pela suposta ação insidiosa de professores “comunistas” e
“libertinos” na formação dos alunos. Pois é esse mesmo governo que força as
crianças e adolescentes do interior do Piauí e de outras localidades onde está
presente o Wi-Fi Brasil, seus professores e moradores da cidade a se tornarem
público cativo da propaganda governista. De acordo com o Ministério das
Comunicações, são 26 milhões de cidadãos atendidos pelo programa Conecta
Brasil. Um ativo eleitoral que um presidente nada afeito à ética republicana
dificilmente deixaria incólume.
A ação já seria condenável do ponto de
vista moral, mas ainda se trata de uma clara violação do princípio da
impessoalidade, um dos pilares da administração pública consagrados pela
Constituição. O que o governo Bolsonaro faz, de forma descarada, é usar uma
política pública como plataforma de veiculação de propaganda eleitoral – uma
propaganda obviamente ilegal.
Tão desvirtuado foi o Conecta Brasil que o
ministro das Comunicações, Fábio Faria (PSD), disse no discurso de lançamento
do programa em Santa Filomena que “a internet é a fonte alternativa de
informações” ao que chamou de “notícias contra o presidente”. Sabe-se muito bem
o que o governo quer dizer com “alternativa”: propagação de mentiras e
distorções da realidade. Que membros do governo e blogueiros bolsonaristas
lancem mão do artifício nas redes sociais já é problemático por si só, como
mostram as ações que correm no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior
Eleitoral. A conversão de políticas públicas em instrumento de agitação e
propaganda a serviço do governo é típica de regimes autoritários, o que requer
a pronta ação dos órgãos de controle do Poder Executivo.
Levar a internet gratuita aos municípios
não atendidos nos rincões do País, uma espécie de zona de exclusão digital no
território nacional, é mandatório para que o Brasil possa avançar na melhoria
da qualidade da educação pública, garantindo a alunos e professores condições
pedagógicas minimamente satisfatórias. Mas o objetivo de Bolsonaro é bem menos
republicano. O que o presidente pretende, basicamente, é usar recursos e
equipamentos públicos para ampliar o alcance de sua propaganda eleitoral, sem
qualquer consideração ética ou legal.
A reforma previdenciária em SP
O Estado de S. Paulo
Trata-se de um tema espinhoso, que se impõe pela sobrevivência do próprio sistema
Com um déficit de R$ 171 bilhões, as contas
do Instituto de Previdência Municipal de São Paulo (Iprem) não fecham. É
louvável, portanto, a iniciativa do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB),
de encaminhar à Câmara Municipal um projeto de reforma previdenciária que
avança sobre pontos importantes que não foram cobertos pelo projeto aprovado no
governo de seu antecessor, Bruno Covas (PSDB), em dezembro de 2018. Caso seja
aprovada, a nova reforma proposta por Nunes reduzirá o déficit projetado para
R$ 60 bilhões em 75 anos.
A perseverança de Covas para aprovar seu
projeto de reforma da Previdência municipal, no fim vitorioso, por si só já
havia representado um considerável avanço na direção do saneamento das finanças
públicas da capital paulista. Mas é preciso ir além. Questões como idade mínima
para aposentadoria e contribuição de inativos, não tratadas na reforma de 2018,
deverão ser enfrentadas agora. Não será fácil. O tema é tão espinhoso, mexe com
tantos interesses localizados, que, na última década, a despeito da premência
de uma revisão dos meios de financiamento do Iprem, os ex-prefeitos Fernando
Haddad (PT) e João Doria (PSDB) simplesmente desistiram de seus projetos para
reduzir o déficit do sistema previdenciário e o volume de aportes anuais do Tesouro
para subsidiá-lo, tão fortes foram as resistências.
