domingo, 3 de outubro de 2021

Nem Keynes nem Friedman

Joe Biden quer iniciar nova era na política econômica

Fazem parte dos planos que somam US$ 3 trilhões o fortalecimento do poder de barganha do trabalho e a valorização da economia dos cuidados: atenção à saúde, à infância e aos idosos

Por Diego Viana / Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

ousadia dos planos econômicos de Joe Biden surpreendeu adversários e aliados. Considerado um membro da ala mais moderada do Partido Democrata, Biden propôs três grandes projetos que, somados, atingem US$ 6 trilhões. A magnitude do projeto provocou temores de retorno da inflação e má alocação de recursos, mas o presidente dos EUA já declarou em mais de uma ocasião que está disposto a errar pelo excesso, não pela falta.

Embora expresse um volume de investimentos que não se via desde a Guerra Fria, o impacto da chamada Bidenomics vai além dos gastos com infraestrutura, energia e formação da mão de obra. Fazem parte dos planos o fortalecimento do poder de barganha do trabalho e a valorização da economia dos cuidados: atenção à saúde, à infância e aos idosos. Influenciado pela popularidade, sobretudo entre jovens, da ala esquerda do Partido Democrata, Biden se propõe a inaugurar uma nova era na história econômica americana.

Em abril do ano passado, ainda pré-candidato à presidência, Biden declarou que “já não é mais Milton Friedman quem dá as cartas”. O democrata se referia à forte influência que o economista liberal, ferrenho opositor de gastos sociais, exerce, desde fins da década de 1970, na política americana e na produção acadêmica em economia. No entanto, o que não foi respondido naquele momento é quem dá as cartas que já não cabem a Friedman.

O baralho dos elementos que constituem esse carteado econômico tem naipes de diferentes origens. Por um lado, toma emprestado referências do New Deal da década de 1930 e do capitalismo administrado do pós-guerra. Por outro, alimenta-se de problemas emergentes, como clima, desigualdade e a economia do cuidado. O contexto histórico das propostas também é inédito, resultado da combinação de crise climática, concorrência pela hegemonia geopolítica e transformação demográfica.

O comentarista econômico Noah Smith, da Bloomberg, escreve que “todo novo presidente chega com uma lista de iniciativas, mas a cada três ou quatro décadas um deles traz uma filosofia nova. O teor, ritmo e escopo do plano de Biden sugerem que estamos entrando em um novo paradigma, como com Franklin Roosevelt, em 1933, e Ronald Reagan, em 1981”.

Os dois presidentes citados traduzem as mais radicais transformações da política econômica americana no último século. O nome de Roosevelt, que assumiu em plena Grande Depressão, ficaria ligado ao capitalismo regulado, inspirando a era conhecida como fordista-keynesiana.

O papel de John Maynard Keynes na configuração dessa era foi mostrar que é possível à economia encontrar equilíbrios que não coincidem com o pleno emprego; então, em momentos de crise, a intervenção do governo pode manter a máquina em movimento. Já Reagan, que se tornou presidente após uma década de inflação alta e crescimento pífio, representa a volta do liberalismo ao poder, cortando gastos sociais e promovendo a autorregulação do mercado. O economista que simboliza essa virada é aquele que, segundo Biden, não dá mais as cartas: Milton Friedman.

Biden “sempre foi visto como um moderado, mas também era reconhecido como um democrata herdeiro do New Deal”, argumenta a cientista política e socióloga Margaret Weir, da Universidade Brown. Para Weir, um governo federal com papel forte, que cobra impostos e gasta, é referência que o presidente americano tem na memória. “Ironicamente, sua idade [78 anos] talvez faça dele alguém mais simpático à abordagem em que ‘se há um problema, o governo federal pode ajudar a resolvê-lo’.”

As diferenças para o período de Roosevelt são tão relevantes quanto as semelhanças, segundo o economista Stephen Marglin, da Universidade Harvard. O economista afirma que a profundidade da crise e o escopo da mudança atual não chegam perto do que ocorreu nos anos 1930.

