sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Entrevista | Adam Przeworski: ‘O crescimento da extrema direita vem de pessoas que não votavam antes’

Para o autor de “Crises da democracia” e “Por que eleições importam”, a pressão ambiental e fiscal fará crescer os desafios da democracia e pode surgir uma liderança republicana mais hábil que Trump na corrosão de seus alicerces

Por Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico / Eu & Fim d Semana

Anos atrás, quando ainda morava em Chicago, Adam Przeworski teve os pneus de seu carro presos no gelo em função de uma nevasca. Ligou para a prefeitura em busca de ajuda e nada conseguiu. A esposa acionou o chefe do diretório local do Partido Democrata. Ele chegou em seguida e logo registrou a ausência deles nas últimas eleições municipais. Przeworski e a mulher lhe garantiram serem registrados como integrantes do partido e lhe prometeram que votariam nas eleições seguintes. Uma hora depois apareceu uma equipe da prefeitura para retirar o gelo. “A administração pública estava comprando nossos votos por meio da oferta seletiva de serviços públicos”, concluiu.

O dono do carro contou a história em “Por que eleições importam” (Eduerj, 2021). Não é uma leitura para curar o complexo de vira-latas tupiniquim, mas para colocar o ponto e a vírgula nas expectativas eleitorais. “Eleições não são belas”, diz, ao descrever chicanas eleitorais mundo afora. E, portanto, não se deve esperar delas o que não podem dar. O livro foi originalmente lançado antes de “Crises da democracia”, publicado em 2020 no Brasil pelo selo Zahar, da Companhia das Letras. Complementam-se ao dissecar as raízes do desencanto.

O autor, nascido em Varsóvia em 1940 e filho de um casal de médicos, não chegou a conhecer o pai, morto pelos soviéticos. Aos 21 anos deixou Varsóvia pela primeira vez para se doutorar na Universidade de Northwestern, em Illinois. Seu destino cruzaria pela primeira vez com o Brasil quando, numa de suas estadias acadêmicas no exterior, recebeu de um amigo brasileiro, Pedro Celso Cavalcanti, militante do Partido Comunista exilado em Varsóvia, o conselho para não retornar ao país. Como seu visto americano havia expirado, foi parar no Chile. Przeworski acabaria voltando aos Estados Unidos, mas não perderia os vínculos com o Brasil ao longo de sua vida acadêmica em universidades americanas e europeias, entre as quais a de Chicago, onde passou 22 anos. Em 2019 reencontrou ex-alunos e colegas em palestra em São Paulo nas comemorações dos 50 anos do Cebrap.

Invasão do Capitólio: Przeworski teme que o país fique paralisado se os democratas perderem a maioria no Congresso nas eleições do próximo ano — Foto: Jose Luis Magana/AP

Przeworski sempre manteve distância regulamentar dos arautos da crise terminal da democracia, mas anda pessimista, ou realista, como prefere. Não idealiza os ritos da democracia. Vê, porém, sombras pesadas sobre a democracia, a começar pela americana. Não apenas pelas chances de o Partido Republicano vir a ser dominado por uma liderança mais hábil que Trump, mas pelo risco de o país ficar paralisado a partir de 2022 numa eventual derrota da maioria democrata na Câmara.

Aos 81 anos, Przeworski é um pesquisador incansável. Detentor do Prêmio Johan Skytte, concedido pela Universidade de Uppsala (Suécia) e considerado o Nobel da ciência política, continua a dar aulas na Universidade de Nova York, onde mora com a mulher e onde sua filha dá aulas de genética na Universidade de Columbia. Nesta entrevista, concedida por Zoom a partir de seu apartamento em Nova York, na última terça-feira, diz que a extrema direita não se elege roubando votos da esquerda, mas engajando o absenteísmo; critica o banimento de políticos, como Trump, das redes sociais; e alerta para a centralidade da questão ambiental: “Os conflitos vão aumentar”. 

A seguir, a entrevista:

Valor: O senhor diz no seu livro que a principal virtude da democracia é a capacidade de processar conflitos com liberdade e sem violência. O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro foi um contestação violenta às urnas. Como aquela invasão do Capitólio pôs em xeque as eleições americanas como salvaguarda da democracia?

Adam Przeworski: Sou muito pessimista sobre os Estados Unidos. O país foi profundamente afetado pelo 6 de janeiro. Os EUA têm instituições singulares, como um sistema eleitoral indireto. Um presidente pode se eleger tendo perdido no voto popular. Isso aconteceu cinco vezes na história. A última delas, em 2016, na eleição de Trump. E pode acontecer de novo.

Valor: A violência também pode vir a se tornar uma dessas singularidades dos Estados Unidos?

