sexta-feira, 8 de outubro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Retrocesso no combate à corrupção

O Globo

A reação ao “lavajatismo” — termo pejorativo criado para qualificar o cerco aos corruptos deflagrado pela Operação Lava-Jato — segue a toda em Brasília. Não apenas no Supremo, mas também no Congresso. O Legislativo não tem perdido oportunidades para tentar cercear o trabalho de procuradores e da Justiça. Primeiro, incluiu um sem-número de absurdos na nova Lei de Improbidade Administrativa (LIA). Em vez de reformar os pontos deficientes da lei, os parlamentares aproveitaram para criar regras que dificultam o combate à corrupção. Além disso, a Câmara tentou acelerar mudanças que na prática sujeitam ao Parlamento o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), encarregado de fiscalizar e punir os procuradores. Tudo para dificultar investigações.

É verdade que a LIA, de 1992, precisava de mudança. Com a adoção de legislação criminal mais dura no Brasil, ela deixou de ser a principal arma de combate aos corruptos. Preservou, porém, um efeito colateral perverso: tornou-se um desincentivo a que bons gestores aceitassem ocupar cargos públicos, por medo de processos. É, por isso, positiva a principal mudança na lei: a exigência de comprovação de dolo para a punir os gestores. Com isso, deixará de haver condenação por simples erros administrativos, permitindo que profissionais capazes se sintam menos ameaçados ao vir trabalhar no governo.

Várias mudanças, contudo, não passam de brechas abertas à burla. É o caso das regras que exigem comprovação de dolo para a condenação por nepotismo de ocupantes de cargos eletivos. Não têm cabimento. A mera nomeação de um parente deveria estar sujeita a sanção. Outro absurdo é o artigo que permite condenar o Ministério Público (MP) a pagar honorários dos advogados dos réus quando as ações forem improcedentes e for comprovada litigância de má-fé. Como esse é um conceito elástico, a mudança criará entre os procuradores o receio de correr riscos abrindo investigações e, sob o pretexto de ressarcir os honestos, protegerá os corruptos.

A maior deficiência da nova LIA está nas punições. Ela agrava a pena máxima, mas não estabelece pena mínima para infrações, perdendo o poder de dissuasão. Antecipa o prazo de prescrição dos crimes de improbidade, levando ao arquivamento ou extinção de processos já abertos. E só pune com a perda de cargo se o condenado ainda estiver numa posição da mesma natureza, beneficiando o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), condenado em dois processos por improbidade quando deputado estadual. Não sem razão o projeto foi apelidado “lei da impunidade”. Na forma como foi aprovado, tornou-se inaceitável. Bolsonaro deveria no mínimo vetar os trechos mais absurdos.

Noutra iniciativa, que viola a autonomia do MP, chegou ao plenário da Câmara, sem ter sido aprovada em comissão especial, uma proposta de emenda constitucional para aumentar em 50% as indicações dos parlamentares aos assentos no CNMP. Estaria aberta a porteira ao apadrinhamento e à intromissão de interesses políticos. O maior despropósito era permitir que o corregedor nacional fosse indicado político. O conteúdo e a tramitação acelerada dessa PEC são inadmissíveis num país que depende do combate à corrupção para resgatar sua credibilidade e competitividade no mundo. Felizmente ontem ela foi retirada da pauta. Mas não cessamos de passar vergonha.

Casos de racismo exigem punição exemplar a criminosos

O Globo


Álvaro Hauschild, aluno do curso de doutorado em filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), merece condenação exemplar caso as investigações em curso sobre racismo confirmem as suspeitas de crime. No Brasil de 2021 não pode haver complacência com quem acredita em ideias racistas e tem a desfaçatez de expressá-las abertamente. No dia 30 de setembro, Jota Júnior, estudante negro do curso de políticas públicas da mesma universidade, registrou ocorrência contra Hauschild numa delegacia da Polícia Civil. Júnior contou que sua namorada, a psicóloga Amanda Klimick, de olhos e cabelos claros, recebeu mensagens de Hauschild no Instagram. À primeira vista, parecia ser um flerte. Não era.