A reforma de 2018 elevou de 11% para 14% a
alíquota de contribuição dos servidores. Naquela ocasião, também foi criada a
Sampaprev, entidade de previdência complementar à qual podem aderir os servidores
que desejam receber benefícios acima do teto do Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS), de R$ 6,4 mil, contribuindo a mais para isso. O projeto
apresentado pela atual gestão mantém a alíquota de contribuição em 14% – embora
a Constituição autorize um aumento de até 19% –, mas propõe o fim da isenção de
contribuição para inativos que recebem benefícios entre um salário mínimo (R$
1,1 mil) e o teto do INSS (R$ 6,4 mil). É o ponto que deverá enfrentar maior
resistência na Câmara. A vereadora Luana Alves (PSOL) afirmou ser “impensável”
tributar aposentados que recebem pouco mais de um salário mínimo, sobretudo
neste momento difícil do País, que combina a emergência sanitária com uma
profunda crise econômica.
O projeto de reforma apresentado pela
Prefeitura também prevê a adoção das idades mínimas para aposentadoria de 65
anos para homens e 62 anos para mulheres, com exceção dos professores da rede
municipal. Nesse ponto, o projeto municipal acompanha os limites determinados
pela reforma previdenciária federal.
A discussão sobre novos modelos de
financiamento do Iprem é inarredável. Ano após ano, é cada vez menor a
diferença entre o número de beneficiários e o de servidores ativos, que
contribuem para o sistema. Em 2010, havia 137 mil servidores ativos para 78 mil
inativos. Dez anos depois, o número de ativos caiu para 121 mil e o de inativos
subiu para 113 mil. Se nada for feito, o colapso do sistema previdenciário da
capital paulista é certo, um imperativo matemático.
A fim de garantir o pagamento dos benefícios
de inativos e pensionistas neste ano, é previsto um aporte de R$ 6 bilhões do
Tesouro. O valor é quase o dobro do que a Prefeitura investe em projetos de
melhorias para a cidade. Se a reforma não for aprovada nos moldes em que foi
proposta pelo Executivo, estima-se que em 2030 o subsídio do Tesouro poderá
chegar a R$ 8,43 bilhões, o que representará significativas reduções de
investimentos e risco para o custeio da chamada máquina pública.
“(A proposta de reforma previdenciária) é uma declaração de guerra aos servidores”, disse a vereadora psolista, dando o tom da oposição que o governo deverá enfrentar no Palácio Anchieta. Mexer com interesses de servidores públicos não é algo trivial em nenhum lugar do mundo. Menos ainda no Brasil, um país capturado por corporações muito bem articuladas. Contudo, os anos de debate sobre a reforma previdenciária no âmbito federal amadureceram a sociedade para tratar do tema com a responsabilidade que ele exige.
Vetos em queda
Folha de S. Paulo
Combinação de presidente frágil e Congresso
oportunista tende a ser perigosa
Só na segunda-feira (27), o Congresso
derrubou 12 vetos que o presidente Jair Bolsonaro apusera a projetos
de lei. Nesta quinta (30), está prevista uma nova rodada de votações do tipo, e
o governo poderá sofrer novas derrotas.
Bolsonaro já é, de longe, o recordista dos
vetos derrubados. Ele já teve mais de meia centena de vetos revertidos. Michel
Temer (MDB), o campeão anterior, sofrera 21 reveses; Dilma Rousseff (PT), 7;
Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 2.
A comparação direta não é perfeita porque,
ao longo dos anos, as regras para tais medidas sofreram alterações. Foi só a
partir de 2013, por exemplo, que se efetivou o trancamento de pauta do
Congresso caso a matéria não fosse apreciada. Naquele mesmo ano, as votações
deixaram de ser secretas.
De toda maneira, quaisquer que sejam as
normas, a derrubada de veto não deveria ser um fato corriqueiro, já que exige
maioria absoluta nas duas Casas legislativas, ou seja, pelo menos 257 votos dos
513 da Câmara e 41 dos 81 do Senado. É inescapável, portanto, a conclusão de
que Bolsonaro se encontra politicamente fragilizado.
Seu acordo com o centrão se mostra
suficiente para protegê-lo de um processo de impeachment e talvez de
pautas-bombas que desestabilizem de vez o governo, mas não para conferir-lhe a
liderança do processo político.
Basicamente, os parlamentares não derrubam
o presidente, mas fazem o que querem —não o que interessa à administração.