Przeworski: Havia um cheiro no ar do que acabou acontecendo. Escrevi um artigo antes das eleições (“‘American Exceptionalism’ and the 2020 elections”) em que discorri sobre as dúvidas crescentes que passaram a surgir sobre um eventual engajamento político das Forças Armadas, do serviço secreto e do FBI. Parecíamos estar na América Latina de 30 anos atrás. Parecia inacreditável que os EUA estivessem vivendo isso. Assistimos às Forças Armadas sendo chamadas a agir como salvaguarda constitucional. Isso nunca tinha acontecido antes nos EUA. E essa irracionalidade se estendeu para a vacinação. As pessoas colocaram suas vidas em risco em função de uma identidade política num país extremamente dividido. Então é difícil prever o que pode acontecer na prevalência dessa irracionalidade

Valor: Biden enfrenta dificuldades crescentes. Um retorno de Trump ameaça a democracia?

Przeworski: Chego mesmo a imaginar que isso não dependa da volta de Trump. O vencedor da primária republicana pode vir a ser alguém similar ou mais esperto, como o governador da Flórida, Ron DeSantis. Trump tentou, mas não conseguiu reduzir as chances eleitorais dos democratas. Nixon foi mais bem-sucedido. Usou até a máquina pública para intimidar a oposição.

Valor: O próximo candidato republicano pode então ser mais esperto?

Przeworski: Sim, esse é o risco, mas as coisas podem piorar antes disso. Em 2022, se os democratas perderem a maioria na Câmara, o país pode ficar paralisado, e não vamos nos esquecer de que se trata de um país que ainda não foi capaz de controlar a pandemia.

Valor: Em seu livro o senhor diz que a maioria se desaponta seja pelo resultado eleitoral, seja pelo desempenho do governo. Apesar disso, a cada eleição renovam-se as expectativas. A principal causa do 6 de janeiro e das manifestações antidemocráticas de 7 de setembro no Brasil foi o desequilíbrio entre esperança e decepção?

Przeworski: As pessoas aprenderam nas últimas décadas que os governos podem mudar sem que suas vidas mudem. O fato de que tão largas fatias do eleitorado permaneçam insatisfeitas com o resultado das eleições e dos governos as deixa vulneráveis a soluções mágicas. O que aconteceu nos EUA, no Brasil e nos países europeus foi que apareceram muitos políticos oferecendo soluções mágicas, como a do “America great again”. Os partidos tradicionais não foram capazes de transformar suas vidas, e assim as pessoas ficaram vulneráveis a curandeiros, como pacientes terminais. Na República de Weimar, quando os pacientes ficavam desenganados, passavam a acreditar no poder curativo do queijo cottage. E esse é um fenômeno que não tem apenas causas econômicas

“Redes sociais geram divisões, mas banir a livre expressão é uma má ideia. É preciso circular as ideias para que as pessoas se eduquem”

Valor: O senhor diz que a expectativa de que eleições redistribuam riqueza enfraquece a democracia. Pode explicar melhor esse conceito?

Przeworski: Nos EUA e na Europa os pais perderam a esperança de que seus filhos viverão melhor que eles. Esta era uma crença que perdurava desde a Revolução Industrial. Hoje 60% das pessoas não acreditam mais nisso. E não é apenas uma crença, mas a realidade dos fatos. Em 1970, 90% dos adultos de mais de 30 anos de idade tinham uma situação financeira melhor que seus pais. Hoje apenas 50% vivem melhor que os pais. Quando se pergunta às pessoas o que mais importa para o sucesso, se é educação ou se as conexões que se estabelecem, elas não sabem dizer. Numa pesquisa que envolveu 15 países europeus, perguntou-se se a causa dos conflitos sociais era a desigualdade de renda, o desemprego ou as diferenças étnicas. Antes as respostas eram previsíveis pelas simpatias populistas, marxistas ou conservadoras, mas hoje não usam o filtro da ideologia para responder. Dizem que todos os fatores juntos são a causa. Ninguém entende de onde vêm os problemas.

Valor: A invasão do Capitólio e as manifestações antidemocráticas no Brasil não foram lideradas pelos mais pobres. Se não é a renda, o que os move?

Przeworski: Muitos estudos já tentaram explicar isso. E me confesso cético em relação a seus achados. Alguns são importantes. Outros, nem tanto. Uma teoria para explicar o que leva as pessoas às ruas foi formulada pelo ex-presidente Lula: “Demos o pão, mas eles querem a manteiga”. Há muitas evidências de que as pessoas temem o futuro. Os trabalhadores de indústrias em processo de automação são muito mais propensos a votar na direita. Nem sempre são as condições presentes que determinam a reação, mas o medo do futuro.

