sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Maria Cristina Fernandes – Veneno para o mundo morrer sem sentir

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Rubens Ricupero diz que a demanda reprimida da pandemia impediu avanços maiores na COP26 e vaticina que mudança só virá quando perda atingir os milhões de dólares

 “Ela é o veneno que eu escolhi para morrer sem sentir.” É com esta estrofe de “Pela Décima Vez”, samba de 1935, que Noel Rosa define a amada. E é nele que o embaixador Rubens Ricupero se apoia para definir a 26ª COP, sigla para Conferência das Partes, que se encerrou na semana passada. Os limites esbarrados lhe mostraram que o conjunto das nações ainda escolhe matar o planeta aos poucos porque seu aquecimento ainda não lhe provoca medo de morrer. Não foi capaz de suscitar, na opinião pública mundial, o choque que se conheceu com a pandemia quando as pessoas foram obrigadas a mudar de comportamento e de vida.

Aos 85 anos, o ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) e ex-ministro do Meio Ambiente não precisou mudar seu jeito enclausurado de ser ao longo da pandemia para dimensionar a ameaça do aquecimento global resultante de seu maior encontro. E conclui que a própria pandemia pode ter sido um dos fatores a impedir avanços maiores. Como os países correm para atender à demanda reprimida ao longo da clausura, agiganta-se o custo político das decisões rumo à economia de baixo carbono. A se confirmar sua previsão, a mudança só vai acontecer, no Brasil e no mundo, quando as catástrofes chegarem aos milhões de dólares.

Não que a conferência tenha sido pura decepção. Os piores pressentimentos de Ricupero, tanto em relação à disputa entre as duas superpotências, China e Estados Unidos, quanto à participação brasileira, acabaram por não se confirmar. O pessimismo do embaixador vem da certeza de que os compromissos assumidos, por mais tímidos que sejam, não se farão cumprir e, se o forem, não evitarão o cataclisma climático.

Tome-se, por exemplo, as NDC (contribuições nacionalmente definidas), sigla para os compromissos voluntários apresentados por mais de 150 países para a redução na emissão de gases de efeito estufa. Houve um maior consenso em relação à fixação do patamar de 1,50 C de aumento de temperatura no fim do século em relação àquela vigente na era pré-revolução industrial.

Oficialmente, porém, a soma de todas as propostas feitas pelo conjunto das nações, se cumpridas, levaria a um aumento de temperatura de 1,80 C. E o cálculo de institutos independentes chega a 2,40 C. E como nunca se cumprem as propostas na sua integralidade, o quadro é mais feio do que se pinta, diz o embaixador, testemunha de grande parte dos encontros climáticos promovidos pelas Nações Unidas em três décadas.

O consolo é que podia ser pior. Era o que se desenhava da ausência dos presidentes russo, Vladimir Putin, e, principalmente, do chinês. Sem sair da China há 21 meses, por conta da política de covid-zero, Xi Jinping não enviou sequer um vídeo com os compromissos de seu país, como fizeram outras lideranças. Se é a economia que mais tem a ganhar com a conversão ambiental, por ser o maior fabricante de equipamentos para energia renovável do mundo, a China tem também uma velocidade de adaptação a ser regulada pelas ambições políticas de seu dirigente máximo. Em novembro de 2022, o Partido Comunista Chinês se reúne para seu 20º Congresso para confirmar o terceiro mandato de Xi Jinping. Pelo preâmbulo da resolução do Comitê Central do PCC durante a COP 26, não ficou dúvida de que é o que acontecerá.

O cálculo político e a aparente soberba, no entanto, não impediram o diálogo entre os dois países, mesmo quando o establishment da política externa americana já lhes decretava em nova Guerra Fria, conta um diplomata brasileiro que acompanha de perto a relação bilateral. Compute-se aí a visita de dois dias, em setembro, com dispensa de quarentena, de John Kerry, enviado especial dos EUA para mudanças climáticas. Ou a maneira pragmática com a qual a imprensa chinesa acolheu a agressividade de Nicholas Burns, indicado de Biden para comandar a embaixada dos EUA em Pequim. Suas declarações, ao longo da sabatina no Senado americano, foram compreendidas como parte do jogo para arrancar o aceite parlamentar.

E o resultado foi colhido 48 horas antes do encerramento da COP 26, quando Kerry e o enviado especial para clima da China, Xie Zhenzua, fizeram uma declaração conjunta e, cinco dias depois, quando os próprios chefes de Estado tiveram seu primeiro encontro, ainda que virtual. A declaração conjunta terá pouco impacto imediato, mas manteve os dois países num terreno comum de entendimento. Se EUA e China têm muitas áreas de desacordo, diz Ricupero, a declaração mostrou que o meio ambiente não é uma delas. Como todo diplomata, o embaixador brasileiro mede e pesa todas as palavras de eventos do gênero. E neste foi fisgado pela “questão existencial” com a qual delegado chinês definiu o aquecimento global.

