domingo, 3 de outubro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A punição depois da CPI da Covid

O Globo

Não é trivial a coleção de fatos apurados pela CPI da Covid. Não se trata, como no passado, apenas de investigar corrupção, enfraquecer adversários e aproveitar os holofotes — embora tais ingredientes também estejam presentes. Desta vez, o inquérito dos senadores se debruçou sobre um evento singular: o morticínio de 600 mil brasileiros na pandemia. Nunca houve CPI como esta. À medida que os trabalhos se aproximam do desfecho, o desafio do relatório final é atribuir as responsabilidades e configurar os crimes diante de fatos chocantes e revoltantes por si sós. Eis os principais:

1) O presidente Jair Bolsonaro desprezou as normas sanitárias e pôs em risco a saúde da população, ao promover e participar de dezenas de aglomerações, desdenhar o uso de máscaras e o distanciamento social, recomendados pelo consenso científico;

2) O governo federal sabotou medidas de prevenção e defendeu a ampliação do contágio — portanto, das mortes — como forma de atingir mais rápido a “imunidade de rebanho”;

3) Desde o início da pandemia, Bolsonaro criou um gabinete paralelo de aconselhamento, à revelia dos organismos oficiais, formado por pseudocientistas, empresários e políticos alinhados ideologicamente;

4) O governo federal tentou manipular o número de mortes para reduzir o impacto público da pandemia;

5) Bolsonaro e o governo incentivaram a produção e distribuição de milhões de comprimidos de cloroquina e do “kit Covid” para o “tratamento precoce” com drogas ineficazes, temas de propaganda oficial;

6) Empresários próximos ao governo financiaram uma campanha de desinformação que pôs em risco a saúde pública, com foco em teses descabidas como “imunidade de rebanho”, “tratamento precoce”, “isolamento vertical” e mentiras contra as vacinas;

7) O governo desdenhou ofertas de vacinas que poderiam ter evitado centenas de milhares de mortes;

8) Representantes do governo participaram de esquemas para importar vacinas de intermediários suspeitos em troca de propina. Informado sobre um dos esquemas, Bolsonaro nada fez;

9) No auge da tragédia no Amazonas, o Ministério da Saúde ignorou os hospitais em colapso sem oxigênio, enquanto enviava cloroquina ao estado;

10) O governo foi omisso diante da população indígena. O resultado foi mais contágio e mais mortes;

11) Pacientes do Amazonas e do Rio Grande do Sul foram usados sem consentimento como cobaias em testes pseudocientíficos sem aval dos organismos éticos competentes;

12) Acusações de uso de cobaias humanas sem consentimento e fraudes se estendem à operadora de saúde Prevent Senior, cujo corpo técnico foi vinculado ao gabinete paralelo de aconselhamento a Bolsonaro.

Esses são os fatos. É deles que derivarão as consequências jurídicas. Apontar o que configura crime, quem são os acusados, processá-los e puni-los será outro desafio nada trivial. No parecer técnico encaminhado ao Senado, a comissão de juristas liderada pelo advogado Miguel Reale Júnior dividiu os tipos penais em cinco grupos, que poderiam ser reunidos em três, de acordo com o caminho dos processos.

Primeiro, os crimes de responsabilidade, cujo julgamento cabe ao Congresso. O parecer atribui a Bolsonaro o “desrespeito aos direitos à vida e à saúde” garantidos na Constituição. Seria motivo para mais um pedido de impeachment, além dos 131 a aguardar decisão do presidente da Câmara. Devido à natureza intrinsecamente política do impeachment, que exige dois terços na Câmara e no Senado, é improvável essas acusações prosperarem.

Segundo, os crimes contra a saúde, a paz e a administração públicas, cujo julgamento cabe à Justiça comum. Nesse capítulo, o parecer inclui, contra Bolsonaro ou integrantes do governo, acusações de infração de medida sanitária, epidemia, charlatanismo, incitação ao crime, corrupção passiva, estelionato, advocacia administrativa e prevaricação. No caso específico do presidente, enquanto ele estiver no poder, a abertura de processo dependeria da Procuradoria-Geral da República (PGR) — cujo titular, Augusto Aras, é conhecido pela leniência — e da autorização de dois terços da Câmara. O contexto político torna novamente improvável um processo no curto prazo.

Há, por fim, os crimes contra a humanidade, cujo julgamento caberia ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Estão incluídos aí os fatos relativos aos povos indígenas e à crise no Amazonas. O relatório final da CPI deveria seguir a recomendação dos juristas e evitar acusar Bolsonaro pelo crime que está na boca de todos os adversários políticos: o genocídio.

