sexta-feira, 22 de outubro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Planalto anuncia mais gastos sem fonte de recursos

Valor Econômico

O enterro do teto de gastos provocou nova derrocada das ações e disparada do dólar

O teto de gastos, única âncora fiscal vigente desde 2016, está desabando. Depois de decidir elevar temporariamente o Auxílio Brasil para R$ 400 até depois que as urnas estiverem fechadas, em 2022, o presidente Jair Bolsonaro tirou do bolso do paletó ontem a ideia de dar a 750 mil caminhoneiros a mesma quantia, pelo mesmo prazo. Antes, o ferrenho defensor do teto de gastos, o ministro Paulo Guedes, agora auxiliar do presidente na campanha eleitoral, disse que pedirá um “waiver” para levar R$ 30 bilhões do aumento do programa fora da regra fiscal, ou então, a antecipação da revisão do mecanismo, estabelecido em 2026. Simples assim.

O ministro não vê motivos para que a exceção não seja aceita, mesmo por motivos tão escandalosos. O governo Bolsonaro começa a entrar em seu “momento Dilma”, de perda acentuada da credibilidade e da capacidade de governar, que nunca teve plenamente. O secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e Jeferson Bittencourt, titular do Tesouro, estão de saída do governo, em mais um sinal de que as boas regras do uso do dinheiro público e da alocação orçamentária correm sério risco.

Guedes, que sempre pregou o desmonte do Estado, coleciona novo fracasso, após as promessas de privatizações (de R$ 1 trilhão), de desmobilização de patrimônio público (também de R$ 1 trilhão), incapacidade de arquitetar uma reforma tributária moderna, sem CPMF, e calote dos precatórios. São as “criaturas do pântano político”, que o ministro antes criticava, que estão no comando da ofensiva para romper o teto de gastos, o que coincide com as necessidades de um presidente que tentará todas cartadas possíveis para se reeleger e que precisa desesperadamente recuperar sua popularidade.

O caminho principal pelo qual o enterro do teto de gastos passará deve ser a PEC dos precatórios. O relator, Hugo Motta (Republicanos-PB) tem o roteiro para as mudanças, com script do Centrão. Ontem queria votar na comissão especial mudanças que estão em linha com os desejos do governo. Arrumou espaço para gastos de R$ 83 bilhões no orçamento do ano que vem, o suficiente, segundo ele, para pagar os R$ 400 a um elenco mais amplo que o do Bolsa Família, e colocar R$ 15 bilhões também fora do teto no ano que vem. Detalhe: este montante também servirá para “ações emergenciais temporárias de caráter socioeconômico”, definição na qual pode se encaixar o socorro aos caminhoneiros anunciado pelo presidente.

Não é apenas isso. O relator da PEC quer mudar as bases do teto de gastos, eliminando a necessidade de lei complementar para sua revisão, em 2026. Dessa forma, a antecipa, como sugeriu Guedes para acomodar o aumento eleitoreiro do Auxílio. Motta estipulou que o indexador da correção dos gastos será feito pelo IPCA durante o ano, em vez da correção pelo índice de julho do ano anterior até junho, como é hoje. O espaço está aberto para que as regras sejam generosamente modificadas.

Paulo Guedes insinua que sua linha de resistência agora é fazer com que o furo no teto não ultrapasse R$ 30 bilhões (não contabilizou o que passa pela PEC dos precatórios, que patrocinou), mas perdeu o controle desse jogo, depois que Bolsonaro deixou o Centrão dominá-lo. A articulação política do Planalto, sempre incompetente, foi terceirizada, com a ascensão de Ciro Nogueira (PP) na Casa Civil. Os políticos do Centrão, porém, não têm visão de longo prazo ou projetos para o país - Bolsonaro fez parte deste grupo amorfo por 28 anos na Câmara. São mestres em formar coalizões parasitárias para sustentar governos e em manobras orçamentárias. Sua expertise em eleger presidentes está para ser testada. Se algo der errado até a eleição, os partidos do Centrão mudarão de lado, como fizeram no impeachment de Dilma Rousseff.