Hauschild logo passou a fazer comentários ofensivos contra Júnior. No começo, Júnior não deu muita atenção. Porém, ao perceber que Hauschild usava termos comuns entre os que defendem ideias nazistas, passou a usar a conta da namorada para falar mais com ele. O que veio à tona deixa poucas dúvidas sobre a gravidade do caso.

Numa série de declarações abjetas, Hauschild escreveu que o negro “exala um cheiro típico” e perguntou a Amanda: “E tu já pensou como serão teus filhos? Quer que eles sejam diferentes de ti?”. Noutro trecho apresentou uma tese racista sobre a superioridade intelectual dos europeus em comparação aos africanos, sinal claro de que falava sobre todas as pessoas de pele escura, não apenas de Júnior.

É um dos motivos por que Júnior, com toda a razão, pede a condenação por racismo — fato raro no Brasil. A Lei nº 7.716, de 1989, prevê que racismo é um crime contra a coletividade, e não contra um indivíduo, é inafiançável e imprescritível. A pena vai de um a três anos de prisão, além de multa. A maior parte dos casos acaba classificada apenas como injúria racial, uma infração menor expressa no Código Penal.

O Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2021, feito por pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostra que o Rio Grande do Sul é o estado com a maior taxa de registro de casos de racismo para cada grupo de 100 mil habitantes, mas esses números devem ser vistos com certa ressalva, porque a subnotificação é grande em todo o país. “Não é fácil registrar um caso de racismo no Brasil. Muitas vezes, os policiais dizem que o acusado ‘falou uma besteira sem pensar’ e acabam tipificando o ocorrido de outro modo, como calúnia”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor- presidente do FBSP.

Em depoimento na Delegacia de Combate à Intolerância da Polícia Civil gaúcha na terça-feira 6, Hauschild confirmou a autoria das mensagens divulgadas. A editora que publicou um livro seu de ficção já o tirou do catálogo. A universidade considera sua expulsão. Se não houver novidades nesse caso, a punição deveria ser outra: a cadeia.

Picadinho tributário

O Estado de S. Paulo

Que o Brasil precisa modernizar seu sistema tributário está fora de dúvida. Difícil é enxergar uma verdadeira reforma nos projetos no Congresso

Que o Brasil precisa modernizar seu sistema tributário está fora de dúvida. O País necessita de tributos mais funcionais, menos nocivos à produção e à exportação, mais simples, mais estáveis, mais propícios à integração internacional e socialmente mais justos. A tributação deve ser suficiente para sustentar um setor público eficiente e, em primeiro lugar, desenhado com base em objetivos permanentes e compatíveis com instituições democráticas. É fácil defender todos esses pontos. Difícil, mesmo, é enxergar uma verdadeira reforma tributária nos projetos em tramitação no Congresso. Em quase três anos de mandato, o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros foram incapazes de cuidar do assunto com seriedade e competência.

Falou-se, em Brasília, de uma reforma fatiada, com tramitação supostamente mais fácil. Mas é enganoso falar de fatiamento, quando inexiste um projeto amplo, concebido para as necessidades e objetivos de toda a administração pública, nos três níveis de governo. As propostas em exame no Congresso têm origens e alcances diferentes. Uma cuida do Imposto de Renda (IR). O presidente Jair Bolsonaro depende de sua aprovação para reforçar sua campanha eleitoral. Daí deve sair o dinheiro para a ampliação do programa Bolsa Família. A outra, referente aos tributos sobre o consumo, deve criar dois tipos de impostos sobre valor agregado (IVA), um federal, outro subnacional.