Por outro lado, “a ambição de incorrer em déficits para financiar os programas é até maior do que a de Roosevelt, que apenas aceitava os déficits como preço necessário a pagar para obter a restauração da economia”, afirma. “A ênfase atual nos objetivos a atingir, deixando a questão orçamentária em segundo plano, é uma virada enorme no contexto atual.”

Com o título geral de “Reconstruir Melhor” (Build Back Better), o projeto econômico de Biden se divide em dois: o “plano de empregos” (American Jobs Plan) e o “plano das famílias” (American Families Act), além do programa já instituído de recuperação da pandemia, o “American Rescue Plan”, que somou US$ 1,9 trilhão. Os dois projetos ainda em votação preveem despesas em torno de US$ 4 trilhões ao longo de dez anos.

Proposto em março, o plano de empregos tem como centro o investimento em infraestrutura, com uma importante nuance. O documento que lançou o programa anuncia a “ampliação do conceito de infraestrutura”, incluindo o capital humano, com foco na economia dos cuidados e no treinamento da mão de obra.

Só os investimentos ligados à mudança climática, sobretudo a transição das fontes de energia, somam quase US$ 800 bilhões. Em seguida, os setores com maior previsão de investimento são transportes e saúde (cerca de US$ 450 bilhões cada um). Já o plano das famílias contém medidas como a expansão do ensino gratuito e a criação de licenças maternidade e paternidade, além de subsídios destinados à redução da pobreza infantil.

“A extensão do conceito de infraestrutura é uma grande novidade”, afirma Marglin. “Já não tem mais sentido usar essa palavra do mesmo jeito que nos anos 50, 60 e 70, porque ela se refere àquilo que mantém a economia funcionando, e cada vez mais os elementos do cuidado se tornam preponderantes na nossa vida. Hoje, educação, creches, saúde e atenção aos idosos são tão importantes quanto estradas, portos e outras estruturas físicas para facilitar as trocas de mercado.”

“O programa de Biden é um divisor de águas. Redefine o papel do governo na economia e dirige investimentos para setores e atividades específicos”, afirma a economista Megan Greene, de Harvard. “As medidas revertem a tendência decrescente de longo prazo no investimento público e encorajam o investimento privado. O resultado esperado é uma alta geral do investimento nacional, compensando parte do excesso de poupança que contribuiu para a estagnação secular”, acrescenta, referindo-se ao baixo crescimento da última década.

Um dos maiores críticos da Bidenomics é um ex-assessor de presidentes democratas: o economista Nouriel Roubini, professor da Universidade de Nova York, que foi membro do Conselho de Assessores Econômicos de Clinton e conselheiro de Timothy Geithner quando este era secretário do Tesouro sob Obama. Para Roubini, o projeto do atual mandatário é “neopopulista” e “não muito diferente da doutrina econômica de Trump”.

Roubini compara Trump e Biden aos presidentes anteriores: Obama, Clinton e o republicano George W. Bush, que favoreciam a liberalização comercial, a independência do Federal Reserve (Fed, o banco central), o dólar forte e a austeridade.

“Eram políticas neoliberais, com a desregulação de bens e serviços que favoreceu a formação dos atuais oligopólios em setores como o corporativo, tecnológico e financeiro”, resume. Trump promoveu o retorno ao protecionismo, tentando atrair empregos industriais perdidos na última década, e Biden manteve os esforços de renacionalização, incluindo exigências de compras públicas locais mais rigorosas do que as do antecessor.

“Não se pode dizer que Biden formalmente seguiu Trump na exigência de um dólar mais fraco, nem intimidou o Fed a financiar os déficits crescentes, mas seu governo está tomando medidas que vão exigir uma cooperação maior do Fed”, aponta Roubini. “De fato, os EUA entraram em um estado de monetização constante da dívida, embora não oficialmente. Essa política começou com Trump.”