Tal acusação não se sustenta. Na definição jurídica, o genocídio envolve a intenção de destruir um grupo étnico, religioso, nacional, racial, cultural, de gênero etc. Por mais revoltantes que sejam os fatos apurados, nenhum corresponde a isso. “Com respeito ao genocídio, a evidência que vi não sustenta as exigências estabelecidas no artigo 6º do Estatuto de Roma”, afirma o franco-britânico Philippe Sands, jurista que defendeu várias causas no TPI.

Não significa que as barbaridades de Bolsonaro e dos demais envolvidos devam ser minimizadas. “Não vi as provas em detalhes, mas, pelo disponível publicamente, parece defensável a acusação de crimes contra a humanidade, embora difícil de estabelecer”, diz Sands. Trata-se de um tipo penal mais amplo, que inclui atos desumanos como tortura, escravidão, apartheid, violência sexual ou deportação forçada. A principal dificuldade (imposta pelo artigo 7º) seria mostrar que se tratou de “ataque generalizado ou sistemático contra a população civil”. O parecer dos juristas aponta nos fatos o contexto exigido para isso, mas o êxito em Haia, mesmo desimpedido pelas circunstâncias políticas locais, não seria fácil. O tribunal nunca julgou uma causa do tipo, e o procurador teria de correr um risco imponderável.

Os caminhos oferecidos pela Justiça para punir os responsáveis pela tragédia são íngremes. Não se deve, por isso, descartar a chance de mais esta CPI ter pouca consequência prática. Mas eles não devem ser abandonados. A memória dos mortos exige reparação.

Agressividade à esquerda

O Estado de S. Paulo

Mesmo depois dos danos causados ao Brasil, Lula prega a irresponsabilidade fiscal e a cizânia, como se vê pelo comportamento de seus apoiadores

O bolsonarismo não respeita quem pensa de forma diferente. Quando era deputado federal, Jair Bolsonaro defendeu o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso. Na Presidência da República, continua na mesma rota de intolerância e violência. Não apenas utiliza o aparato estatal para perseguir adversários políticos, como suas milícias digitais promovem campanhas difamatórias na internet contra os que resistem aos intentos bolsonaristas.

Mas a violência e a agressividade na política não são exclusividade do bolsonarismo. As ameaças sofridas pela deputada Tabata Amaral, por ocasião de sua filiação ao PSB, recordam como parte da esquerda também é intolerante, desrespeitosa e agressiva. O ator José de Abreu, conhecido apoiador do PT, reproduziu em sua conta no Twitter mensagem que dizia: “Se eu encontro (a Tabata) na rua, soco até ser preso”.

A publicação gerou imediata repercussão, com inúmeras manifestações de solidariedade à deputada. No entanto, houve também por parte de alguns simpatizantes da esquerda a tentativa de relativizar a agressividade contra Tabata Amaral, mencionando como contraponto suas opções políticas. Ou seja, o princípio da dignidade humana, pedra basilar dos direitos humanos, não valeria sempre. A depender das escolhas políticas da vítima, nem toda violência ou intolerância seria abominável.

Além disso, a ignorância também está presente em setores da esquerda. Se é vergonhoso que Jair Bolsonaro fale, na Assembleia-Geral da ONU, que “estávamos à beira do socialismo”, várias manifestações de militantes de esquerda reproduzem obtusidades e preconceitos igualmente constrangedores.

“Não nos esqueçamos (de) que Tabata do Amaral estudou nos USA, apoiada por um bilhardário (sic) brasileiro. Ela se embebeu da ideologia destas duas fontes. Seria bom se voltasse às origens humildes de onde veio e aprender (sic) com o povo. Os olhos suplicantes das crianças pedindo comida a converteriam”, escreveu Leonardo Boff em sua conta no Twitter.

post do conhecido teólogo, valendo-se do preconceito como arma política, também não é um caso isolado. Seu conteúdo remete ao constante discurso do PT, sempre carregado de imprecisões, simplismos e, não raro, do mais cabal negacionismo. 

A esquerda mostra-se muito arredia a qualquer comparação entre bolsonarismo e lulopetismo. Em sua ótica, haveria uma diferença radical quanto ao compromisso das duas forças políticas com a democracia, o que inviabilizaria, por princípio, qualquer possibilidade de cotejo entre elas. A realidade é um pouco mais embaraçosa, no entanto.

O apoio de Lula a regimes não democráticos, como o da Venezuela ou de Cuba, campeões de violações de direitos humanos em nome do “socialismo”, revela que sua defesa da democracia depende da plateia. Não se trata de uma convicção firme. Outros interesses podem condicioná-la, sem maiores rubores.