No nível federal, o projeto propõe a unificação do PIS e da Cofins numa Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) deve ser substituído por um Imposto Seletivo (IS), incidente sobre cigarros, bebidas alcoólicas e, talvez, outros produtos considerados potencialmente nocivos. No nível subnacional, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), estadual, deve fundir-se com o Imposto sobre Serviços (ISS), municipal, para formar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

O relator do projeto sobre o IVA dual, senador Roberto Rocha (PSDB-BA), entregou seu parecer sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) relativa ao assunto. O próximo passo deve ser o exame do parecer pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e o ritmo da tramitação é incerto.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), tem evitado comprometer-se com prazos, mas prometeu encaminhar o projeto ao plenário depois da passagem pela CCJ. Ele também tem sido cauteloso quanto à tramitação da proposta sobre o IR. “Não podemos”, disse ele, “colocar no colo do Congresso Nacional essa responsabilidade de aprovar um projeto estruturante como condição para algum programa social, que é o que tem mais apelo social, mais apelo eleitoral, inclusive.”

Esse comentário, em evento empresarial, aponta diretamente para o interesse eleitoral do presidente da República, empenhado em obter a aprovação do projeto neste ano.

As mudanças no IR foram pouco discutidas publicamente, mas governadores e prefeitos opuseram-se à primeira versão da proposta, alegando o risco de perda de receita (esse é um dos tributos federais divididos com Estados e municípios). Alterações negociadas pelo relator pacificaram esse e outros pontos.

No caso da unificação do ICMS e do ISS, os governos municipais dividiram-se. Representando a maioria das cidades, quase todas pequenas, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apoiou a proposta. A Federação Nacional de Prefeitos (FNP), em nome dos municípios com mais de 80 mil habitantes, criticou o projeto, mencionando a falta de cálculos claros sobre seus efeitos e o risco de perdas para setores com grande geração de empregos e para os cofres municipais.

Enquanto isso, o presidente da Câmara, Arthur Lira, fala em alteração da cobrança do ICMS para baratear combustíveis. É uma bobagem apontar esse tributo como causa dos aumentos de preços da gasolina e do diesel, mas o deputado, nesse caso, alinha-se ao presidente Jair Bolsonaro na ação demagógica. Também isso diz muito sobre o grau de seriedade no tratamento das questões tributárias.

Varejo em tempos de aperto

O Estado de S. Paulo

Dinheiro curto limita o aumento do consumo, principal motor da atividade econômica

Principal motor da economia, o consumo continua oscilante, por causa da inflação alta, do desemprego e da insegurança das famílias. Em agosto o comércio varejista vendeu 3,1% menos que no mês anterior. O volume de vendas diminuiu em quatro dos oito primeiros meses do ano. As três quedas anteriores ocorreram em janeiro, março e junho. O fraco desempenho da indústria reflete principalmente as dificuldades do consumidor brasileiro, seu comprador mais importante. Outros fatores, como a escassez de matérias-primas e componentes, também têm afetado a atividade industrial, mas a explicação básica está mesmo no aperto do orçamento familiar.

As vendas caíram, em agosto, na maior parte das atividades comerciais. O resultado foi negativo em seis dos oito ramos do varejo do dia a dia. A erosão da renda, provocada basicamente pela piora das condições de trabalho e agravada pela inflação, afetou o conjunto dos negócios, incluído o segmento super e hipermercados, com recuo mensal de 1%. O efeito da alta de preços é especialmente visível no varejo de combustíveis e lubrificantes, com variação negativa de 2,4%.

A maior perda, uma redução de 16%, ocorreu no ramo classificado, um tanto misteriosamente, como “outros artigos de uso pessoal e doméstico”. A explicação é simples. Esse conjunto, onde se incluem as lojas de departamentos, conseguiu reagir depois do grande tombo do ano passado, ampliou seus negócios por meio da internet. Suas vendas tiveram crescimento mensal de 19,1% em julho e superaram por 36,8% o volume de um ano antes. Em agosto houve uma acomodação e o resultado se tornou 1,7% inferior ao obtido nesse mês em 2020.

Com o acréscimo das lojas de veículos, motos e componentes e de material de construção, chega-se ao varejo ampliado, um conjunto formado por dez classes de comércio. As vendas de veículos, motos e componentes foram 0,7% maiores que as de julho e 16,8% superiores às de um ano antes.