Valor: O medo como o motor da história?

Przeworski: Boa frase. O medo tem esse papel. Medo de mudanças culturais muito rápidas, como Fernando Limongi [professor da FGV e pesquisador do Cebrap] um dia explicou num artigo, impacta no voto. Solteiros e, principalmente, solteiras votam mais no Partido Democrata do que os casados. As sociedades estão sob profundas mudanças. A maneira como vivem juntas, como se casam, se divorciam, têm filhos ou fazem aborto, tudo isso dificulta a adaptação e repercute no comportamento político.

Valor: O senhor escreveu que o fortalecimento do Judiciário e de bancos centrais independentes serve como freio à pressão das maiorias eleitorais. Esse freio também enfraquece a democracia?

Przeworski: Este é um tema complexo. A função contramajoritária do Judiciário é muito importante. É fundamental que o Judiciário possa contrabalancear a vontade da maioria, mas não é razoável que a voz da maioria seja sempre derrotada. Os juízes não são livres de paixões, não são anjos. Eles dizem uma coisa e seu contrário. Mas, ao fim e ao cabo, o Judiciário acaba seguindo a opinião pública. Já os bancos centrais independentes são instituições liberais desenhadas para redistribuir as pressões da democracia e desempenham, muitas vezes, um papel antidemocrático. É preciso aceitar que a democracia representativa falhou em redistribuir a renda. Nesse ponto não sou crítico dos populistas. Eles estão certos quando dizem que as instituições representativas falharam.

Valor: Se o mercado é parte do problema, também pode ser parte da solução?

Przeworski: Não existe um mercado. Há uma multiplicidade de mercados. E o que importa é como são regulados e como lidam com as externalidades. Os Estados Unidos já foram muito bem-sucedidos nessa regulação. Nos anos 1950 a economia americana era muito competitiva. Hoje é extremamente monopolista.

Valor: Mas não foi o apelo por regulação o legado da crise de 2008?

Przeworski: Essa regulação não foi muito longe. Houve alguma redução do risco, mas a tendência monopolista não se reduziu. Thomas Philippon tem um bom livro sobre o tema, “The great reversal”. Morei muitos anos entre Nova York e Paris por conta do trabalho de minha esposa. Nos EUA, usar a internet e comprar remédios custa o dobro do que na França por conta do caráter monopolista da economia.

Valor: No “Crises da democracia” o senhor diz que as pessoas mantêm sua identidade de esquerda ou direita muito embora não reconheçam essas clivagens nos partidos. E diz que a emergência da extrema direita vem desse paradoxo. Pode explicar isso?

Przeworski:Em pesquisas conduzidas na Europa, quando se pergunta às pessoas se a distinção entre direita e esquerda faz sentido, elas dizem que não. Mas, se você pede que elas se localizem no espectro político, 90% o farão. Essas dimensões são irrelevantes mas, de alguma maneira, ainda importam. A maior proporção de votos que a extrema direita ganhou foi de eleitores que não votavam, e não de eleitores que migraram da esquerda para a direita. Isso vale na França e na Inglaterra. O eleitor não confia nos governos, nos políticos e na política. É difícil se identificar. Não se trata de ser contra a direita ou a esquerda. Eles são antigoverno. Os partidos tradicionais da Europa perderam suas fatias de votos, sejam eles da centro-direita, da centro-esquerda, conservadores ou social-democratas. Houve uma fragmentação do sistema partidário. Talvez porque esses partidos já não têm muito mais a oferecer. Os partidos verdes têm avançado na Europa na medida em que os mais jovens estão mais preocupados com o clima. Tenho uma preocupação central com a democracia, mas percebo que a questão climática ganha cada vez mais centralidade.

Valor: Vê-se na cúpula do clima em Glasgow que os conflitos sociais e políticos podem crescer, uma vez que os governos enfrentam a dificuldade de reduzir as emissões de carbono num momento em que há demanda reprimida na economia. O vírus deixou ainda a herança da inflação. Qual o impacto da pandemia sobre a democracia?

Przeworski: Um conflito que se tornará cada dia mais intenso. A pressão fiscal já é grande e ficará maior.

Valor: No Reino Unido e na França é a esquerda que reclama de um Estado que impõe regras na pandemia. No Brasil é o inverso. Como a pandemia mudou a relação das pessoas com o Estado e afetou o ódio e a hostilidade na política?