A defesa lulopetista da “regulação da mídia”, sob o argumento de que a imprensa persegue Lula, também contraria os fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, tão constrangedora quanto a hostilidade bolsonarista à imprensa. Não cabe ao Estado determinar o que os cidadãos podem ou não saber.

Por fim, o lulopetismo e o bolsonarismo se equivalem no negacionismo. Bolsonaro, por exemplo, não reconhece que errou ao dificultar a aquisição de vacinas e continua pregando o uso da cloroquina no tratamento contra a covid, custando milhares de vidas de brasileiros, apenas para satisfazer os interesses eleitorais do bolsonarismo. Incapaz de enfrentar com responsabilidade a pandemia, Bolsonaro optou por negar sua gravidade, instaurando uma revoltante política de descaso com a vida da população.

Igualmente negacionista e repleta de interesses políticos é a recusa do PT em admitir seus erros na seara econômica, na conivência com a corrupção e com o mau uso do dinheiro público e na disseminação do ódio no País. Mesmo depois de todos os danos causados ao Brasil, Lula continua pregando a irresponsabilidade fiscal e a cizânia, como se vê pelo comportamento de seus apoiadores. A esquerda pode ser democrática e responsável – tudo o que o lulopetismo não é.

Empresários pelo clima

O Estado de S. Paulo

Boa parte do empresariado está fazendo a sua parte em prol do meio ambiente

Em carta aberta, presidentes de 105 empresas nacionais e estrangeiras e de 10 entidades setoriais defenderam metas ambientais ambiciosas e o protagonismo do Brasil nas negociações do clima. Às vésperas da Cúpula do Clima da ONU (COP 26), a ser realizada em Glasgow em novembro, a iniciativa coordenada pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) chama a atenção por dois motivos: o contraste entre o engajamento do setor produtivo e a incúria do governo; e o fato de que os ideais defendidos na carta são alicerçados por ações concretas por parte dos signatários.

“É possível trazer escala à inovação e às boas práticas e planejar estrategicamente para que o Brasil realize rapidamente o seu potencial de crescimento sustentável”, diz a carta, “promovendo uma retomada verde (green recovery) fundada em bases de economia circular, de baixo carbono e de inclusão.” Entre as iniciativas das empresas estão medidas para a redução e compensação das emissões de gases de efeito estufa (GEE), a precificação interna de carbono, a descarbonização das operações e cadeias de valor, investimentos em tecnologias verdes e o estabelecimento de metas de neutralidade climática até 2050.

Das 38 emissões de títulos de dívida de empresas brasileiras no exterior em 2021, 16 (42%) foram ESG (sigla em inglês para boas práticas “ambientais, sociais e de governança”). É mais do que o dobro das sete de 2020. Das 13 emissões previstas até novembro, pelo menos metade comporta compromissos de sustentabilidade.

Segundo um estudo apoiado pelo CEBDS, é possível, já em 2025, reduzir as emissões de GEE em até 43% em relação aos níveis de 2005. Os executivos defendem a adesão a metas baseadas em conceitos científicos e práticas de transparência financeira, com a adoção de mecanismos de financiamento para a promoção da transição climática e o combate enérgico ao desmatamento. Particularmente importante é a implementação integral do RenovaBio, a recém-aprovada política de pagamento por serviços ambientais.

Dos 2,1 bilhões de toneladas de dióxido de carbono emitidas pelo Brasil em 2019, quase metade decorreu do desmatamento, e 98% desse desmatamento é ilegal. Assim, a primeira e mais importante demanda do empresariado, em linha com entidades e governos internacionais, é simplesmente que o governo faça valer as leis brasileiras, em particular o Código Florestal.

Além disso, os executivos pedem um arcabouço político-regulatório que apoie uma trajetória sustentável, em especial a adoção de regras que possibilitem o desenvolvimento de mercados de carbono voluntários e regulados. A possibilidade de compra de créditos de carbono por parte das empresas para financiar atividades que compensem seus déficits em relação às metas climáticas é um mecanismo crucial previsto no Acordo de Paris, mas até o momento permanece não regulamentado. A pauta será central na COP 26.

Os empresários solicitaram encontros com os ministros de Meio Ambiente, Relações Exteriores, Economia e Agricultura. “Na carta, estamos dizendo ao governo: ‘por favor, avance, pois nós vamos dar a retaguarda’”, disse a presidente do CEBDS, Marina Grossi. “Para fora do Brasil, estamos mostrando que o País tem grandes empresas e instituições, com um peso grande do PIB, fazendo a coisa certa.”