Roubini vem alertando para o excesso de títulos públicos na mão do Fed, o que limita sua capacidade de reagir a uma alta sustentada da inflação. A única possibilidade que sobra é uma “política de negligência benigna”: uma intervenção anti-inflacionária poderia conduzir ao crash dos mercados e uma recessão severa. “As condições atuais já são condizentes com uma nova estagflação”, alerta, acrescentando que a economia americana, afogando-se em dívidas privadas e públicas, está vulnerável a choques como a crise climática, a pandemia, a reversão da globalização ou a transição etária.

 “A transição na doutrina econômica não é surpreendente. Acontece sempre que a desigualdade se torna excessiva. Os políticos, de esquerda como de direita, se tornam mais populistas. A alternativa seria deixar a desigualdade correr solta e virar fonte de conflito social e, em casos extremos, guerra civil ou revolução.”

Um sinal do triunfo de uma doutrina econômica é sua adoção por grupos que eram seus adversários. As três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial são keynesianas não porque todos os governos tivessem inclinação à esquerda, mas porque lideranças de direita seguiram seu receituário, como ficou cristalizado na frase de Richard Nixon, presidente americano de 1969 a 1974: “Somos todos keynesianos agora”. Mais tarde, as políticas econômicas do Partido Democrata seriam ditadas por seguidores de Friedman, como Robert Rubin e Lawrence Summers, que foram secretários do Tesouro no governo de Bill Clinton, na década de 1990. Ao aprovar a reforma do bem-estar social em 1996, Clinton afirmou que “a era do governo grande terminou”.

Se o gatilho para o New Deal e a ascensão do keynesianismo foi a Grande Depressão, um período de deflação, desemprego em massa e queda acentuada da renda, o triunfo de Friedman foi fomentado nos anos 1970, década da estagnação econômica associada a inflação alta. Também foi necessária uma década de dificuldades para dar início à queda do paradigma neoliberal: desde a crise de 2008, viveu-se a era que Summers nomeou “estagnação secular”, ao menos no mundo desenvolvido. O período foi marcado por crescimento baixo, inflação quase nula e juros eventualmente negativos, apesar de volumosos incentivos monetários dos bancos centrais.

Desde 2008, quando Barack Obama foi eleito presidente com a crítica das políticas liberais que teriam causado a crise dos subprimes, havia a expectativa de que a “Friedmanomics” seria abandonada. Não foi o que aconteceu. As políticas de Obama foram consideradas tão conservadoras quanto as de seus antecessores, decepcionando parte do eleitorado democrata.

“Muita coisa mudou de lá para cá”, diz Weir. “O desapontamento com Obama e a frustração dos democratas com o bloqueio de suas pautas no Senado deixaram um reservatório de desejos por satisfazer em termos de política pública. Agora, os democratas estão com um espírito de ‘aprendemos a lição’ e não querem procurar um meio-campo.”

Também há raízes mais profundas. Um diferencial da Bidenomics é conter muitas medidas que transbordam as preocupações clássicas da economia, isto é: a referência a Keynes e Friedman não dá conta de explicá-la. Ou seja, não se trata do mero retorno ao mundo que precedeu Reagan. “A Bidenomics põe o foco nos trabalhadores, mas também na desigualdade e na sustentabilidade, pilares que não receberam apoio suficiente desde a crise financeira global”, diz Greene.

Muitas análises que buscam explicar a perda de influência de Friedman insistem em pontos que vão além da doutrina econômica. Na década de 1960, quando ainda era uma figura pouco presente no debate público, o economista foi alçado à condição de porta-voz informal de movimentos contrários aos direitos civis, relata o jornalista Zachary Carter. Na época, avançavam as leis que obrigavam escolas públicas a integrar estudantes brancos e negros, bem como outras leis projetadas para combater a segregação racial.