O enterro do teto de gastos provocou nova derrocada das ações e disparada do dólar, que caminha com rapidez rumo aos R$ 6 (ontem alcançou R$ 5,66). De seu pico em 7 de junho, com 130.776 pontos, o Ibovespa esboça recuo de 20% e está mais perto dos 104 mil pontos, o que definiria um mercado baixista. A melhora instável da situação fiscal, fruto parcial da alta da inflação, dará lugar a seu contrário. A alta dos juros eleva a dívida pública e é possível que a dívida bruta, de 82% do PIB, possa ter atingido seu piso. Sua trajetória segura agora é para cima, elevando as incertezas e a instabilidade.

Censura judicial é absurda e inconstitucional

O Globo

É absurda e inconstitucional a decisão de um juiz do Amazonas que obriga O GLOBO a apagar textos que citem o nome ou tragam fotos relacionadas à rede de saúde privada que acolheu e patrocinou um ensaio clínico com uma droga festejada pelo presidente Jair Bolsonaro e seus filhos como promessa de cura da Covid-19, a proxalutamida, cujos resultados foram considerados alarmantes pelo meio científico. Não é a primeira vez que a Justiça amazonense censura a cobertura do tema, de evidente interesse público.

Trata-se de mais um caso, entre tantos outros, da inaceitável censura judicial que tem se tornado mais frequente e mais preocupante no Brasil. Episódios recentes atingiram a rede gaúcha RBS TV e a revista Piauí. O GLOBO também já havia sido alvo de outra decisão determinando a retirada do ar de uma reportagem sobre a VTC Log, empresa indiciada pela CPI da Covid.

Desta vez, no caso da rede hospitalar amazonense, a censura não se limita às investigações já realizadas sobre fatos suspeitos em Manaus e Porto Alegre. Na decisão, o juiz determina censura prévia, ao proibir futuras reportagens que citem o nome da empresa com sede no Amazonas e até críticas à decisão de censura que citem os envolvidos. É simplesmente inaceitável que ele ressuscite essa excrescência, extinta no país depois do fim da ditadura militar e banida pela Constituição de 1988.

É esperado, por isso mesmo, que a decisão caia em instâncias superiores, como tem sido praxe nesses casos. O GLOBO recorrerá para que o público mantenha o direito a ser informado a respeito de um dos casos mais escabrosos investigados pela CPI da Covid.

Há vários indícios de irregularidades. A proxalutamida, substância que vinha sendo testada contra o câncer de próstata sem nunca ter sido vendida em escala comercial, foi usada em experimento contra a Covid-19 por um grupo de pesquisadores chefiado pelo endocrinologista Flávio Cadegiani. Sua equipe divulgou dados suspeitos, que levantaram dúvidas sobre a conduta ética dos pesquisadores.

Instituições nacionais e internacionais investigam o caso. Os Ministérios Públicos do Amazonas e do Rio Grande do Sul abriram inquéritos criminais. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) denunciou os pesquisadores à Procuradoria-Geral da República.

A divisão de bioética da Unesco afirmou que, se confirmadas, as acusações configurariam a maior violação ética de estudos científicos da história da América Latina. O relatório da CPI da Covid, divulgado na quarta-feira, pediu o indiciamento de Cadegiani por crime contra a humanidade.

É dever dos veículos de imprensa noticiar os fatos dando nome aos envolvidos. Acima de tudo, O GLOBO acredita no papel da imprensa profissional na democracia. Os familiares dos pacientes mortos durante a pesquisa têm o direito de saber se os responsáveis e os patrocinadores do estudo cometeram irregularidades ou crimes. Toda a população brasileira tem o direito de saber a verdade sobre a proxalutamida. A censura judicial precisa ser repudiada com veemência e derrubada com urgência.

É descabido o veto ao passaporte sanitário em universidades federais

O Globo

A ânsia do governo em se alinhar aos desígnios antivacina do presidente Jair Bolsonaro produz decisões ridículas, como a do Ministério da Educação e da Advocacia-Geral da União (AGU) que proíbe universidades federais de exigir comprovante de vacinação para a retomada das aulas presenciais. Após consulta feita pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, MEC e AGU emitiram nota técnica afirmando que as instituições federais não podem impedir a presença de servidores e alunos que se recusaram a tomar vacina contra a Covid-19. A exigência já é realidade em universidades estaduais como USP e Unicamp, em São Paulo.

