domingo, 26 de dezembro de 2021

Hélio Schwartsman: Um animal irracional

Folha de S. Paulo

Para cada avanço do pensamento racional, surgem reações bem pouco racionais, que às vezes triunfam

Há vários modos de ser irracional. Alguns fazem mais sentido do que outros. É conhecida a máxima atribuída ao apologista cristão Tertuliano (c. 160-c. 220), segundo a qual a crença religiosa precisa ser absurda —"Credo quia absurdum", "creio porque é absurdo". Kierkegaard, no século 19, retoma essa tradição, ao postular que a fé é um ato de vontade, que prescinde de provas e considerações racionais.

Nem todos são capazes de aceitar tal nível de abstração. É o caso de Ken Ham, que, na tentativa de conciliar evidências fósseis com uma leitura literal da Bíblia, fundou, no Kentucky, o Museu da Criação. O resultado é risível. Para que a Terra possa ter apenas 6.000 anos, como quer a Bíblia, Ham precisa pôr dinossauros para conviver com humanos. Se tivesse estudado mais filosofia, saberia que não é necessário forjar provas para salvar a religião.

E o caso de Ham e seu museu nem ocupa o topo da irrazão. Esse título provavelmente cabe aos que defendem que a Terra é plana. Seria muito fácil descobrir se essa tese é verdadeira ou falsa. Bastaria ir até a suposta beirada do planeta. Mas os terraplanistas não vão. O que os move não é o amor pela verdade factual, mas a rejeição, política, ao que descrevem como um complô do establishment para impor ideias goela abaixo da população. Se a crença na Terra plana, ao contrário das teses do movimento antivacina, não leva a comportamentos de risco no plano individual, ela tem como corolário uma erosão social ainda mais profunda: não devemos acreditar em nada que as escolas nos ensinam e nossos líderes nos dizem.

Nos parágrafos acima, parafraseei alguns dos "insights" de um dos capítulos do excelente "Irrationality", de Justin E.H. Smith, em que o autor mostra que, para cada avanço do pensamento racional, surgem reações bem pouco racionais, que às vezes triunfam. Não é tanto uma falha de pensamento, mas a própria condição humana.

 

Um comentário:

  1. Já li no Quora gente defendendo o uso das bombas atômicas sobre cidades japonesas como tendo sido "Um bem que os americanos fizeram aos japoneses. Segundo essa pessoa pior foram os samurais que competiam para ver quem cortava mais cabeças com suas espadas. Ou seja tem gente que pensa de um modo ALOPRADO e acha normal. Nosso presidente não nos alertou sobre a possibilidade de virar jacaré quem tomasse vacina? Minha explicação é conhecida. O capitalismo quando era um regime "saudável" era compatível com a democracia liberal. Na sua atual fase de "cadáver insepulto" convive com aloprações, irracionalismo, negacionismo, etc.

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