quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Merval Pereira - Fora de controle

O Globo

Além dos dados econômicos, há aspectos político-jurídicos que mostram o absurdo representado por essa emenda constitucional que pretende autorizar o governo a dar um calote em parte dos precatórios já autorizados pela Justiça. Os dados mostram que o governo não precisaria furar o teto de gastos se, em vez de ter cedido às pressões políticas para a reeleição de Bolsonaro, realocasse despesas com, por exemplo, uma reforma administrativa para enxugar um pouco a máquina pública e obter a verba necessária a instituir o Auxílio Brasil.

As “emendas do relator” e os fundos eleitorais milionários são despesas de que os políticos, especialmente os do Centrão, também não abrem mão, criando uma falsa situação de calamidade financeira para fazer com que a sociedade engula decisões desnecessárias. Furar o teto de gastos, um compromisso assumido na Constituição no governo Michel Temer, que coincidia com um compromisso de campanha do ministro da Economia, Paulo Guedes, transformou-se numa “necessidade” inventada.


O mais grave tem a ver com a parte jurídica: colocar na Constituição precedentes como só pagar por ano um percentual dos precatórios que forem expedidos contra a União, autarquias, empresas públicas. Além disso, os juízes ficam impedidos de expedir precatórios depois de transitado em julgado o processo, além desse limite de percentual de gasto por ano.

Descumprir sentença judicial transitada em julgado, a mais sagrada de todas, deveria ser uma decisão grave, não banalizada por interesses eleitoreiros. O que a PEC dos Precatórios, já conhecida como a PEC do Calote, propõe é que, transitada em julgado uma decisão judicial, o governo tenha permissão não apenas “para gastar”, como pediu o ministro Paulo Guedes, mas para não cumpri-la, até que surja na fila a vez do precatório a pagar.

Além de tudo, a PEC viola a independência do Judiciário, a separação dos Poderes. Mais grave: o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 2010 que uma emenda constitucional de 2001 era inconstitucional exatamente porque parcelava os precatórios. Por isso é que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) está afirmando que essa proposta é inconstitucional. Não há a desculpa de que a decisão do STF de 2010 tenha vindo apenas nove anos depois de a emenda ter sido aprovada em 2001. Esse não é um argumento; o errado foi o Supremo ter demorado quase dez anos para decretar a inconstitucionalidade da medida. Embutida nesse comentário está a aceitação de que se aprove uma inconstitucionalidade para que ela seja anulada dez anos depois, com uma dívida acumulada de R$ 1 trilhão, segundo especialistas.

É uma afronta ao Estado de Direito, até mais grave porque o precatório transitado em julgado tem a chancela do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do STF. Não há calamidade financeira, pois o governo está tendo uma recuperação surpreendente da arrecadação, de acordo com a Receita Federal. Os números fiscais do governo central (governo federal, BC e INSS) também apresentaram uma melhora significativa, de acordo com o economista-chefe do BTG Pactual e ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida.

Nos primeiros nove meses de 2020, o déficit primário do governo central havia sido de R$ 677 bilhões (-12,4% do PIB) em decorrência das despesas extras para lidar com a pandemia e perda de arrecadação. No mesmo período deste ano, esse déficit foi reduzido para R$ 82,4 bilhões (-1,3% do PIB), uma melhora de quase R$ 600 bilhões, que deve se manter no fechamento do ano.

Há ainda um detalhe nada sutil na emenda, que deixa clara a vontade de poder gastar mais, e não de ajudar os mais necessitados. Antes corrigido pela inflação registrada em 12 meses até junho do ano anterior ao exercício, o teto de gastos passará a ser atualizado com base no valor realizado até junho do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) relativo ao ano de encaminhamento do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) mais o valor estimado até dezembro deste mesmo ano. Critério com retroatividade ao ano de 2021. O rombo no teto fica contabilmente menor, mas a realidade é outra.

Aprovada na Câmara, a PEC do Calote encontrará resistência no Senado — e chegará ao Supremo Tribunal Federal.

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