A produção da indústria automobilística foi devastada nos primeiros meses da pandemia. Principalmente por isso, as diferenças são muito grandes, quando se comparam os números deste ano com os de 2020. As montadoras foram muito afetadas pela escassez de insumos, incluídos os semicondutores, e isso tem limitado a oferta de carros novos. O aumento das vendas finais tem dependido amplamente do mercado de veículos usados, como foi mostrado em reportagem recente do Estado.

Quanto às vendas de material de construção, diminuíram 1,3% no mês e 7,1% na comparação interanual, mas ainda cresceram 15,9% em 12 meses. Em conjunto, os dez setores componentes do varejo ampliado venderam em agosto 2,5% menos que em julho, com crescimento nulo em relação ao mês correspondente do ano passado.

Pressionadas pelas condições de trabalho e pela alta de preços, com inflação de 9,68% nos 12 meses até agosto, as famílias contiveram os gastos procurando produtos mais baratos e renunciando a certas compras. Suas dificuldades foram agravadas pelo encarecimento de itens essenciais, como alimentos, gás de cozinha e eletricidade. De julho para agosto a receita nominal de hiper e supermercados variou apenas 0,3% e a de postos de combustíveis diminuiu 0,7%. Houve aumento de preços, mas o faturamento de muitas empresas foi contido pela retração dos consumidores.

A inflação continuará acelerada e nada permite prever uma rápida e acentuada melhora das condições de emprego. Para frear a alta de preços, o Banco Central deve continuar elevando os juros e dificultando o crédito. É muito difícil, diante dessas perspectivas, antever uma recuperação mais firme do consumo. Sem a participação do consumidor, a indústria continuará condenada a uma recuperação insegura e oscilante. O mercado externo poderá proporcionar boas oportunidades de vendas, mas a exportação ainda tem, para a maior parte das indústrias, uma importância muito limitada como fonte de receita. A mudança desse quadro só será possível com uma inovação estratégica nas empresas e com um sério envolvimento do setor público.

‘O fundo do poço’

O Estado de S. Paulo

Sucessão de equívocos põe em risco produção científica e sistema de pós-graduação do País

Numa iniciativa que causou forte impacto nas comunidades acadêmica e científica, os reitores das três universidades públicas paulistas – USP, Unicamp e Unesp – divulgaram uma contundente nota de protesto, intitulada O fundo do poço, contra a decisão da Justiça Federal do Rio de Janeiro que suspendeu as atividades de avaliação do sistema brasileiro de pós-graduação.

Essa avaliação é feita a cada quatro anos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a última, divulgada em 2017, abrangeu 4.175 programas de pós-graduação, que receberam notas numa escala de 1 (insuficiente) a 7 (muito bom). Os conceitos 6 e 7 são dados apenas aos programas considerados com padrão internacional e de excelência. A suspensão da avaliação do período de 2017 a 2020 foi pedida pelo Ministério Público Federal (MPF), sob a justificativa de que a Capes mudou retroativamente os critérios de fiscalização e os parâmetros para cada área do conhecimento, disseminando insegurança jurídica. É com base na pontuação da Capes que bolsas de estudos são concedidas, linhas de financiamento são abertas e as instituições com baixa pontuação são descredenciadas. 

Em abril, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, surpreendeu ao trocar a direção da Capes e indicou para presidi-la a reitora de uma universidade particular do interior do Estado de São Paulo – uma instituição que tem pouca expressão educacional e científica no País. Quase cinco meses depois, ela também surpreendeu ao destituir os integrantes do Conselho Técnico-Científico, que é o órgão responsável pela avaliação da pós-graduação. Ao deixar o cargo, os demitidos acusaram a presidente da Capes de patrocinar uma “desconstrução do modelo de avaliação construído e aperfeiçoado pelos pares, ao longo de décadas, pondo em risco a credibilidade de uma agência de Estado reconhecida nacional e internacionalmente”. 

