segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Carlos Pereira - Conversão moral importa?

O Estado de S. Paulo

Democracia não requer governantes com ela comprometidos

Mesmo diante do mais acachapante “ato de contrição” do presidente Jair Bolsonaro, com a sua “declaração à nação”, como uma tentativa de se redimir dos ataques feitos a ministros da Suprema Corte e de ameaças de não cumprimento das suas decisões, muitos têm vaticinado que a “conversão” do presidente aos ritos, procedimentos e liturgias da democracia não seria sustentável. Acreditam que é só uma questão de tempo para que a dissimulação de Bolsonaro fique estampada e que a democracia brasileira venha finalmente a sucumbir.

Vaticínio semelhante tem sido feito por alguns analistas, tais como Robert Kagan (The Washington Post), Martin Wolf (Financial Times) ou David Frum (The Atlantic), em relação aos riscos que a democracia americana estaria correndo diante de um possível retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2024. Argumentam que, diante da baixa performance do governo Joe Biden, com sua popularidade diminuindo, abrir-se-ia caminho para que o ex-presidente retornasse a Casa Branca, o que, para esses analistas, necessariamente acarretaria uma crise da democracia liberal americana que eventualmente evoluiria para o seu colapso.

É como se um espectro do autoritarismo estivesse sempre rondando e prestes a solapar democracias indefesas e vulneráveis com a simples chegada de populistas ao poder, mesmo que por via de eleições livres, competitivas e justas.

A pergunta que precisamos nos fazer é a seguinte: saber se a conversão de populistas é sincera ou estratégica seria relevante para medir a força e resiliência de uma democracia?

A estabilidade democrática não depende das idiossincrasias autoritárias de seus governantes ou da conversão moral de populistas aos credos e princípios democráticos. Afinal de contas, as instituições democráticas existem justamente para garantir que todos, independentemente das suas crenças e valores, sigam as regras do jogo da democracia de forma impessoal.

James Madison afirma em O Federalista que, “se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”. Em outras palavras, se a democracia só elegesse pessoas afeitas aos seus valores, as instituições de controle não precisariam sequer existir.

Adam Przeworski argumenta no seu último livro, Crise da Democracia, que perder eleições é sempre uma fonte de desprazer, mas pode ser tolerável se as perdas não forem tão grandes e se o perdedor vislumbrar possibilidades reais de retornar ao poder no futuro próximo. Entretanto, quando eleições oferecem riscos para que governantes de plantão e seus familiares percam suas vidas, liberdade e/ou fortuna, passa a ser muito caro tolerar uma perda eleitoral. Ou seja, a democracia corre riscos justamente quando as apostas sobre o que está em jogo forem muito altas; quando perder a eleição for sinônimo de desastre; quando as forças políticas derrotadas não tiverem uma chance razoável de ganhar no futuro.

Portanto, ao contrário do que muitos acreditam, o fato de Donald Trump não ter corrido nenhuma dessas perdas e ainda por cima ter chances de vencer as próximas eleições é um dos elementos que sugerem que a democracia americana não corre riscos.

Já no caso brasileiro, a “declaração à nação” foi um enquadramento de Bolsonaro às organizações de controle, funcionando como uma garantia de que uma eventual derrota eleitoral em 2022 não traria riscos proibitivos para ele e para os seus, quando comparados aos altíssimos custos da continuidade de uma estratégia confrontacional.

O grande teste da democracia não é eleger governantes comprometidos moralmente com seus valores, mas, sim, funcionar impondo restrições e limites a comportamentos desviantes, mesmo quando sob ameaça, sem quebrar.

*Professor titular FGV Ebape, Rio de Janeiro

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