sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Fernando Luiz Abrucio* - Não ter “virtù” é a marca de Bolsonaro

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Mais do que os mil dias de governo, teríamos que estar discutindo as fontes do atraso que alimentam a visão bolsonarista  de mundo

Ao completar os mil dias de seu governo, Bolsonaro mais reclamou do que comemorou. Para o presidente, se não fosse a pandemia e seus efeitos sociais e econômicos, tudo teria dado certo. Com essa postura, em vez de listar seus feitos e prometer um futuro ainda melhor, seu discurso terminou com uma pérola do anticlímax ao comentar a inflação galopante: “Nada está tão ruim que não possa piorar”. Culpar os outros e o mundo, além de amedrontar o eleitorado com a possibilidade de alguém pior ganhar em 2022, é uma forma de esconder as responsabilidades da Presidência atual pelo buraco em que o país se meteu, o mais profundo desde o fim do regime militar.

O Brasil regrediu em todos os sentidos nos últimos três anos. Primeiro, com pioras econômicas marcantes agora em termos de inflação, desemprego e crescimento. Segundo, com aumento da desigualdade e da pobreza, com o retorno de uma fome que não se via desde antes do Plano Real, há 27 anos. Terceiro, pela destruição das principais políticas públicas brasileiras, como a educação, saúde e meio ambiente, algo que facilitou a morte de quase 600 mil pessoas por covid-19, levou à perda da oportunidade educacional para milhões de crianças e jovens pobres, além de ter ampliado gigantescamente o desmatamento e outros desastres ambientais. Quarto, por meio do fortalecimento de um segmento populacional abertamente autoritário e sectário em termos políticos e culturais, gerando uma verdadeira “Idade Média” no debate, polarizado entre fiéis e infiéis. Por fim, relegando o país a uma situação de pária internacional, que terá impactos geopolíticos e nos investimentos produtivos, processo que atrasa a recuperação do desenvolvimento nacional.

Nos discursos comemorativos da semana, o presidente demonstrou saber que o país não estará em 2022 do modo como prometera na campanha de 2018. Seu biombo é culpar os outros e o destino. Não há aqui como fugir dos conceitos de um clássico da ciência política, Nicolau Maquiavel, por meio dos seus conceitos de “fortuna” e “virtù”, muito úteis para compreender o desempenho dos governantes e suas responsabilidades frente aos fatos. Já havia usado aqui na coluna esse conceito para analisar o primeiro ano de mandato de Bolsonaro (“Factoides não vão tirar o Brasil da crise”, 13 de março de 2020) e usá-lo novamente mostra como o presidente aprendeu pouco com sua experiência governamental.

O conceito de “fortuna” diz respeito às condições objetivas que os governantes enfrentam. As ações dos países, dos aliados, dos adversários, dos atores sociais e econômicos, junto com fatos inesperados, como a pandemia, tudo isso afeta a estratégia política de quem está no poder. Há momentos de boa fortuna, com tudo dando certo ao mesmo tempo, mas, como diria Maquiavel, o estadista somente é testado em situações adversas. Aí entra em jogo suas capacidades subjetivas, sua competência em lidar com momentos difíceis. Usando a linguagem do pensador florentino, trata-se da habilidade política dos líderes, expressa na palavra “virtù”, que não diz respeito às virtudes morais dos governantes e, sim, à sua eficiência em resolver os problemas coletivos e ser bem-sucedido perante o povo e a história.

A “fortuna” sorriu largamente para Bolsonaro durante a eleição de 2018. O eleitorado queria um candidato antissistema e não havia outro que vestia tão bem o figurino. Evidente que ele também teve “virtù” de realçar seu lado antipolítico, mas o problema é que ele tem demorado para entender a diferença entre o período eleitoral e as tarefas de um presidente - se é que capaz de entender.

O primeiro ano de mandato também trazia uma “fortuna” bastante favorável, com o líder do maior partido de oposição na cadeia, um Congresso mais liberal e reformista do que de costume, com um presidente do STF francamente amigável ao Executivo, em suma, era um céu de brigadeiro.

Bolsonaro perdeu uma enorme oportunidade no primeiro ano de governo porque ampliou o uso do figurino antissistema, falando mais com seus seguidores mais radicais do que com o eleitor mediano, brigando com vários atores sociais e políticos e, enfim, iniciando um processo de isolamento desnecessário. O crescimento do PIB de 2019, de 1,1%, foi menor do que o de 2018 (1,3%), último ano do governo Temer, certamente um presidente com menor legitimidade política. A popularidade presidencial também não cresceu, ao contrário, reduziu-se ao longo do ano, com um aumento expressivo do ruim e péssimo.