Para o MPF, a destituição dos conselheiros e as mudanças retroativas nos critérios de fiscalização podem ter sido promovidas para favorecer universidades privadas num sistema de pós-graduação construído com base nas universidades públicas. Para o órgão, a alteração nas regras terá impacto na distribuição de recursos federais de fomento à educação e à pesquisa. “O problema não é a modificação dos parâmetros em si, mas sua imprevisibilidade e sua retroação ilícita, o que impede as instituições de reagir à mudança regulativa. A Capes sequer prevê regimes de transição entre um período de avaliação e outro, tornando a avaliação imprevisível para os administrados, que necessitam se reformular em um prazo exíguo para atender às novas exigências”, afirmaram os procuradores Jessé dos Santos e Antonio Cabral, autores da ação acolhida pela Justiça Federal. 

Em sua nota de protesto, os reitores da USP, Unicamp e Unesp alegaram que, apesar de a Capes ter mudado critérios retroativamente, o MPF teria superestimado o risco de “imprevisibilidade” decorrente dessa alteração. Também disseram que a interrupção abrupta causada por decisão judicial coloca em risco o sistema de pós-graduação e a produção científica brasileira. E lembraram ainda que a judicialização do problema era desnecessária, pois as notas dos programas são definidas posteriormente à avaliação, refletindo a percepção do desempenho de cada área do conhecimento feita por “milhares de consultores ad hoc”.

Esse é mais um retrato dos problemas de gestão na administração pública que o Brasil vem sofrendo. O ministro da Educação errou quando indicou para dirigir a Capes uma pessoa que não está à altura do cargo. Também ela errou quando destituiu os 20 membros do conselho encarregado de fazer a avaliação e mudou critérios. O MPF errou, igualmente, quando pediu a suspensão da avaliação. E a Justiça Federal fez o mesmo, concedendo a suspensão sem avaliar suas consequências. 

Ao afirmar que a educação e a ciência brasileiras estão “no fundo do poço”, a nota dos reitores da USP, Unicamp e Unesp só mostrou essa sucessão de equívocos – que, no conjunto, mostram que o poço talvez não tenha fundo. 

Labirinto tributário

Folha de S. Paulo

Sem reforma, multiplicação insana de regras para impostos sufoca contribuintes

A cultura cartorial perpassa todas as áreas de atuação do Estado brasileiro, mas talvez seja na esfera tributária que a burocracia se mostre mais onerosa para a produção e a geração de riqueza. O problema se agravou nas últimas décadas —e sem uma racionalização urgente o país não romperá o padrão atual de baixo crescimento.

Estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento tributário (IBPT), por ocasião dos 33 anos da Constituição, completados no último dia 5, apresenta triste panorama. Segundo o instituto, apenas no âmbito empresarial existem 4.626 normas tributárias em vigor, que abarcam 51.945 artigos, 121.033 parágrafos e 386.993 incisos.

Não é apenas o gigantismo das regras que inferniza a vida das empresas, mas sobretudo o caos legislativo e a rapidez com que são produzidos novos normativos, não raro contraditórios entre si.

O estudo indica que desde 1988 foram editadas 443.236 regras fiscais nas esferas federal, estadual e municipal. Cada ente conta com ampla liberdade para legislar sobre o assunto, sempre invocando a autonomia federativa.

Estados e municípios acabam definindo regras diferentes para tributos da mesma natureza —e abusando da criatividade em obrigações acessórias que atormentam os contribuintes.

Toda a estrutura de pessoal e sistemas para lidar com o cipoal de normas custa, de acordo com o IBPT, R$ 180 bilhões por ano. Mesmo assim, nem mesmo as empresas que dispõem dos melhores e custosos advogados podem ter certeza de que estão em dia com suas obrigações. Não por acaso, um trabalho do Insper estima que contenciosos originados pela Receita Federal chegam a R$ 5,4 trilhões (ou 75% do PIB).

