quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Malu Gaspar - Garantismo em causa própria

O Globo

Em Brasília, alguns termos adquirem significado ímpar. Um deles é urgência. O outro é garantismo. O dicionário diz que uma coisa é urgente quando não pode ser retardada, é imprescindível, indispensável.

Garantismo é o nome que o Direito dá à defesa dos instrumentos legais que protegem os cidadãos de eventuais abusos do Estado. O primeiro “teste do Aurélio” ocorreu quando a Câmara dos Deputados aprovou uma nova Lei de Improbidade Administrativa, desfigurando a que estava em vigor.

Na sessão que já ficou na História, o texto que vinha sendo discutido havia meses com a sociedade foi substituído por outro e votado em oito minutos pelo plenário, sem qualquer discussão extra. A versão final foi aprovada no Senado há duas semanas e tramitou num ritmo igualmente veloz.

nova lei diz que, para punir um gestor público por um malfeito, seria necessário comprovar o dolo, a intenção de cometer uma irregularidade. Dependendo do nível hierárquico da autoridade envolvida — digamos, um presidente que posterga deliberadamente a compra de vacinas —, os novos critérios podem tornar essa “intenção” bem difícil de provar.

Pela nova lei, os prazos dos processos por improbidade também prescrevem mais rápido. Seus defensores argumentam que as mudanças eram necessárias para impedir que os bons gestores se afastassem de funções públicas, já que a antiga lei vinha sendo usada pelo Ministério Público (MP) para perseguir a classe política.

O sucesso da primeira tentativa levou a uma nova ofensiva, desta vez contra a independência do próprio MP. A proposta que tramita a toque de caixa é a mudança da Constituição que aumenta o poder do Congresso e do procurador-geral da República sobre a atuação de procuradores e promotores.

Seu teor é tão flagrante que ela já ganhou o apelido de “PEC da Vingança”, numa referência ao revide dos políticos contra a Lava-Jato. O texto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) estava em análise numa comissão especial quando, sem aviso, recebeu emendas do relator, Paulo Magalhães (PSD-BA), e entrou na pauta da Câmara para votação imediata no plenário.

A nova regra altera profundamente o funcionamento dos dois principais órgãos de fiscalização e regulação do Ministério Público. No caso do primeiro, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que conduz todos os processos disciplinares, aumenta de dois para quatro a quantidade de conselheiros indicados pelo Congresso — que ganha ainda o poder de indicar justamente o corregedor. Além disso, a PEC autoriza o conselho a modificar ou revogar medidas tomadas por procuradores e promotores do Brasil inteiro.

O texto também muda a composição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e dos conselhos estaduais, que regulam as questões funcionais e de procedimento da instituição.

Hoje, com exceção do presidente e do vice-presidente, todos os membros são eleitos pela categoria. Se a PEC for aprovada, dois terços passarão a ser escolhidos pelo chefe do MP, seja ele o procurador-geral da República, sejam os procuradores-gerais dos estados.

Se essa configuração estivesse valendo hoje, os membros do CSMP certamente não teriam cobrado do procurador-geral da República, Augusto Aras, uma posição diante dos ataques de Jair Bolsonaro ao TSE ou à urna eletrônica, nem teriam feito nada para pressionar Aras a atuar para que Bolsonaro tomasse medidas para garantir a compra de vacinas. Afinal, quase todos teriam sido escolhidos pelo próprio Aras. 

Não que o MP seja uma instituição irretocável, ou que não seja necessário avaliar os erros e abusos cometidos pela Lava-Jato. O debate é importante para o fortalecimento da democracia.

Mas, quando se trata de mudanças profundas com tamanha ligeireza, fica parecendo que, para os parlamentares, tutelar os procuradores e promotores é mais urgente que encontrar uma nova configuração do Bolsa Família ou desatar os nós da reforma tributária.

A pressa é tanta que os legisladores não previram nenhuma medida destinada a garantir que o procurador-geral da República seja obrigado a cumprir sua função — e investigue a real responsabilidade de Bolsonaro pela negligência no combate à pandemia, pela disseminação de fake news ou pelos ataques ao Supremo Tribunal Federal.

Os abusos do Estado contra os cidadãos comuns, nesse caso, vão passando incólumes. Pelo jeito, no manual dos políticos, o garantismo que vale mesmo é aquele que funciona em causa própria.

 

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