Sem dúvida alguma a pandemia piorou drasticamente a “fortuna” não só de Bolsonaro, mas de todos os governantes do mundo. É preciso lembrar isso, porque alguns deles, como as lideranças da Alemanha, da Nova Zelândia, do Canadá, aumentaram sua avaliação positiva em meio à maior crise social deste século. Exatamente nestes momentos é que sabemos quem é estadista e quem é um líder sem “virtù”. Infelizmente, o presidente brasileiro começou a trilhar em março de 2020 um caminho de erros sucessivos cuja responsabilidade é só dele.

Se o Brasil hoje está completamente à deriva, reduzindo drasticamente sua importância internacional, que cresceu nos períodos FHC e Lula, a responsabilidade maior e inequívoca por isso é de Bolsonaro. Falhou gravemente na pandemia, com uma política sanitária equivocada, com demora na compra e uso de vacinas, além de ter favorecido o negacionismo e grupos corruptos (econômica e moralmente) na atuação contra a covd-19.

Além disso, não terá muitos resultados a apresentar em 2022 em áreas estratégicas, como a economia, a educação e a segurança pública - o aumento exponencial de latrocínios tem forte correlação com a combinação de mais armas à disposição da sociedade com a desorganização econômica do país.

Hoje, o presidente tem 22% de avaliações como bom ou ótimo, enquanto 53% da população o considera ruim ou péssimo, segundo o Datafolha. O cenário do ano que vem não apresenta sinais de que esse quadro vá melhorar muito - na verdade, ele tem mais chances de piorar. Do ponto de vista da eleição, neste momento Bolsonaro perderia de lavada para o ex-presidente Lula no primeiro e no segundo turno, conforme todas as pesquisas de opinião. Culpar apenas a má sorte por tal situação é fugir do fracasso causado pelos grandes equívocos do modo bolsonarista de governar.

É incorreto dizer, entretanto, que Bolsonaro não tenha demonstrado nenhuma “virtù” durante o mandato. Duas habilidades políticas ele tem expressado de maneira clara. A primeira é a de conseguir sobreviver politicamente em meio às denúncias contra seu governo e a família presidencial. Por meio do acordo com o Centrão, que garantiu a eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara dos Deputados, centenas de pedidos de impeachment estão engavetados, especialmente porque foi criado um “orçamento secreto” de R$ 30 bilhões, controlado pelos próprios deputados.

A escolha de um procurador-geral da República fiel ao bolsonarismo é a outra peça que evita a condenação penal dos bolsonaristas e do próprio presidente por crime de responsabilidade. Mas ainda há os governadores, o Senado, a oposição de esquerda (por enquanto, com mais força eleitoral), a mídia, atores sociais independentes e, sobretudo, o STF para colocar medo e freios em Bolsonaro e seus aliados. É isso que, por ora, tem acalmado os instintos mais autoritários do governo.

A segunda “virtù” do presidente está em sua máquina de propaganda. Sua comunicação é muito bem trabalhada em redes sociais e em grupos sociais específicos como evangélicos, caminhoneiros, policiais e parte dos ruralistas. O governo Bolsonaro pode ser resumido como uma eterna campanha eleitoral com pouco ou quase nada de políticas públicas.

Por isso que, mesmo com indicadores econômicos e sociais péssimos, o bolsonarismo ainda acredita na reeleição usando uma estratégia baseada na guerra cultural em nome de Deus e da família, em muita propaganda, em emendas secretas para parlamentares e nas verbas orçamentárias para jogar dinheiro de helicóptero aos pobres.

A recuperação do Brasil no pós-pandemia dependerá de outros tipos de “virtù” que Bolsonaro até agora não demonstrou ter. Ele não foi capaz de escolher os melhores quadros para comandar as políticas públicas, não tem um diagnóstico objetivo do país e que dialogue com as experiências internacionais bem-sucedidas, não consegue conversar e construir consensos com os diversos setores da sociedade e, pior, está alimentando o sistema político com o que há de pior nele.

Aqueles que ficaram entusiasmados com sua agenda econômica inicial, e que hoje ficam abismados com a reforma tributária ou a privatização da Eletrobras que foram entreguem ao país, não entenderam que o bolsonarismo, nos seus melhores momentos, segue a máxima da política do período imperial brasileiro: reformas liberais implantadas por escravocratas.

Mais do que os mil dias desse governo, teríamos que estar discutindo agora as fontes do atraso que alimentam a visão bolsonarista de mundo. E o último ano de mandato de Bolsonaro tende apenas a aprofundar essa lógica perversa, que produzirá péssimos resultados econômicos, sociais e políticos, mas que terá uma excelente propaganda em nome de Deus, da família e da propriedade.

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

 

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