Simplificar e modernizar as regras dos impostos que incidem sobre bens e serviços é imperativo, portanto.

As mudanças necessárias são conhecidas, mas sempre difíceis de implementar por objeções setoriais, que em sua visão particularista falham em perceber que todos ganhariam com uma reforma que destravasse investimentos.

O debate tem avançado, felizmente, mesmo com a falta de empenho do governo federal. A criação de um imposto único sobre o valor agregado, com cobrança no destino do produto, seria a melhor solução, mas esbarra nas demandas por compensações regionais, que recairiam sobre a União.

Se preciso for, para vencer esse obstáculo cabe considerar a opção do chamado IVA dual, que tramita no Senado, com uma cobrança federal e outra que agrupe o ICMS estadual e o ISS municipal.

A dúvida é se uma proposta dessa complexidade, a envolver tantos interesses, conseguirá prosperar a despeito da escassez de liderança e articulação em Brasília.

Maratona da malária

Folha de S. Paulo

Após um século de busca, vacina poderá salvar milhares de crianças africanas

Com uma pandemia que matou 4,8 milhões de pessoas em 23 meses, doenças difíceis de lidar como a malária caíram para segundo plano na atenção mundial. Não na pesquisa, felizmente, que também nesse caso traz boas novas relacionadas com vacinas.

Em 2019, pelo mais recente dado global disponível, a famigerada febre atacou 229 milhões de pessoas, 94% delas na África (onde predomina a infecção mais grave, pelo Plasmodium falciparum). Deixou 409 mil mortos, 274 mil (67%) dos quais crianças até 5 anos.

No Brasil foram 141 mil ocorrências em 2020, com 24 óbitos. Aqui é mais comum o P. vivax, que ocasiona quadro mais benigno.

Imunizantes eficazes contra o Sars-CoV-2 começaram a ser aplicados em um ano, rapidez nunca vista. Contra a malária se buscam vacinas há um século, e só agora um preparado obtém indicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para uso amplo, mesmo com eficiência de apenas 50% para evitar casos graves.

Não se trata de diminuir o feito, que promete salvar milhares de crianças. Mesmo que o impacto seja pequeno no Brasil, cabe registrar que a vacina se tornou possível porque um casal de cientistas brasileiros nunca se rendeu, em mais de meio século, aos obstáculos impostos pelo plasmódio.

Em 1967, refugiados nos EUA, Ruth e Victor Nussenzweig fizeram descoberta fundamental sobre repetição de aminoácidos essencial para desencadear a produção de anticorpos contra o protozoário. Foi a partir dela que o Instituto de Pesquisa do Exército Walter Reed e a empresa GSK chegaram ao imunizante RTS,S.

Protozoários como o plasmódio são seres bem mais complexos que vírus e bactérias, contra os quais vacinas costumam ter desenvolvimento mais célere. Pessoas infectadas repetidamente por mosquitos anofelinos voltam a ter a doença, pois seu sistema imune não chega a criar defesas contra o parasita.

Até aqui, sanitaristas contavam só com redes, inseticidas e drogas profiláticas para combater a malária, mas os avanços obtidos bateram num teto e estagnaram.

No estágio atual da corrida contra a Covid-19, ninguém sabe onde fica a linha de chegada. Na pista da malária, a maratona ganhou um pouco mais de chances de ser concluída até 2035, conforme a meta global fixada pela OMS.

Câmbio fora de lugar acelera inflação dos emergentes

Valor Econômico

A disputa eleitoral que se avizinha pode tumultuar o mercado de câmbio e trazer muita volatilidade às cotações

Alinhado aos bancos centrais mais influentes -Federal Reserve americano e Banco Central Europeu - o Fundo Monetário Internacional chancela a perspectiva de que a onda inflacionária global é fenômeno temporário, que acabará por volta de meados de 2022, não antes de mostrar sua virulência até o fim deste ano. Nos países emergentes, a inflação atingirá 6,8% para cair a 4% na metade do ano que vem, e a 2% nos países desenvolvidos. Há muita incerteza com os vários choques originados da pandemia, que tornaram difícil utilizar o passado como um guia confiável para o futuro.