Isso fica claro quando se considera o teor
dos vetos derrubados. Como se viu na segunda, há um pouco de tudo, desde
interesses corporativos, como a volta das federações de partidos para escapar à
cláusula de desempenho, a gestos simpáticos para a população, caso da suspensão
da prova de vida do INSS até o fim do ano.
Há também decisões relevantes, mas caras
—tome-se a ampliação do acesso à internet em escolas públicas. Medidas com
impacto ainda maior serão apreciadas.
Se não houver surpresas políticas,
econômicas ou sanitárias, a tendência é que o centrão mantenha esse arranjo por
mais tempo. O grupo, afinal, tem acesso a cargos e verbas e ainda se vê
praticamente livre para votar como prefere.
A situação pode mudar à medida que as
eleições se aproximarem, e os parlamentares se vejam compelidos a posicionar-se
de forma mais vantajosa para o pleito.
De todo modo, a combinação de um presidente
fraco e um Congresso oportunista traz riscos consideráveis, aí incluídos danos
ao erário e legislação de má qualidade.
Temores globais
Folha de S. Paulo
Mercados financeiros refletem percepção de
risco de alta mundial da inflação
Com a redução dos riscos de contágio
oriundos da variante delta do coronavírus, vai se firmando uma perspectiva de
reabertura mais ampla da economia mundial nos próximos meses —e com ela parecem
se generalizar, em contrapartida, as pressões de preços.
O risco de um fenômeno inflacionário mais
duradouro já traz ruídos nos mercados globais, que temem uma reviravolta no
ambiente de juros baixos que vigora até agora. Foi o que levou Bolsas de
Valores a amargarem perdas
expressivas em países diversos, Brasil incluído, na terça-feira (28).
As análises mais comuns há algumas semanas
consideravam a inflação como um fenômeno setorial de curto prazo, derivado da
desorganização produtiva e das alterações nos padrões de consumo durante a
pandemia, que deveria ser revertido em poucos meses.
Segundo tal raciocínio, a inflação elevada
neste ano —por causa da escassez de itens essenciais por interrupções fabris,
caso dos chips de computador que equipam bens duráveis, ou excesso pontual de
demanda— daria lugar a uma desaceleração em 2022.
No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a
inflação ao consumidor acumulada em 12 meses chegou a inusuais 5,3% em agosto,
mas prevaleceu até aqui a expectativa de retorno ao patamar histórico próximo a
2% nos próximos anos. Não haveria uma alteração duradoura do padrão, portanto.
Mas há outros elementos que turvam essa
leitura benigna. Generaliza-se um quadro de escassez de energia em vários
centros produtores mundiais —a falta de gás natural na Europa e de carvão na
China fez disparar os custos de geração.
O mesmo ocorre com as cotações do petróleo,
que superaram os US$ 80 por barril nesta semana, antes mesmo que a retomada
mundial esteja consolidada.
A pressão por redução de emissões de
carbono compõe o pano de fundo para os aumentos dos preços das fontes
tradicionais de geração de energia e dos metais que farão parte dessa
transformação.
A disparada nos custos de insumos,
inclusive de mão de obra, pode ser mais persistente se for derivada de
alterações sustentadas nos padrões estabelecidos para a produção e o comércio
mundial.
O risco é o súbito e profundo processo de
reorientação produtiva das últimas décadas contaminar as expectativas de
empresas e famílias, o que faria a inflação mundial mudar de patamar.
Isso já leva bancos centrais a reverem seus
juros —e o caso do Brasil é agravado por desvalorização do real e descrédito do
governo.
Congresso admite programa social com verbas
inexistentes
Valor Econômico
É preciso acabar com a mamata
anti-republicana das emendas do relator
A ação legislativa está se deteriorando a
olhos vistos com a adesão lucrativa dos partidos fisiológicos à sustentação do
governo de Jair Bolsonaro. Muitas das propostas que estão sendo aprovadas, ou
encaminhadas, sobre temas essenciais são uma amostra real do quanto é ruim
deixar o Centrão solto, a realizar seus desejos, boa parte deles contrários às
necessidades do país. O exemplo mais recente, que não será o último, foi a
aprovação de projeto que destina recursos para o Auxílio Brasil, novo nome do
Bolsa Família, que Bolsonaro quer propagandear durante as eleições.