O parecer da Consultoria Jurídica do MEC, assinado pela advogada da União Camila Medrado, embora reconheça a prerrogativa das universidades federais em determinar suas próprias regras de combate à pandemia, afirma que a adoção do passaporte contraria decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, na interpretação dela, determina que as medidas de convencimento devem respeitar os direitos fundamentais. Argumenta ainda, invocando a Corte, que vacinação compulsória não significa vacinação forçada.

O parecer não tem o menor cabimento. É sabido que o STF tem tomado decisões consistentes a favor do passaporte sanitário. No mês passado, o presidente do tribunal, Luiz Fux, restabeleceu a exigência de comprovação de vacinação imposta pela prefeitura do Rio para ambientes fechados. A obrigatoriedade havia sido suspensa pelo desembargador Paulo Rangel, do Tribunal de Justiça do Rio, para quem a iniciativa feria a liberdade de locomoção. Ao cassar o habeas corpus, Fux disse que “a decisão atacada representa potencial risco de violação à ordem público-administrativa”. Depois Fux avalizou também os passaportes adotados em Maricá e Macaé, no estado do Rio.

A determinação torta do MEC e da AGU tem efeito deletério no planejamento das universidades que se preparam para retomar atividades com presença de alunos e professores. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que autorizou a volta de aulas presenciais em novembro, já anunciara a intenção de exigir passaporte sanitário para servidores e alunos, mas teve de recuar da decisão.

Lamenta-se que a proibição esteja contaminada pelo negacionismo de Bolsonaro, conhecido por criticar a vacinação obrigatória e o passaporte sanitário, e não por respeitar critérios técnicos ou científicos. Universidades devem ter autonomia para adotar os protocolos sanitários adequados à situação da epidemia em suas regiões. Os indicadores variam de estado para estado, de cidade para cidade. O passaporte sanitário é uma medida de controle eficaz, adotada no mundo inteiro a partir do avanço da vacinação. Não faz sentido argumentar que viola a liberdade do indivíduo ao restringir serviços aos não vacinados. Precisa ficar claro é que ninguém tem o direito individual de aumentar o risco de contaminar os outros em plena pandemia, seja na universidade ou em qualquer outro lugar.

Lula e Bolsonaro: tão longe, tão perto

O Estado de S. Paulo

Voluntarismo de Bolsonaro e Guedes – segue-se a lei fiscal só quando interessa – é o mesmo de Lula, Dilma e Mantega. Com essa turma, a crise econômica nunca é acidental

Os apoiadores de Luiz Inácio Lula da Silva não gostam que o seu líder seja comparado ao presidente Jair Bolsonaro. Lula seria inteiramente diferente de Bolsonaro, o que invalidaria eventual cotejo entre as respectivas propostas e práticas políticas. Esse discurso pode até soar atraente para a militância petista, tão afeita a atribuir imaculada superioridade moral e cívica ao ex-presidente Lula. Mas os fatos, no entanto, insistem em aproximar o ex-sindicalista do excapitão – os fatos e, deve-se reconhecer, o próprio Lula.

Não é apenas o fato de que o exercício da Presidência da República tenha trazido, tanto a Lula como a Bolsonaro, sérias questões penais. Os dois teimam em ser igualmente desleixados no cuidado das contas públicas quando o assunto tem impacto eleitoral. Quando lhes interessa, esquecem-se de que existe legislação protegendo a responsabilidade fiscal e, principalmente, fazem vista grossa para os efeitos perniciosos do desequilíbrio das contas públicas sobre o desenvolvimento social e econômico do País.

No momento em que o País tem de lidar com a irresponsabilidade populista de Jair Bolsonaro, era de esperar que a oposição pudesse funcionar como contraponto, impedindo o governo de transformar um programa social de transferência de renda em ferramenta eleitoral. No entanto, apesar de os petistas negarem veementemente, Lula, neste caso, está longe de ser oposição a Bolsonaro. O líder petista é igualmente irresponsável.