Um levantamento do Programa de Investimentos Verdes no Brasil identificou a necessidade de R$ 3,6 trilhões nos próximos 20 anos em obras de infraestrutura sustentáveis nos setores de energia, iluminação pública, saneamento, gestão de resíduos sólidos, telecomunicações, transporte urbano, portos, hidrovias e ferrovias. Estima-se que esses investimentos poderiam gerar 2 milhões de empregos.

Como disse Denise Hills, diretora de sustentabilidade da Natura, “os ganhos para o Brasil não serão só em termos financeiros, mas também socioambientais e reputacionais”. Nada sugere que a insensibilidade do Planalto aos dois últimos ganhos seja remediável. Se ao menos o primeiro servir para que o governo faça a sua parte, já será um avanço.

A pandemia e as prioridades na educação

O Estado de S. Paulo

Encontro mostrou os problemas causados pela pandemia e apontou soluções

Por causa da pandemia, as escolas brasileiras ficaram fechadas 178 dias, só em 2020. Mas, se para os alunos dos colégios privados o ensino funcionou de modo eficiente e suas perspectivas futuras no mercado de trabalho não foram afetadas, na rede pública de ensino básico ocorreu o oposto. Para seus alunos, 2020 foi um ano marcado por perda de aprendizagem, o que poderá agravar as desigualdades regionais e sociais do País. Como evitar esse risco? 

Encontrar uma resposta para essa pergunta foi o objetivo do Summit Educação Brasil 2021, promovido pelo Estado. O evento foi realizado entre os dias 15 e 17 de setembro e contou com a participação não só de gestores escolares, professores e pedagogos, mas, também, de representantes da Unesco e pesquisadores sobre inteligência artificial e uso das novas tecnologias de comunicação para transmissão de conteúdos didáticos. 

Os temas mais discutidos foram os problemas relativos ao atraso escolar dos alunos das escolas públicas e ao aumento do índice de evasão escolar, principalmente no ensino médio. Com base em diferentes pesquisas, os participantes do Summit lembraram que os alunos oriundos de famílias mais vulneráveis foram os que menos tiveram acesso a ferramentas digitais de ensino e os que mais sofreram os efeitos indiretos do fechamento das escolas, como negligência e violência doméstica. 

Por isso, esses estudantes correm o risco de regredir, em matéria de aprendizagem, podendo nos próximos anos concluir a 9.ª série do ensino fundamental ou se formar na 3.ª série do ensino médio sem, contudo, terem aprendido o conteúdo das séries anteriores. Os números são alarmantes. Alunos que cursaram a 2.ª série do ensino médio em 2020, por exemplo, iniciaram a 3.ª série em 2021 com proficiência em português e em matemática de somente 9 a 10 pontos na escala do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). 

Antes da pandemia, a média era de 20 pontos em português e de 15 pontos em matemática – e, mesmo assim, ela estava bem abaixo da média dos alunos dos países-membros da OCDE. Em outras palavras, os alunos da rede pública brasileira de ensino fundamental e de ensino médio terão diploma, mas não conhecimento sistematizado. Desse modo, enfrentarão problemas para ingressar futuramente no mercado formal de trabalho. O máximo que conseguirão são empregos ruins e de baixa remuneração, o que os impedirá de se emanciparem socialmente. E isso não só tornará mais lenta a retomada do crescimento, como também poderá comprometer a produtividade da economia brasileira, tornando o País menos competitivo no mercado global.

O que fazer? Para os participantes do Summit, a resposta está na ampliação da jornada escolar, na revisão dos currículos e na valorização do professorado. Segundo eles, essas medidas são fundamentais para que o País possa contar com uma educação pública com qualidade e equidade, que é a condição necessária, ainda que não suficiente, para a redução das desigualdades aprofundadas durante o período em que as escolas ficaram fechadas. Mas, para que possam ser eficazes, elas precisam de uma urgente melhoria na gestão das redes educacionais, que estão a cargo dos Estados e municípios, e isso requer a articulação de um pacto federativo para definir de modo mais preciso a responsabilidade de cada nível de governo. 

O problema é que essa articulação só pode ser feita pela União e, desde seu início, como reconheceram os participantes do Summit, o governo Bolsonaro em momento algum se dispôs a assumir essa tarefa. Pelo contrário, ele não apenas se omitiu, como também adotou medidas que estão desmontando o que foi erguido com base nas políticas educacionais das últimas três décadas. 