Na existência dos dois países, a China aparece como a mais resistente a compromissos ambientais ousados. Isso porque reluta em arcar com o ônus de maior emissor atual de dióxido de carbono que, de fato, é. Cede a liderança aos EUA, porém, na emissão acumulada de gases que permanecem na atmosfera e contribuem para o aquecimento. Em balanço recente feito pelo site britânico “Carbon Brief” (www.carbonbrief.org/analysis-which-countries-are-historically-responsible-for-climate-change), estima-se que do CO2 produzido desde a Revolução Industrial no mundo, 20% é “made in USA”. A China vem em segundo, com 11%, em grande parte porque entrou tardiamente no jogo. Seguem Rússia (7%), Alemanha (4%) e Reino Unido (3%). Brasil (5%) e Indonésia (4%) são os dois únicos países que devem sua presença no pódio da emissão acumulada majoritariamente ao desflorestamento.

A entrada tardia da China no jogo da industrialização ainda faz com que o país tenha uma única planta entre as dez maiores térmicas a carvão que poluem o planeta. A Coreia do Sul lidera com três unidades e a Índia vem em seguida com duas. Polônia, Taiwan, Alemanha e Japão têm, cada um, uma usina na lista. Estudo produzido pela Universidade do Colorado e publicado na Environmental Research Letters (iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/ac13f1/pdf) mostra que o fechamento das 5% piores térmicas a carvão do mundo reduziria 75% da emissão de carbono provocada pelo setor.

O peso da Índia na lista das dez maiores térmicas a gás explica seu protagonismo na mitigação do compromisso sobre a energia a carvão com a troca do termo “eliminação” por “redução” acrescido de um gradualismo a perder de vista. Os Estados Unidos não têm uma única planta na lista das dez maiores do mundo, mas, internamente, o dano provocado por suas grandes térmicas a carvão é mais concentrado do que na China e de suas mais de duas mil usinas. O constrangimento do qual a China é poupada e atormenta Biden é o custo eleitoral de se avançar no tema.

Se o crescimento dos partidos verdes e a dominância da consciência ambiental entre jovens são o que sustenta as posições mais ousadas da União Europeia no debate climático, nos Estados Unidos o avanço de Biden no tema ameaça lhe tomar a maioria democrata no Senado, diz Ricupero. O presidente americano tem em Joe Manchin, um correligionário de Virgínia Ocidental, um dos Estados mais dependentes do carvão do país, um dos maiores opositores ao seu “Green New Deal”. Se Biden perder um único assento, vai-se a maioria democrata no Senado. Conseguiu passar no Congresso o pacote de US$ 1,3 trilhão de investimento em infraestrutura, mas patina nos pacotes social e ambiental.

O federalismo que, nos EUA, se levanta como uma barreira contra os compromissos ambientais do governo, o que resta de seus contornos no Brasil tem um efeito inverso. O Consórcio Brasil Verde apresentou-se, na COP 26, como a iniciativa governamental brasileira mais consequente em Glasgow. Articulado por 25 governadores, o consórcio constituiu um fundo único de investimentos para captar recursos de financiamento climático para a redução de emissões e incentivo à geração de energias renováveis. Num dos Estados que o integra, o Rio Grande do Sul, as pretensões eleitorais de seu governador, Eduardo Leite, pré-candidato tucano à Presidência, abortaram o pólo carboquímico que havia sido arquitetado por seu antecessor com vistas à exploração da maior reserva de carvão do país.

Governadores, entidades ambientais, empresários e o que restou da diplomacia brasileira depois de 27 meses de Ernesto Araújo salvaram a participação oficial do país em Glasgow da catástrofe. O Brasil não recuperou a posição que tinha antes, continua com uma imagem muito abalada, mas não saiu com pecha de vilão, diz Ricupero. Subscreveu a declaração das florestas e do metano, a despeito das resistências dos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente.

Nenhum dos dois, porém, será cumprido pela frustração dos avanços esperados no financiamento e no regramento do mercado de crédito de carbono. O texto final não satisfez o mundo em desenvolvimento e levou o dirigente de um arquipélago ameaçado pelo avanço do mar a deixar um apelo dramático: ao afogamento, prefere ser bombardeado.

O quadro, somado ao enfraquecimento dos negociadores brasileiros na era Jair Bolsonaro, levará o país a ter mais dificuldades frente ao estrangulamento crescente de seus mercados advindo, por exemplo, da declaração conjunta entre EUA e China que pode vir a apertar o cerco sobre a agropecuária e a mineração com mecanismos de rastreamento.

A sensação de que se fez muito barulho por pouco cresceu porque no mesmo fim de semana em que a COP 26 se encerrou, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais divulgou dados que mostram o desmatamento de outubro de 2021 como o maior no mês em toda a série histórica. E o presidente Jair Bolsonaro foi à Expo Dubai para dizer a investidores que toda essa conversa ambiental sobre o Brasil é notícia falsa. Por pouco não tomou de empréstimo o resumo da ativista sueca Greta Thunberg sobre a conferência da ONU: blá-blá-blá.

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