sexta-feira, 1 de outubro de 2021

José de Souza Martins* - Paulo Freire, educador

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Seu sistema era libertador, ao criar condições de que o alfabetizado compreendesse o mundo em sua própria perspectiva, e não como objeto

Neste centenário do educador Paulo Freire, um marco de sua biografia é o acontecimento que ficou conhecido como “As 40 horas de Angicos”, no sertão do Rio Grande do Norte, em 1963. Ali começava uma revolução educacional que se expandiria pelo país, pelo continente e pela África: ensinar adultos iletrados a ler e a escrever em 40 horas. O ensino se baseava no método criado por ele, que alterava profundamente a concepção de alfabetização de adultos.

O modo tradicional de fazê-lo pressupunha que todo analfabeto, independentemente da idade, era infantil. Usava-se com ele ou cartilhas para crianças ou cartilhas infantilizadas, com frases de referência, sem sentido, do tipo “Eva viu a uva”.

Em se tratando de adultos, o método pressupunha que são eles donos de um saber provado na sua experiência de vida. Portanto, a questão era tratar esse saber como um bem social.

A alfabetização começava com a pesquisa da língua e da linguagem das pessoas dos lugares em que ela seria realizada. Em vez de o aluno falar a língua do educador, o educador é que aprendia a língua de quem seria alfabetizado. Na prática, o professor é aluno de seus alunos. Nesse diálogo ele aprende para ensinar, para ser um agente de mediação da universalidade contida no vocabulário, na linguagem e no pensamento de que as palavras são instrumentos.

A fala popular é prática que já contém a lógica que poderia dar sentido à palavra escrita e à palavra lida. Porque a vida não é feita de certezas, de respostas prontas, mas de perguntas, de desafios. É a vida que dá sentido às palavras.

Muitos estudiosos procuram conexões teóricas entre o método de Paulo Freire e autores e correntes de pensamento que o situem nesse ou naquele campo teórico. Na verdade a prática inspiradora do método de Freire é a do método indutivo desdobrado para o método transdutivo. Aquele que Henri Lefebvre definiu como o momento do método de observação da realidade que desvenda o possível, o que pode ser, mas ainda não é porque está aprisionado na realidade bloqueada. Alfabetizar é quebrar os grilhões desse bloqueio.

Sua peculiaridade pedagógica é a de que o aluno, ao perguntar ao professor, ensina-lhe a fazer as perguntas certas à realidade cujas significações e possibilidades escapam dos procedimentos dedutivos de enquadramento do real no já sabido.

Em 1963, no mundo inteiro, o saber dos simples estava desafiando o conhecimento consolidado e livresco. Ao interrogar quem os interrogava, os iletrados propunham novas perspectivas de compreensão e interpretação da sociedade nos vários campos do conhecimento: na educação, na religião, na sociologia, na antropologia, na psicologia. E nas outras ciências, por meio das chamadas etnociências.

A singularidade do pensamento de Paulo Freire foi a de traduzir-se num método de alfabetização que aculturava o educador. Por isso, sua obra não se propõe de chofre. Mas aos poucos. Na trajetória do exílio, ele foi tendo contato com outros campos de indagação que iam na mesma direção.

Alguns dos seus resultados foram a “Pedagogia do Oprimido” e o livro sobre extensão rural. Uma inversão no que a extensão havia sido até então nas escolas de agronomia. O método de Paulo Freire transforma-se, também, em método de explicação.

No encerramento das “40 horas de Angicos”, a aula simbólica foi proferida pelo então presidente da República, João Goulart. Duas filas atrás, o comandante do IV Exército, carrancudo, o general Castelo Branco, observava. Poucas horas depois, num jantar no Recife, ele se sentaria ao lado de Paulo Freire e lhe diria: “Eu desconfiava que o senhor era subversivo. Agora tenho certeza”.

Muito pouco tempo depois, ele daria o golpe de Estado, deporia Goulart e mandaria prender Paulo Freire. Era subversivo, comentaria com alguém, porque era contra a hierarquia.

Na verdade, o método era um método libertador, ao criar condições de que o alfabetizado pensasse com sua própria cabeça, seu próprio discernimento. Compreendesse o mundo e a realidade em sua própria perspectiva, como sujeito, e não como objeto, dominado e oprimido. O método de Paulo Freire completava a obra da abolição da escravatura.

O analfabetismo foi e tem sido, no Brasil, um instrumento de dominação e de poder, o poder do atraso que nos tiraniza até hoje. A república anômala alimentou-se dele como meio de usurpação da liberdade teórica concedida aos desvalidos.

Angicos tinha 700 eleitores. Alguns dias após o término do curso das 40 horas, 300 dos seus alfabetizados entraram em cartório com os pedidos de título de eleitor. O método de Paulo Freire ameaçava o pilar da dominação oligárquica e latifundista. Poderia transformar um país de servos num país de cidadãos.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Linchamentos - a justiça popular no Brasil" (Contexto).

 

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