quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Maria Cristina Fernandes: TCU avança sobre a Selic

Valor Econômico

Pano de fundo da cobrança sobre o Banco Central é transição para 2023

 “Confesso que fiquei surpreso em ver o TCU analisando politica macroeconômica, com toda franqueza, se me permitem”. Foi assim que Arminio Fraga, publicamente e ante o anfitrião, demonstrou sua estranheza com o evento para o qual foi convidado. Corria o seminário promovido pelo Tribunal de Contas da União, sobre a condução da política monetária.

Lá estavam, além de Fraga e do atual presidente do BC, Roberto Campos, três outros ex-presidentes da autarquia (Ilan Goldfajn, Affonso Celso Pastore e Henrique Meirelles) e um ex-diretor (André Lara Resende).

O escopo do seminário foi delineado pelo anfitrião, ministro Bruno Dantas, na abertura. Está em curso uma auditoria para avaliar a atuação do Banco Central no manejo dos instrumentos que lhe foram conferidos pelo chamado “Orçamento de guerra”.

Com a emenda constitucional do primeiro trimestre de 2020, a autarquia recebeu um mandato extraordinário para comprar e vender títulos do Tesouro sem as amarras vigentes em tempos menos calamitosos (“quantitative easing”). No Brasil, porém, ao contrário do que aconteceu com bancos centrais dos EUA, da União Europeia e do Reino Unido, esses instrumentos não foram usados.

O introito de Dantas, porém, abriu as comportas para que a discussão - e a auditoria do TCU - avançasse sobre a atual política monetária e sua intersecção com as políticas fiscal e cambial. O ministro avançou sobre a necessidade de se discutir a coordenação do BC com o Tesouro “para a melhor operacionalização da política monetária, em particular após a autonomia do Banco”.

Depois de Roberto Campos defender sua gestão, Pastore não apenas o respaldou como criticou a inclusão das medidas de flexibilização monetária: “Não havia necessidade, sou extremamente crítico”. O decano dos ex-presidentes foi além. Disse que se as medidas tivessem sido adotadas a inflação hoje seria muito mais alta que 10%.

Na sequência, Lara Resende confirmou os temores que sua presença suscitara entre aqueles que julgaram ter sido convidados para debater com o atual e os ex-presidentes. Seu nome foi sugerido pelos técnicos do TCU depois que outro ex-presidente, Gustavo Franco, cancelou.

Houve quem achasse que tinha caído numa armadilha. Lara Resende elogiou a condução do BC na pandemia, mas não a de hoje. “A atual política monetária transfere, para os detentores de dívida pública, quase 6% do PIB, o equivalente a três vezes o investimento público feito no país nos últimos anos”, concluiu Lara Resende, avançando na constatação de que se promove o “sequestro da governança democrática do orçamento”. Quem respondeu a Lara Resende foi Arminio Fraga: “Não podemos brincar com fogo”.

Estava em pauta o passado e o presente, mas era, principalmente, dos encontros marcados com o futuro que se falava. Trata-se da dúvida sobre como se comportará o BC em dois momentos. O primeiro é aquele decorrente de um presidente que, em sua luta desenfreada pela reeleição, enfie o pé nos gastos para expandir o Auxílio Brasil, anistiar devedores do Fies, aumentar salário do funcionalismo, conceder o vale-gás e um subsídio para minorar o aumento nas tarifas no início de 2022, além do Refis.

A segunda incerteza que pairava sobre aquele debate é o da transição para o futuro governo. O presidente a ser empossado estará sequestrado pelo loteamento do Orçamento, pelas amarras fiscais e pela “herança maldita”. Montará governo e base parlamentar, mas terá o mesmo Roberto Campos de hoje no cumprimento de um mandato de quatro anos.

Ao promover o debate, o TCU, órgão de assessoramento do Legislativo, cumpre a demanda do Congresso ao aprovar o “Orçamento de guerra” para que o Banco Central prestasse contas dos instrumentos que lhe foram conferidos. O rumo da discussão sugere, porém, que o tribunal se projeta para ir além, estendendo seus préstimos ao Executivo.

Não é de hoje que o ativismo da Corte de Contas tem sido questionado. Em novembro, o ministro Augusto Nardes chegou a sugerir a derrubada do teto de gastos por até cinco anos para viabilizar o investimento em infraestrutura. A pretensão acendeu o alerta sobre as funções de um tribunal destinado a fiscalizar a observância das leis orçamentárias e as contas públicas.

A expansão da Corte passou a incomodar até o Supremo. Um ministro do STF ligou para um ministro do TCU para alertar que a resolução que veta a nomeação à Corte de indicados que respondam ação penal por crime doloso contra a administração pública ou ação de improbidade administrativa era inconstitucional.

A resolução praticamente impedia o senador Fernando Bezerra Coelho de assumir a vaga deixada pelo ministro Raimundo Carreiro, indicado para a Embaixada do Brasil em Lisboa. Como o senador perdeu a disputa pela vaga, o embate da inconstitucionalidade não prosseguiu.

A presidente do TCU, Ana Arraes, completa a idade limite para permanência na Corte em julho. Como seu mandato no comando da Corte só termina em novembro, uma das soluções pode vir a ser a antecipação da posse de Bruno Dantas na presidência.

Ministro mais articulado com os Três Poderes em toda a Corte de Contas, frequentemente convocado ao Palácio do Planalto, Dantas ganhará, com a chegada do senador Antonio Anastasia, um rival em seu domínio técnico sobre os temas. Na confecção da PEC do Orçamento de guerra, por exemplo, processo em que Dantas foi consultado, Anastasia se insurgiu contra os poderes de flexibilização monetária incluídos no texto.

Presidente da Câmara quando a PEC foi aprovada, o deputado Rodrigo Maia tem dúvida se o papel cabe ao TCU, mas não que a fiscalização sobre o BC deva aumentar: “Por que a taxa de juro saiu do controle tão rapidamente? A independência do BC pressupõe mais transparência e clareza nas decisões”

Ao verbalizar a reação dos que julgam haver cobrança demais sobre os políticos e de menos sobre as autoridades monetárias encontra eco no ministro que vai presidir o TCU em 2022: “Além das consequências negativas, há um custo político enorme para o Congresso mexer em regras fiscais como o teto de gastos. O BC é uma instituição respeitável, porém não eleita, e cada alteração brusca na Selic gera uma dívida de 6% do PIB. Por isso, precisa garantir que seus processos decisórios sejam transparentes, bem fundamentados e, sobretudo, que atendam ao interesse público”. Já dá pra ter ideia do que vem por aí.

 

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