Friedman argumentava que não cabe à lei corrigir as relações raciais, e seus argumentos serviram para bloquear políticas públicas que visavam compensar injustiças históricas. Algumas de suas ideias, como os vouchers para a educação, com os quais os pais podem decidir as escolas em que matriculam os filhos, floresceram nesse contexto. Nos estados do Sul dos EUA, o princípio serviu de pretexto para garantir a famílias brancas a possibilidade de não estudar com crianças negras.

A emergência de novos conflitos e pressões sociais, sobretudo centradas em raça e gênero, indicam que a neutralidade que Friedman pregava deixou de ser possível. A ideia de que os governos não devem buscar corrigir as causas da desigualdade perdeu espaço na última década, que marcou o retorno do ativismo social, com movimentos reivindicatórios tomando as ruas de diversas cidades americanas.

A demografia também influi na transformação do ambiente político. Em agosto, o censo dos EUA mostrou que a estrutura demográfica está mudando mais rápido do que o esperado, com 40% da população se identificando como não branca. Há 30 anos, os brancos eram mais de 80%. Esse processo indica que demandas por justiça social, principalmente racial, tendem a crescer. Com a população mais diversa, as minorias ampliam sua capacidade de pressão.

“A esquerda teria desejado que as mudanças demográficas fizessem efeito mais cedo, mas agora as pressões se fazem sentir sobre o sistema político”, afirma a socióloga Monica Prasad, da Universidade Northwestern. “Há outros elementos importantes, como a expansão da dívida dos estudantes e a consequente radicalização dos jovens, que não só explicam os sucessos recentes dos democratas, mas também a transição à esquerda no partido.”

Para Marglin, as transformações sociais influenciam as políticas de Biden por intermédio de seu efeito sobre o Partido Democrata, onde a ala esquerda vem ganhando influência. “Em 2015, [o senador] Bernie Sanders era uma voz solitária, mas agora há todo um grupo que gravita em torno dele e [da senadora] Elizabeth Warren. Embora ambos tenham mais de 70 anos, seu grupo é a ala mais jovem do partido. Se os Democratas quiserem se manter relevantes daqui por diante, vão ter que incorporar esse grupo”, diz.

O economista, que leciona em Harvard desde 1966, vê na mudança do perfil de seus estudantes a fonte que alimenta o crescimento das pautas sociais entre os democratas. “A maior parte dos jovens estudantes de hoje não teria um lugar à mesa quando comecei a ensinar. Essas pessoas não só têm origens sociais e raciais diferentes, como trazem uma cultura nova, com ideias e exigências que mudaram muito.”

“Não foram só as falhas do neoliberalismo que abriram o caminho para a Bidenomics, mas também os movimentos sociais: Occupy, Black Lives Matter, Extinction Rebellion e outros, que desafiaram os valores neoliberais e tornaram possíveis as campanhas de Sanders e Warren”, afirma a cientista política Wendy Brown, da Universidade da Califórnia em Berkeley e autora de “Nas ruínas do neoliberalismo”. “A pandemia também tornou essenciais as grandes respostas do governo. Biden surfou uma onda.”

Para Prasad, as políticas de Trump tiveram um impacto ainda maior, já que radicalizaram a própria base e, com isso, incentivaram a radicalização também do outro lado. Trump explorou exaustivamente temas ligados à demografia e à cultura, pondo no centro do debate as fricções em torno de raça, gênero e imigração. “A tentativa dos republicanos da Geórgia para impedir minorias de votar teve o efeito oposto ao desejado: esses eleitores ficaram irados e saíram de casa para votar em números ainda maiores”, aponta, acrescentando que os dois senadores democratas eleitos no estado sulista, Raphael Warnock e Jon Ossoff, foram “o que tornou a Bidenomics uma possibilidade concreta”.

Se o período após a Grande Depressão foi apelidado de “keynesiano” e as décadas que se seguiram à estagflação foram “friedmanianas”, a próxima etapa das políticas econômicas será batizada com o nome de uma pessoa? “Sim, se for uma mulher!”, responde Weir. “Muito do lado humano desse plano se relaciona com o trabalho de cuidados, tradicionalmente feito por mulheres. Os cuidados estão finalmente sendo reconhecidos como atuação social digna de valor. É a atualização das políticas do New Deal, que eram calcadas no ‘homem provedor’.”