A toque de caixa, Senado e Câmara deram
aval a uma peça que permite estabelecer como fonte de receita para bancar o
programa social de Bolsonaro projetos com essa finalidade que ainda estejam em
tramitação no Legislativo, ou seja, que ainda não foram aprovados - e, o que é
surreal, que podem não ser, ou sofrerem modificações substanciais. A lógica é
simples, irresponsável e o princípio, destrutivo: pode-se inventar receitas
para custear os planos do Executivo no orçamento - e depois dá-se um jeito.
A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga a
compensação de novos gastos continuados por meio de corte de despesas ou
indicação de fonte de receitas correspondentes. Como a primeira opção sequer
passa pela cabeça do Centrão, a forma escolhida foi pedalar a receita. É em
nome do interesse da reeleição de Bolsonaro e, mais ainda, em seu próprio, que
manejam-se deslocamentos bilionários no Congresso. No caso do Auxílio Brasil,
esses bilhões sequer existem.
Pelo programa social remodelado o governo,
com o ministro Paulo Guedes à frente, faz pressão contra o teto de gastos. Em
primeiro lugar, seus recursos viriam de uma reforma do Imposto de Renda, que
atropelou uma reforma tributária ampla, contemplada por dois projetos muito
debatidos, um na Câmara e outro no Senado, e passou à frente da proposta
oficial de fusão de PIS-Cofins, no IVA Dual. A taxação da distribuição dos
dividendos serviria para bancar o substituto do Bolsa Família.
O governo resolveu pagar com atraso sua
promessa eleitoral, de reajustar a tabela do IR, isentando novas faixas de
renda, usando-a como fachada para algum aumento de tributação sobre as
empresas. A Câmara mudou tudo, ampliando a isenção também para as empresas e o
resultado foi que, da forma como saiu das mãos dos deputados, haverá perda, e
não ganho, de arrecadação (algo como R$ 30 bilhões, ou 0,4% do PIB).
Depois a criatividade do governo se dirigiu
a um calote nos precatórios, fingindo uma surpresa já inscrita nos números,
isto é, a de que o pagamento destas sentenças irrecorríveis na Justiça traria
despesas de R$ 89 bilhões. O governo propôs parcelar os débitos para obter R$
39 bilhões para o Auxílio Brasil. Sob risco de derrota no STF, tenta-se agora
pagar uma parte dentro do teto e outra fora, que seria ressarcida com várias
alternativas à pura discrição do devedor, o que é inacreditável. A fórmula joga
dívidas para a frente para financiar mais gastos, que não poderiam ser feitos
pela regra do teto - outra pedalada.
Toda essa ginástica fantasiosa, que burla
as regras fiscais, foi feita para preservar de toda a forma um acordo com o
Centrão que destinará R$ 18 bilhões às emendas do relator - de um total de R$
34 bilhões de emendas parlamentares -, uma excrecência cujo principal atributo
é a falta total de transparência. Um grupo seleto de parlamentares se apropria
da distribuição dessas verbas para seus redutos eleitorais. No ano passado,
foram R$ 3 bilhões que selaram o embarque do Centrão no governo. O destino
desse dinheiro, rastreado pela imprensa, abasteceu a prefeitura dirigida pela
mãe do relator, e até mesmo um empreendimento turístico ao lado de um negócio
imobiliário do ministro Rogério Marinho, revelado por “O Estado de S. Paulo”.
Como o governo Bolsonaro é regressivo, a Câmara volta à época dos escandalosos
anões do Orçamento.
Nada disso, porém, era necessário. Como bem
aponta a Instituição Fiscal Independente, do Senado, é possível pagar os
precatórios e ainda reservar recursos suficientes para ampliação do Bolsa
Família sem atropelar o teto e a austeridade fiscal. Mas para isso, uma das
principais condições seria acabar com a mamata obscura e anti-republicana das
emendas do relator. Como estão no cerne da aliança do Planalto com a banda
retrógrada da política nacional, elas seguirão de pé.
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