Przeworski: Tem um cientista político espanhol, Ignacio Sánchez-Cuenca, que diz que a perda de confiança das pessoas nos governos durante a pandemia aconteceu em países em que essa confiança já era baixa. O que significa que o comportamento dos governos na pandemia não impactou a reação das pessoas. O que continua sendo difícil de explicar é como as pessoas conduzem sua vida e a vida de suas famílias a partir do apoio a condutas dos governos sobre temas que definem sua vida e sua morte. Na Polônia, por exemplo, a taxa de vacinação é baixa, o governo consegue estabelecer lealdade entre pessoas que não se importam com isso. No Brasil parece que é alta, não?

Valor: Sim. O senhor relaciona baixas taxas de comparecimento com a emergência da extrema direita, bem como com a defasagem entre o crescimento da produtividade e dos salários. O voto obrigatório no Brasil dificulta as comparações, mas durante o governo do PT, quando o bolsonarismo foi incubado, os salários cresceram mais do que a produtividade. Como entender?

Przeworski:O que é interessante sobre o comparecimento na Europa é que o voto da extrema direita não veio da esquerda, mas dos não eleitores. Isso já havia acontecido na década de 1930, quando Hitler mobilizou meio milhão de não eleitores. O crescimento da extrema direita vem de pessoas que não votavam antes. E a relação desse crescimento com a disparidade entre produtividade e salário é clara, na Europa e, principalmente, nos EUA. Aqui os salários estão estagnados há 40 anos, e na Europa, desde os anos 1990. No Brasil, não entendo por que é diferente.

Valor: O senhor diz que as eleições não são uma panaceia e não se pode esperar delas o que elas não podem dar. Eleições servem para escolher governantes e mandá-los para casa. A mudança vem da mobilização da ação política. A que ação política o senhor se refere?

Przeworski: Não sou tão ativista assim (risos). O que acontece é que há uma busca um pouco desesperada por mudanças institucionais. Sou realista, mais do que pessimista, mas basicamente acho que não gostamos de ser governados. Alguns governos são bem-sucedidos em mostrar às pessoas que são capazes de mudar suas condições de vida. Outros não. E desgostam muitas pessoas. Mas assim é que o mundo funciona. Nem sempre é possível ficar satisfeito com o desempenho dos governos. Não é fácil governar. Muitas vezes os governantes não têm a mais pálida ideia do que fazer diante dos problemas. Há uma famosa frase de Harry Truman [presidente americano de 1945-53]: “Deem-me economistas que tenham uma única mão”. E por quê? Porque os economistas costumam dizer: por um lado (“on one hand”), esta solução tem este benefício; por outro (“on the other hand”), tem esse problema. Os governos lidam com esses dilemas diariamente. E por isso cometem tantos erros.

Valor: Os sindicatos se enfraqueceram em todo mundo, da mesma maneira que o movimento estudantil. Mas as redes sociais ganharam muitos adeptos. Que impacto têm sobre as eleições? As redes sociais mobilizam a ação política?

Przeworski: As redes sociais são um meio de mobilização, mas não diria que mobilizam para a ação. Este é um tema de intensa pesquisa da qual sou um leitor secundário. Muitas pessoas acreditam que o Facebook ou o Twitter intensificam posições, mas não necessariamente mobilizam ação política. Geram perturbações, não ação. Os sindicatos, sim. É o único poder real contra o capital. E entraram em crise sem que nada os tenha substituído. É preciso organizar para mudar. Há um autor italiano, Alessandro Pizzorno, que diz que organização é a capacidade de traçar estratégia. Maurice Thorez, secretário do Partido Comunista Francês em 1936, costumava dizer que é preciso saber quando pôr fim a uma greve. Havia uma organização para lidar com isso. Hoje não há meios para disciplinar as pessoas nessa direção.

Valor: Desde a eleição de Trump e Bolsonaro, a extrema direita inventou novas formas de propagandear fake news. A jornalista Maria Ressa, prêmio Nobel da Paz, disse que não há integridade na política sem integridade de informação. O senhor concorda?

Przeworski: Sim, a imprensa ainda tem um papel fundamental em informar, mas um número crescente de pessoas não acredita no que lê ou no que vê e prefere acreditar nas redes sociais. A imprensa, de fato, perde audiência.

Valor: Trump foi banido das redes sociais pelas próprias empresas, e a CPI da Pandemia do Congresso brasileiro propôs que Bolsonaro também o fosse. A primeira-ministra alemã Angela Merkel protestou contra o banimento de Trump. O senhor também se incomodou?

Przeworski: Sou relativamente extremado na defesa da liberdade de expressão. Cresci numa Polônia sob um regime autoritário. Sou contra censura. Não acho que a livre expressão de ninguém deveria ser censurada. John Stuart Mill dizia que quanto mais as ideias circulam, mais educadas as pessoas se tornam. É verdade que as redes sociais geram divisões, mas banir a livre expressão é uma má ideia.

 

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