Um dia depois de o governo federal ter anunciado que o novo Bolsa Família – o Auxílio Brasil – terá um valor médio de R$ 400, sem ter indicado como financiará, dentro das regras fiscais, o aumento, Lula apoiou a tática bolsonarista, sinalizando que faria o mesmo, e até mais. “Estou vendo agora Bolsonaro dizer que vai dar um auxílio emergencial de R$ 400 que vai durar até o final do ano que vem. E tem muita gente dizendo ‘não, a gente não pode aceitar porque é um auxílio emergencial eleitoral’. Não, eu não penso assim”, disse Lula em entrevista à rádio A Tarde, de Salvador.

Para Lula, não apenas deve haver aumento, como o auxílio teria de chegar a um valor médio de R$ 600. O ex-presidente petista não explicou como o Estado financiaria esse valor, tampouco se ele está em conformidade com a legislação. Tal como Bolsonaro, a preocupação de Lula é anunciar aumento do valor do benefício do programa social porque, segundo suas palavras, “o povo merece”.

De fato, o povo sofrido merece muitas coisas, a começar por um governo que não o iluda com milagrosas transferências de renda custeadas por irresponsabilidade fiscal, cujo efeito é a degradação da capacidade de investimento do Estado, uma inflação crescente e juros nas alturas – situação que prejudica, sobretudo, os pobres, que passam a depender cronicamente do populismo descarado de políticos que nunca descem do palanque. É esse círculo vicioso que alimenta o bolsonarismo e o lulopetismo.

Não são os críticos do PT, portanto, que igualam Lula a Bolsonaro. É o próprio Lula que o faz, de maneira acintosa, sem nenhum pudor. Trata-se da banalização do uso da máquina pública para fins eleitorais, como se fosse coisa normal e, pior, como se isso beneficiasse a população.

Já o governo de Jair Bolsonaro faz um esforço adicional, verdadeiramente hercúleo, para emular o pior do lulopetismo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, está cada vez mais parecido com Guido Mantega, o mago da contabilidade criativa nos governos petistas.

Ao explicar a manobra fiscal que financiaria o aumento do benefício social, Paulo Guedes disse: “Seria uma antecipação da revisão do teto de gastos, que está (prevista) para 2026, ou mantém, mas por outro lado pede um waiver, uma licença para gastar com essa camada temporária de proteção”.

É assim que os populistas enfrentam suas responsabilidades. O voluntarismo de Bolsonaro e Guedes – seguese a lei fiscal apenas quando interessa – é o mesmo de Lula, Dilma e Mantega. Com essa turma, a crise econômica nunca é acidental.

A previsível negação e o esperado escárnio

O Estado de S. Paulo

Reação do clã Bolsonaro ao relatório da CPI – uma soma da negação e do escárnio que marcaram o comportamento da família ao longo da crise sanitária – já era esperada

Areação do clã Bolsonaro à leitura do relatório da CPI da Covid – que aponta o presidente Jair Bolsonaro como o principal responsável pela dimensão trágica que a pandemia adquiriu no Brasil – foi um misto de negação e escárnio. Embora este fosse o comportamento esperado de uma família que nesses longos meses de infortúnio negou a gravidade da crise sanitária e fez troça das dores de seus concidadãos, não deixa de indignar os brasileiros decentes – em especial os familiares e amigos dos mais de 604 mil mortos – a forma como o presidente da República e seus filhos mais velhos reagiram às graves imputações contidas no documento.

Em Russas (CE), durante cerimônia de inauguração de uma etapa da obra de transposição do Rio São Francisco, Bolsonaro disse não ter culpa de “absolutamente nada” do que lhe foi imputado pelo relator da comissão de inquérito, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). No evento, de evidente viés eleitoral, Bolsonaro afirmou que a CPI se prestou apenas a “tomar tempo do nosso ministro da Saúde, de servidores, de pessoas humildes e de empresários”. Ao final de um minucioso trabalho, a CPI, na visão do presidente da República, não teria produzido “nada além de ódio e rancor entre alguns de nós”.

