segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Demétrio Magnoli - Merkel, a chanceler minimalista

O Globo

No seu longo adeus, Angela Merkel pode ainda se tornar a mais longeva chanceler da Alemanha republicana, ultrapassando seu mentor Helmut Kohl. Mas, ao contrário de Kohl e de outros dois icônicos primeiros-ministros do pós-guerra, Merkel não deixa um legado óbvio, compacto, sintetizável numa única pincelada.

O democrata-cristão Konrad Adenauer (1949-63), arquiteto e primeiro chanceler da RFA, fundou a Alemanha moderna, atlanticista e europeia. A Otan — o alinhamento geopolítico com os EUA — e o projeto da Comunidade Europeia — a parceria estratégica com a França — são seus legados.

Willy Brandt (1969-74) reinventou a social-democracia alemã, inscrevendo o antigo partido de Karl Marx na moldura do Ocidente da Guerra Fria, uma obra completada por seu sucessor, Helmut Schmidt. Além disso, num lance de gênio, fissurou a armadura ideológica da Alemanha Oriental com sua Ostpolitik, a política de abertura para o Leste, lançando a semente da reunificação.

Helmut Kohl (1982-98) ostenta o título de chanceler da Reunificação, o líder que subordinou o dogma monetário ao imperativo político e, assim, apagou a fronteira artificial entalhada em 1949 no meio da nação alemã. Nos anais da história, seu nome ocupa um lugar comparável ao de Bismarck.

Adenauer, Brandt e Kohl promoveram fundas rupturas, desafiando tabus. Merkel, pelo contrário, guiou-se pela bússola da tradição, mas sempre deu um passo a mais, imprimindo uma marca original à pintura conhecida.

Os alemães têm horror a dívida, palavra que associam a culpa e mesmo a pecado. Na crise do euro, deflagrada em 2010, Merkel recusou-se a salvar a Europa por meio de uma “União das Dívidas”, impondo programas de austeridade a gregos, portugueses, espanhóis e italianos. Contudo, uma década depois, diante da pandemia, atravessou um Rubicão mental para aprovar o plano europeu de recuperação financiado por emissão comunitária de títulos públicos.

Os chanceleres alemães não precisavam se preocupar em demasia com o tema fundamental da segurança, resolvido de antemão pelo compromisso dos EUA com a Europa Ocidental. Mas a ascensão de Trump e o ressurgimento do velho isolacionismo americano mudaram radicalmente os termos da velha equação.

Merkel extraiu disso a conclusão de que, no fim das contas, a Europa —e, em seu núcleo, a Alemanha —não pode contar com o amparo eterno da superpotência. Daí, os alemães decidiram apostar no aprofundamento do intercâmbio comercial com a China, para garantir oxigênio a sua indústria exportadora, e numa pragmática cooperação fria com a Rússia, para reduzir as ameaças oriundas do Leste. A humilhante retirada americana do Afeganistão confirmou seus temores. “Os EUA estão de volta”, lema escolhido por Biden, é quase apenas retórica.

A política do consenso não foi criada por Merkel, mas por seu antecessor social-democrata Gerhard Schroeder, que articulou com os sindicatos uma ousada reforma trabalhista e assegurou o diferencial de produtividade da Alemanha. A chanceler seguiu seus passos e, na encruzilhada da pandemia, negociou incansavelmente as medidas de restrição sanitária com os governadores, provando que um Estado federal pode agir de modo mais coeso que o Estado unitário francês.

A minimalista foi maximalista uma única vez. Em 2015, ante a guerra síria e a crise dos refugiados, abriu as portas da Alemanha, enquanto franceses, britânicos, italianos e tantos outros as fechavam. Quase 1 milhão de enxotados pela violência, em sua maioria muçulmanos, estabeleceram-se no país. Merkel sempre foi uma crítica ácida e realista do multiculturalismo. Ela insistia na exigência de que os imigrantes aprendessem a língua da terra e se integrassem a seus valores constitucionais. Mas, para escândalo dos nativistas, proclamou que “o islã é parte da Alemanha”.

O mais nobre gesto de um estadista europeu desde a Grande Guerra não respondia a um cálculo político, mas a um chamado de princípios. Merkel manteve-se firme diante de uma torrente de recriminações provenientes até dos altos círculos de seu próprio partido. O adeus começou ali.

 

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