Há um paralelo entre a expansão das demandas sociais e a mudança na pesquisa em economia nas últimas duas décadas. A estagnação do rendimento dos trabalhadores levou a movimentos como o Occupy Wall Street, em 2011, e ao sucesso de obras sobre desigualdade, como a de Thomas Piketty, cujo “O capital no século XXI” se tornou best-seller em 2014.

Em janeiro de 2019, um grupo de economistas com formação neoclássica, como Suresh Naidu, Dani Rodrik e Gabriel Zucman, anunciou a criação da iniciativa Econfip (Economia para uma prosperidade inclusiva), com pesquisas que mostram a necessidade de políticas públicas que pensem não só em crescimento, mas também no combate às desigualdades que resultam das forças de mercado. No mesmo ano, três economistas que pesquisam a pobreza receberam o Prêmio Nobel: Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer.

Entretanto, esses ainda são temas menos disseminados na pesquisa econômica, conforme pesquisa de Martin Cihák, Montfort Mlachila e Ratna Sahay, economistas do Fundo Monetário Internacional. Analisando os dez periódicos mais prestigiosos da área, ao longo da última década, o grupo descobriu que só 0,2% de um total de 7.920 artigos trata de raça, desigualdade racial e racismo.

O gênero é tratado em 0,8% dos artigos; a pobreza, em 1,4%, e a distribuição de renda, em 2%. Os temas clássicos ainda dominam: a política monetária está em 7,4% das publicações; a liquidez nos mercados financeiros, em 4,3%, e os preços de ativos de capital, em 3,8%.

Os novos rumos intelectuais se refletem na Bidenomics. “No intervalo entre o governo de Obama e o atual, o mundo dos think tanks na esquerda liberal cresceu e se tornou mais influente. Parece que os Larry Summers deste mundo já viveram seu auge e chegou o tempo de tentar outra coisa”, diz Weir. “Os dois grandes casos são o Washington Center for Equitable Growth (Centro Washington pelo Crescimento Justo), dirigido por Heather Boushey, hoje membro do Conselho de Assessores Econômicos, e o Roosevelt Institute, que vem delineando uma abordagem econômica alternativa.”

Boushey, economista que fez carreira no think tank Center for American Progress, é uma das principais influências econômicas sobre o atual governo. Em 2019, ela publicou o livro “Unbound: How Inequality Constricts Our Economy and What We Can Do about It” (Desimpedida: como a desigualdade limita nossa economia e o que podemos fazer a respeito), onde se lê:

“(...) a combinação de experiência vivida e pesquisa acadêmica está produzindo um consenso sobre o que produz crescimento econômico e estabilidade. Políticas que taxam insuficientemente os mais ricos ou os deixam ignorar as regras não geram prosperidade compartilhada, mas maior desigualdade econômica. Precisamos entender como o poder econômico se traduz em poder social e político, rejeitando velhas teorias que tratam a economia como um sistema governado por leis naturais separadas da sociedade”.

O Roosevelt Institute, por sua vez, é dirigido pela economista Felicia Wong. Em janeiro de 2020, Wong publicou o estudo “Uma Visão de Mundo Emergente”, em que anuncia em tom discretamente triunfal a chegada de um “novo progressismo”, superando 40 anos de neoliberalismo. Os quatro pontos que Wong menciona como reveladores da mudança de ares coincidem com áreas em que os planos de Biden são agressivos.

O primeiro é a diferença de remuneração entre capital e trabalho, tema central do best-seller de Piketty: a solução para a tendência a retornos maiores para o capital é o aumento da taxação e um sistema tributário mais progressivo. O plano de Biden inclui uma reforma tributária e, em junho, na reunião do G7, Biden foi um dos principais promotores da taxação corporativa mínima internacional.