A cerca de 2 mil quilômetros do palanque em que Bolsonaro minimizou as conclusões da CPI e, mais uma vez, eximiu-se de suas responsabilidades como chefe de Estado e de governo, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) tripudiava não só de seus colegas, mas de toda a sociedade, ao ser questionado, na entrada da sala da CPI no Senado, sobre como o presidente reagiria às conclusões da comissão de inquérito. “Você sabe aquela gargalhada dele?”, perguntou o senador, imitando a risada de Bolsonaro. Para o buliçoso senador, o relatório da CPI “é uma piada de muito mau gosto”. No Twitter, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) publicou uma foto em que aparece gargalhando, como a confirmar a declaração do irmão mais velho. Ambos, como o pai, são alvos de pedidos de indiciamento pelo relator Renan Calheiros.

Durante transmissão pelas redes sociais na noite do dia 20 passado, o senador Flávio Bolsonaro voltou a chamar o relator da CPI da Covid de “vagabundo” e classificou o relatório de Renan Calheiros como “o maior atestado de idoneidade do governo Jair Bolsonaro”. É o jogo jogado das lides políticas. Mas, no mundo real, onde atos têm consequências, não é bem assim. O clã Bolsonaro tem razões de sobra para conter o riso caso as conclusões da CPI sejam levadas a sério, como se espera, pelo Congresso e pela Procuradoria-Geral da República.

Sobre o presidente Jair Bolsonaro não recaem suspeitas de ter comprado um carro com dinheiro de corrupção, como aconteceu com Fernando Collor, mas sim de ter cometido crimes contra a humanidade, de epidemia com resultado em morte, de prevaricação, de incitação ao crime e de charlatanismo, entre outros. Há implicações muito sérias. Caso seja processado, julgado e condenado por esses crimes, Bolsonaro pode ser sentenciado a penas que somam até 38 anos e 9 meses de prisão, considerando as penas máximas previstas para aqueles crimes no Código Penal.

Coincidentemente, no mesmo dia em que o relatório da CPI da Covid apresentava ao País os detalhes das urdiduras do Palácio do Planalto para fazer a pandemia parecer menos grave do que de fato é, o consórcio de veículos de imprensa – formado pelo Estado, O Globo, g1, Extra, Folha de S.Paulo e UOL – completou 500 dias ininterruptos de trabalho. A união de representantes do jornalismo livre e independente foi o farol que orientou a população em meio às trevas da desinformação, não raras vezes patrocinada pelo próprio governo federal. Basta lembrar que o consórcio foi criado justamente para suprir a falta de informações confiáveis no Ministério da Saúde.

Em outra feliz coincidência, na mesma data o País atingiu a auspiciosa marca de 50% da população totalmente imunizada contra o coronavírus. Não poderia ser mais simbólico. Informação confiável e vacinas foram os antídotos para a sociedade lidar com o negacionismo, a irresponsabilidade e a inépcia de Bolsonaro na condução do País em meio à pior tragédia de sua história.

Da responsabilização

Folha de S. Paulo

Relatório final da CPI abre etapa em que presidente responderá por seus atos desastrosos na pandemia

As comissões parlamentares de inquérito, como vieram se desenvolvendo nas últimas décadas, tiveram seus poderes mais salientes, como o de requisitar quebra de sigilos e indagar testemunhas, submetidos a mediações do Judiciário, o que contribuiu para moderar fontes potenciais de arbítrio.

Tornaram-se instrumentos essenciais da ação política, em especial de minorias, cuja disposição crítica em relação ao governismo interessa à democracia estimular. Daí não ser razoável esperar das comissões que "deem em alguma coisa", se isso significar satisfação imediata das expectativas de punição.

Essa aparente fraqueza das CPIs compõe, no entanto, a sua maior fortaleza. Um trabalho bem feito, como foi no geral o da comissão do Senado que investigou a resposta à pandemia, torna-se muito difícil de ser descartado. Nasceu um rebento legítimo das melhores práticas institucionais brasileiras.

