quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Malu Gaspar - Dá para confiar no Enem?

O Globo

Jair Bolsonaro nunca fez segredo de sua intenção de mexer no conteúdo das provas do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. O presidente já declarou diversas vezes que gostaria de acabar “com a ideologia de gênero”, o “comunismo” e o “ativismo político e comportamental” nas provas. E faz questão de propagandear o intenso trabalho que o Ministério da Educação faz para cumprir a ordem. Das Arábias, ao comentar a crise que levou ao pedido de demissão de 37 servidores envolvidos na elaboração do Enem, Bolsonaro comemorou: “Começa agora a ter a cara do governo a prova do Enem”

Nesta quarta-feira, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi à Câmara dos Deputados negar a interferência ideológica. Balela. Quem acompanha o ministro sabe que ele sempre deixou claro que pretendia, sim, seguir a “visão educacional” do presidente da República, tanto no instituto responsável pelo exame, o Inep, quanto no ministério. Por mais escandaloso que pareça a pessoas razoáveis, para o bolsonarismo, interferir no Enem não só é legítimo, como necessário. Ribeiro despista os deputados, mas curte a repercussão de suas atitudes entre os seguidores do presidente.

Segundo o ministro, porém, o Enem terá a cara do governo “no sentido de competência, honestidade e seriedade”. E isso merece um pouco mais de atenção.

Desde 2019, funcionários do Inep denunciam que gente de fora interfere no Enem de uma forma ou de outra. Em 2019, a ex-presidente Maria Inês Fini afirmou que pessoas estranhas à prova tiveram acesso às questões e censuraram seu conteúdo para excluir menções ao período da ditadura militar. Em agosto deste ano, a revista Piauí publicou que o ministro nomeara uma comissão de 22 pessoas para “revisar” a prova. Ribeiro então recuou e disse que ele mesmo se incumbiria da tarefa.

Pelo que denunciam agora os servidores, a missão foi assumida por um policial federal que, no dia 2 de setembro, entrou no ambiente seguro onde ficam guardadas as provas e teve acesso a seu conteúdo. Segundo o Estado de S. Paulo, 24 questões foram retiradas. Dessas, 13 depois foram novamente incluídas e 11 definitivamente excluídas.

O presidente do Inep, Danilo Dupas, nega tudo. Atribui as denúncias a uma revolta contra modificações no sistema de gratificação dos funcionários, mesmo sabendo que elas começaram antes das mudanças. E afirma que o agente da PF que teve acesso à prova estava fazendo uma auditoria e foi acompanhado de um servidor responsável pelo exame.

Mas várias questões continuam pendentes. Dá para acreditar que são sérios os gestores de um órgão público que expõem a prova mais importante da vida de 3 milhões de adolescentes, crucial para 3 milhões de famílias, ao risco de fraudes e vazamentos? Afinal, quem viu as questões? Essas pessoas mudaram ou não o conteúdo do teste? O que de fato sabem sobre o exame? Quem garante que não farão negócio com o que deveria ser um segredo de Estado?

Não são perguntas absurdas, considerando que até hoje não foi bem esclarecido um episódio de fraude ocorrido em 2019 noutra prova, o Enade, sobre o desempenho dos alunos que concluem o ensino superior. Em julho de 2020, uma investigação do Inep concluiu haver fortes indícios de que as questões tinham sido vazadas aos alunos de biomedicina da Unifil, em Londrina, por uma coordenadora do curso que participara da elaboração da prova no MEC. Ribeiro, amigo dos pastores donos da universidade, recusou-se a enviar as conclusões do Inep à Polícia Federal e fez produzir, no próprio ministério, um relatório inocentando todo mundo.

E o que dizer do quesito competência? As provas realizadas em janeiro deste ano, no auge da pandemia, tiveram abstenção recorde, de 51,4% dos inscritos, e mesmo assim uma parte dos alunos que compareceram não pôde fazer a prova porque as salas estavam abarrotadas. Até hoje, os microdados desse exame não estão disponíveis, por isso não se conhecem informações relevantes, como o perfil socioeconômico de quem faltou ou que habilidades foram mais bem avaliadas em redação.

Na semana passada, enquanto os funcionários do Inep debandavam, o MEC ficou acéfalo. Ribeiro foi a Paris com seu secretário executivo falar na conferência anual da Unesco sobre “os esforços do Brasil na melhoria da Educação”. Ontem, na Câmara, ele explicou ter pedido para marcar a audiência pública para a quarta-feira porque, depois, estaria fora de Brasília. Vai se reunir com prefeitos de Minas Gerais e participar da posse da diretoria de um instituto técnico no Espírito Santo. Para o ministro, portanto, não tem nada de mais acontecendo. Está tudo tranquilo, porque o Enem agora tem a cara do governo.

 

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