Esse foi o grande mérito do Summit promovido pelo Estado: mostrar o que precisa ser feito para evitar que os problemas causados pela pandemia e a desastrosa gestão do atual governo na área de ensino não acabem negando aos alunos das escolas públicas seu direito de aprendizagem assegurado pela Constituição.

Menos mal

Folha de S. Paulo

Ainda que efêmera, trégua de Bolsonaro mostra força de instituições democráticas

Crises sucessivas marcam a história recente do Brasil desde que, em 2014, os anabolizantes irresponsavelmente administrados para sustentar a atividade econômica se dissolveram e o país começou a mergulhar numa recessão profunda.

A recuperação iniciada dois anos depois mal acompanhou o ritmo de crescimento da população. Essa trajetória claudicante foi interrompida pela debacle mundial provocada pela pandemia.

O retrato do país que emerge desses sete anos de tempestades revela desemprego alto, renda corroída, contas públicas estorvadas, inflação, juros e desigualdades rampantes, energia escassa, moeda depreciada e investidores em fuga.

O conjunto de flagelos simultâneos veio somar-se aos redutores estruturais do progresso nacional.

A insegurança das regras econômicas, a predação do Orçamento, a baixa eficiência dos serviços públicos e a escolarização precária da maioria —agravada pela longa ausência das aulas presenciais— estão onde sempre estiveram.

Tudo de que o Brasil prescindia nesse período de acúmulo de problemas era um governo como o de Jair Bolsonaro, incapaz na administração da máquina federal e também no manejo da política.

Diagnósticos errados —a começar dos exarados pelo presidente da República—, assessores de qualidade deplorável e a condução ginasiana das relações com outros Poderes e organizações estatais realizaram a proeza de piorar um quadro em si mesmo grave e de difícil encaminhamento.

Aos mil dias do experimento bolsonarista, e a 15 meses do fim do mandato, equivaleria a um exercício de fé, descolado da realidade, predicar a melhora do aspecto gerencial do governo. Essa poderá tornar-se uma expectativa razoável, a depender das urnas, a partir de janeiro de 2023.

Já o presidente da República poderá desde logo contribuir para a distensão do ambiente institucional, desde que consiga reprimir os seus instintos mais primitivos, exibidos em toda sua rudeza nos comícios do Dia da Independência.

Prova-o o intervalo de poucas semanas que se iniciou quando Bolsonaro colidiu com o muro da deposição constitucional e decidiu, com o inusitado auxílio do ex-presidente Michel Temer (MDB), refrear a cavalgada golpista.

Ao comando do chefe, como costuma acontecer em solidariedades de tipo tribal, os arruaceiros do bolsonarismo puseram-se em retirada. Nesse contexto menos belicoso, o ministro Alexandre de Moraes revogou ordem de prisão preventiva de um militante digital das causas do presidente.

Do Tribunal Superior Eleitoral vieram sinais de que, dentro da institucionalidade, há caminhos para lançar ainda mais luz sobre o exemplar processo de votação brasileiro. A corte adicionou um integrante das Forças Armadas à comissão multifacetada de transparência das eleições.

Quando Jair Bolsonaro deixa de ameaçar e atacar diariamente o Supremo Tribunal Federal, os motivos para o Senado continuar postergando a sabatina do indicado do Planalto à corte, que já não eram indiscutíveis, se enfraquecem.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), captou corretamente o desanuviar da atmosfera quando se juntou às vozes que estimulam Davi Alcolumbre (DEM-AP) a marcar para logo a inquirição de André Mendonça na Comissão de Constituição e Justiça.

Há bons argumentos para os senadores recusarem a condução do ex-ministro da Justiça à vaga aberta pela aposentadoria de Marco Aurélio Mello, mas não mais para deixarem de cumprir seu dever de examinar o indicado presidencial.

Ninguém que acompanhou os últimos mil dias de noticiário atribuirá alta probabilidade à hipótese de que Bolsonaro consiga sustentar por muito mais tempo o comportamento daquele que, se não ajuda, ao menos atrapalha menos.

Se ele enxergou mesmo o fato óbvio de que sua única chance de permanecer no cargo em 2023 é vencer as eleições, contribuir para a normalização do cenário institucional seria o meio natural de tentar equacionar os desafios mastodônticos para recuperar popularidade e competitividade.

Apenas com tranquilidade na governança o país poderá atender ao anseio de ampliar a proteção aos mais pobres sem apelar a invencionices fiscais —que seriam, no quadro vigente, de pronto traduzidas em mais inflação e descrédito.

Em qualquer hipótese, resta indiscutível que sai vencedora a preferência da população, de seus representantes e das instituições pela normalidade democrática, a ser novamente consagrada nos pleitos marcados para o próximo ano.

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