O segundo ponto é a concentração de poder nas mãos das corporações. A solução proposta é fortalecer a legislação antitruste. No governo Biden, a responsável pela Federal Trade Commission (FTC, a agência de comércio) é Lina Khan, jurista da Universidade Columbia conhecida por seus trabalhos no combate aos trustes.

Em seguida, Wong cita o enfraquecimento dos sindicatos, que reduziu a proporção da renda que vai para os salários. Como propõe o estudo, Biden anunciou desde o início do governo a intenção de fortalecer as organizações de trabalhadores. Por fim, a economista chama a atenção para a carga maior de exclusão que recai sobre as mulheres e a população não branca dos EUA, o que compromete as possibilidades de desenvolvimento individuais e coletivas.

Uma terceira influência vem dos economistas heterodoxos reunidos na doutrina conhecida como Teoria Monetária Moderna (Modern Money Theory, ou MMT), sobretudo Stephanie Kelton, da Universidade Stony Brook, autora de “The Deficit Myth” (O mito do déficit), publicado no ano passado. O mais ambicioso projeto da ala esquerda do Partido Democrata, o Green New Deal, que prevê a completa transformação sustentável da infraestrutura física do país, evoca a MMT para justificar a vastidão dos gastos públicos, sem temer déficits orçamentários ou inflação.

Kelton é uma das principais defensoras do projeto do Green New Deal e se tornou porta-voz extraoficial dos congressistas democratas da ala esquerda. No entanto, diferentemente do que propõem Kelton e os demais economistas da MMT, o plano de infraestrutura é em boa parte financiado por aumentos de impostos para as faixas mais altas e uma reversão do corte no imposto de renda corporativo feito sob Trump.

Os itens de ambos os planos têm sido levados a votação no Congresso em partes. Em agosto, foi aprovado no Senado, com apoio de ambos os partidos, um pacote de infraestrutura de US$ 1 trilhão, incluindo provisões de treinamento e economia dos cuidados, conforme a definição do projeto original. Porém, a democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, declarou que só levaria o plano à votação depois que fosse votada uma lei maior, de US$ 3,5 trilhões.

Apesar dos debates que suscita e das votações favoráveis, o plano econômico de Biden ainda não é realidade, e o risco de não se concretizar é longe de negligenciável. “Não sabemos quanto desse programa vai sair, nem seu formato definitivo. É uma informação que só teremos ao fim do processo legislativo. Na verdade, a janela de oportunidade para aprovar esses planos se fecha em poucos meses. No ano que vem, os políticos vão estar mobilizados para a eleição de meio de mandato e não vão levar adiante algo tão amplo”, alerta Marglin.

Prasad acrescenta que a atmosfera progressista que ajudou a eleger Biden é frágil. “No ano passado, quase metade dos eleitores votou em Trump - e não foi só a classe trabalhadora branca. O republicano ganhou votos de negros e hispânicos, em comparação com 2016. Não está claro por que, mas uma hipótese é que os eleitores negros temem a competição de imigrantes, enquanto hispânicos têm manifestado aprovação às políticas econômicas de Trump”, afirma.

“Biden pode recuperar esses grupos para os Democratas, sobretudo se as pessoas virem benefícios econômicos dos investimentos. Algo assim reduziria a pressão em pautas como identidade e cultura. Mas, se algo acontecer, como a morte de um senador cuja vaga vá para os republicanos, por exemplo, aí quem sabe o caos que vai se instalar!”, adverte.

Para Brown, os princípios e o modo de gestão do neoliberalismo ainda estão profundamente arraigados nas instituições e na cultura americana. “Das escolas às entidades sem fins lucrativos, da mídia às carreiras, tudo é organizado segundo esses princípios. A direita, por sinal, não abandonou seus compromissos com o Estado pequeno e a oposição à provisão de bem-estar. O neoliberalismo mudou e está sendo desafiado nos EUA, mas certamente não pode ser dado por morto”, diz.

 

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