Ao apontar indícios de crimes contra a humanidade cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro, o relatório do senador Renan Calheiros (MDB-AL) assesta parte desse potencial contra órgãos, como a Procuradoria-Geral da República, que têm desempenhado mal a tarefa de defender a Constituição.

Ou bem Augusto Aras deixa a acomodação de lado e passa a investigar de verdade o concurso do chefe do Executivo para o descalabro sanitário, ou o Tribunal Penal Internacional, sediado na Holanda, terá razões para abrir um procedimento sob a justificativa, humilhante para o Ministério Público brasileiro, de que aqui nada se fez.

Em boa hora, Calheiros acolheu o argumento da maioria da CPI e retirou o pedido de indiciamento de Bolsonaro por genocídio de indígenas. Embora seja moeda corrente nas críticas feitas ao presidente, o termo é de difícil enquadramento jurídico e traria percalços para as persecuções penais à frente.

As digitais de Jair Bolonaro na manipulação de documento fraudado atestando uma inexistente supernotificação de mortes por Covid-19 renderam-lhe um pedido de indiciamento por falsificação. A intensa propaganda de drogas ineficazes contra a virose, um outro por charlatanismo. As despesas para a aquisição desses medicamentos, um terceiro por emprego irregular de verba pública.

As ações de Jair Bolsonaro que incentivaram a exposição popular ao patógeno e as que confrontaram normas de cautela sanitária também são objeto de pedidos de indiciamento. O relatório, além disso, recomenda investigações por crime de responsabilidade, puníveis com o impeachment.

Está acabando o tempo da CPI, mas apenas começa o da responsabilização do pior presidente do Brasil desde a redemocratização.

Segunda chance

Folha de S. Paulo

Derrota de emenda deveria servir para aprofundar debate sobre controle externo do Ministério Público

A derrota sofrida nesta quarta-feira (20) pela emenda constitucional que altera a composição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) não representa o fim da controvérsia sobre o assunto.

Submetido ao plenário da Câmara dos Deputados, o texto do relator da proposta, Paulo Magalhães (PSD-BA), foi rejeitado por não alcançar o mínimo de 308 votos exigido para mudar a Constituição. Houve 297 votos a favor e 182 contrários.

O resultado representou um revés para o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que se empenhou pelo projeto e imprimiu à sua tramitação pressa desnecessária.

Os deputados trabalham agora para retomar a discussão levando ao plenário a proposta original, do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), provavelmente na próxima semana.

Cria-se assim uma oportunidade para aprofundar o debate sobre a emenda, até aqui obstruído pela afoiteza com que Lira encaminhou a votação e pelo corporativismo dos integrantes do Ministério Público, que veem no projeto apenas ameaças à sua autonomia.

Órgão de controle externo encarregado da fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do Ministério Público, o CNMP é composto por representantes da instituição e outros indicados pelo Congresso, por tribunais superiores e pela Ordem dos Advogados do Brasil.

A emenda constitucional aumenta o número de cadeiras do conselho de 14 para 15 e o de membros escolhidos pelo Congresso de 2 para 5, ampliando a influência do Legislativo nas decisões do órgão.

Dada a missão a ser desempenhada, a mudança tornaria a composição do CNMP mais equilibrada e poderia contribuir para que exercesse suas funções com maior eficiência.

Desde o início de suas atividades, em 2005, o conselho analisou 6.150 reclamações disciplinares contra procuradores e promotores, mas só 307 resultaram em punições —menos de 5%, índice baixíssimo se comparado ao de órgãos similares.

Há decerto espaço para aprimoramento dos mecanismos de fiscalização, mas cumpre ao Congresso buscar o equilíbrio necessário para proteger a autonomia do Ministério Público e impedir intromissões indevidas em seu trabalho.

Descartado o texto de Paulo Magalhães, caiu também o dispositivo duvidoso que permitia ao conselho reverter decisões de promotores que violassem deveres funcionais ou usassem o cargo politicamente. Manter o bode fora da sala ajudaria a fazer o debate avançar.

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