Ainda que de maneira geral, para o Fundo, a inflação esteja ancorada em 2022 e 2023 tanto para os países ricos quanto para os emergentes, há fatores desestabilizadores diferentes para uns e outros. As referências feitas aos países emergentes no segundo capítulo da Perspectiva da Economia Mundial de outubro valem em boa parte para o Brasil. Nestes países, “as acelerações inflacionárias estão associadas a agudas depreciações da taxa de câmbio”, indica o FMI. E ainda que o esforço para alinhar as expectativas de inflação tenha evoluído muito, um de seus fatores, a dispersão das expectativas, é maior também nos emergentes devido às desvalorizações cambiais.

Os economistas do FMI fizeram projeções sobre o que aconteceria com a inflação em um cenário adverso, diferente do básico, caracterizado por fortes aumentos nos preços das commodities, continuação dos gargalos na oferta de insumos e dispersão setorial dos preços - nada diferente do que ocorreu no Brasil nos últimos meses. Nestas circunstâncias, a variação dos preços nos emergentes atingiria 8,4% na metade de 2022. A inflação só voltaria à sua tendência de longo prazo em 2024. Se as expectativas estiverem, além disso, desancoradas, a inflação subiria a dois dígitos nos dois grupos de países. O FMI atribui probabilidade muito baixa deste cenário se materializar.

O risco de uma inflação desancorada é que ela será bem mais alta e o custo para reduzi-la, muito maior. No Brasil, as expectativas começaram a se afastar das do Banco Central, a grosso modo, no primeiro trimestre do ano, antes de suas elevações agressivas de juros, mas a inflação prevista para 2023 pelo mercado continua no centro da meta pretendida, de 3,25%. O pior da onda inflacionária ainda não passou - o BC espera que isso comece a ocorrer a partir de outubro.

Os fatores que impulsionam a inflação atual estão presentes, com pesos algo distintos, em todas as economias. O petróleo subiu, as demais commodities aumentaram muito, com destaque, pelo seu peso nos índices dos países emergentes, dos alimentos, há problemas na oferta de muitos insumos industriais, a demanda na pandemia se deslocou bastante para bens e passou compreensivelmente ao largo dos serviços - e essa roda vai girar ao contrário agora - e há escassez e preços em alta da energia.

No Brasil, no entanto, houve ao mesmo tempo megadesvalorizações do real, quando o esperado, com base no passado, era que o real se apreciasse. A perda de valor do real ocorreu em parte porque os demais fundamentos da economia mostram fragilidade - o horizonte fiscal, o principal observado pelos investidores, é turvo, para dizer o mínimo, e o presidente da República semeia incertezas e intranquilidades. Estranhamente, os indicadores que formam as condições associadas à ocorrência de maxidesvalorização cambial, o volume de reservas e o déficit em conta corrente, exibem bons números, nada preocupantes.

Embora o FMI não veja nuvens negras no horizonte, para o Brasil há algumas. Sem que os EUA e a Europa tenham ainda começado a remover os estímulos monetários, o real continua se desvalorizando. A perspectiva de fim das injeções de dinheiro adicionais para enfrentar a pandemia e de aumento dos juros nos EUA em 2022, tendem a fortalecer o dólar no curto prazo, assim como o maior crescimento americano em relação aos demais desenvolvidos e o maior diferencial de juros em relação a eles. A disputa eleitoral que se avizinha pode tumultuar o mercado de câmbio e trazer muita volatilidade às cotações.

O melhor com que o BC pode contar na sua luta contra a inflação será, com sorte, depreciações cambiais pequenas, um maior fluxo de ingressos de capitais estrangeiros para investimento e portfólio, e maior internação de dólares pelos exportadores brasileiros. O baixo crescimento, que se eterniza, mantém, porém, o país como um investimento de risco.

 

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