sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Flávia Oliveira - De improviso e desmonte

O Globo

Imagine um país mergulhado na vulnerabilidade social, provocada por meia década de recessão e estagnação, agravada por dois anos da mais letal pandemia em um século. Imagine um país com 19 milhões de famintos, que disputam ossos e pelancas em caminhões e lixeiras no coração das metrópoles. Imagine um país com quase 14 milhões de desempregados e um em cada quatro trabalhadores na informalidade. Imagine um país em que crianças e adolescentes ficaram ano e meio sem ir à escola e, por isso, passaram a enfrentar insegurança alimentar e violência doméstica. Esse país é o Brasil, e o governo Jair Bolsonaro, diante da tragédia, desmontou o mais bem-sucedido programa de transferência de renda já implementado, o Bolsa Família, para pôr no lugar um obscuro substituto, o Auxílio Brasil.

Desde o anúncio do fim do Bolsa Família, cujos últimos pagamentos foram creditados na virada do mês, a política social mergulhou num mar de dúvidas, que abarca população e sistema de assistência social, especialistas e parlamentares. Na capital fluminense, nesta semana, as unidades do Centro de Referência em Assistência Social (Cras ) em dez áreas do Rio viram a demanda por atendimento triplicar, principalmente nos bairros da Zona Oeste e nos conjuntos de favelas da Zona Norte, caso da Maré e dos complexos do Alemão e do Chapadão.

— Fazíamos 70 cadastros por dia em média. Nos últimos dias, os Cras amanhecem com filas de 200 pessoas —, contou a secretária municipal de Assistência Social, Laura Carneiro.

Tanto beneficiários do Bolsa Família quanto pessoas que receberam o Auxílio Emergencial e querem se inscrever no Cadastro Único estão lotando os pontos de atendimento da prefeitura. Saem, em grande parte dos casos, sem informação. O Ministério da Cidadania informou que, neste mês, “aproximadamente 14,5 milhões de famílias serão atendidas” (com repasse médio de R$ 217), sem especificar o total por estado ou município. Em dezembro, o total de famílias cobertas com o Auxílio Brasil passará a 17 milhões (50 milhões de pessoas), número suficiente para zerar a fila de espera do programa. Ano que vem, de eleição presidencial, a intenção é pagar R$ 400 de janeiro a dezembro.

— O governo nem sequer apresentou as contas que o levaram a esse desenho, nem o impacto esperado em redução da pobreza ou da desigualdade, coisas básicas em política social. Por que pagar R$ 400 a 17 milhões, não R$ 350 a 20 milhões de famílias? Não sabemos — analisou a socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental.

Há um rastro de interrogações pelo caminho. Como não houve diálogo, reuniões, informações trocadas com governos estaduais e municipais, as equipes locais não têm condições de prestar esclarecimentos à população. As prefeituras também não tiveram acesso à base do Auxílio Emergencial para efetuar o cruzamento de dados.

O Bolsa Família foi uma política orientada aos arranjos familiares, sobretudo com crianças, gestantes e nutrizes; o auxílio de enfrentamento à pandemia, a indivíduos. Ainda segundo o Ministério da Cidadania, o Auxílio Emergencial atendeu 39,4 milhões de pessoas em 2021, dos quais 34,4 milhões receberam a última parcela. Do total, 9,3 milhões estavam no Bolsa Família, 4,5 milhões no Cadastro Único e 20,5 milhões habilitaram-se pelo aplicativo da Caixa. Significa que, em novembro, 25 milhões de brasileiros estão sem proteção social.

Na cidade do Rio, a prefeitura conseguiu habilitar 41 mil lares no Bolsa Família de janeiro a abril. Foi esse o prazo-limite estabelecido pelo governo federal para inclusão nos sete meses do Auxílio Emergencial 2021. Em outubro, 303 mil domicílios cariocas estavam no Bolsa Família, cerca de 1 milhão de habitantes. O Auxílio Emergencial, por sua vez, foi pago a 1,5 milhão de pessoas. É possível que meio milhão de moradores da cidade estejam sem renda a partir deste mês. De maio para cá, 41.796 novas famílias foram inseridas no Cadastro Único, mas não há certeza de que serão incorporadas ao novo programa em dezembro.

Desde o início da pandemia, o governo Bolsonaro já alterou a política social quatro vezes. No ano passado, pagou auxílio emergencial de R$ 600; depois, de R$ 300. Em 2021, suspendeu o programa por todo o primeiro trimestre; ressuscitou-o em abril com valores de R$ 150, R$ 250 e R$ 375. Gastou mais de R$ 350 bilhões sem obter resultados duradouros em diminuição da pobreza e da miséria. Agora, com arquitetura orçamentária precária (e ainda pendente de aprovação no Senado), sepultou o Bolsa Família para implementar um programa novo, com novas regras, nenhum diálogo, pouca transparência e parte do benefício com prazo determinado, um ano. De improviso e desmonte, vivemos.

 

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