segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Miguel de Almeida - Como vingança, Bozo escreve sua biografia

O Globo

O Bozo é um tipo informado (pelo Carluxo), esperto (-5%+4%=9%) e ganancioso como um jogador de palitinho em barraca do calçadão. E tem ciúme de homem.

Tomou ódio de João Doria não por causa da CoronaVac. Foi antes. Ao vivo e em cores não conseguiu sequer pagar uma flexão de solo. Doria fez quinze, com toda a técnica (sem suar o botox).

Quanto ao Moro, a discórdia não ocorreu pelas rachadinhas ou por nomeações na Polícia Federal. A carpidura bozofrênica veio à tona com os elogios públicos às gravatas do ex-juiz.

Em duas semanas, as admoestações aumentaram no campo da vaidade. Bozo não é alguém capaz de cultivar veleidades — isso não é coisa de homem. Silas Malafaia pode tingir o cabelo, mas isso lá é um particular dele.

Mas com a idade (e a barriga) despontaram sentimentos como o despeito, a dor de cotovelo, enfim, tornou-se um tipo ínvido — brotou o tal do olho grande. Sim, passou a ser cobiçoso.

Os últimos dias foram brutais para azedar seu ressentimento. Lula ganhou uma biografia escrita por Fernando Morais. “Esse cara, depois de amar Quércia, xingar Gabeira, gamou no ex-operário”, Bozo ouviu de militares próximos.

Até aí, tudo bem. Faz parte do jogo. Mas agora Sergio Moro também escreveu um livro, uma autobiografia! Mesmo que a prosa seja em um estilo Maringá, tipo Norte do Paraná, ou gravata e camisa da mesma cor, isso doeu no capitão.

Lula, Moro (e antes o Ciro), todos contaram suas vidas, ou a parte publicável delas, ou suas visões de mundo. E ele, Bozo? De noite, ajoelhado diante de seu quepe e segurando contra o peito um coturno, num momento só dele, ouviu uma voz, tipo um chamado, vinda de longe, não dentro de sua cabeça, porque isso não é coisa de homem, curiosamente uma voz parecida com a do Augusto Heleno, uma voz que vem de baixo, do rés do chão.

O que ela dizia:

— Jair, reaja! Engraxe esse coturno e escreva você sua biografia — em seguida, ecoou o som de uma corneta, e Bozo se deixou levar pela lembrança do Rin Tin Tin.

— Eu gostava do Cabo Rusty — pensou, queixoso.

Seu corpo foi invadido por um frêmito, algo como uma arcabuzada atravessou sua estrutura psicomilitar. Em seu jeito de quem ouve vozes, gritou: é isso! Isso, isso e mais isso!

Sentiu-se reconfortado, acolchoado, acarinhado com a decisão que caiu sobre ele qual uma ordem do dia. De próprio punho escreveria sua biografia. Ele mesmo. Porque, ao contrário do Lula, tem muito tempo de sobra. Não pediria auxílio a um biógrafo, tampouco a um ghostwriter.

Sabia dessa história porque o sempre linguarudo do Ramos assoprou que o Moro recorrera a um ghostwriter para escrever seu livro.

— Ramos, você sabe, sou supersticioso, não vou recorrer a isso daí porque não dá para ficar cochichando a minha vida a um homem. Só fraquejei uma vez.

Sua autobiografia seria uma resposta ao mundo, capaz de mostrar como um paraquedista fraturado e um militar que não conseguiu deixar de ser tenente (aquelas provas são difíceis…) é capaz de escrever sozinho um livro inteiro. Livro grosso, nada de fininho, isso é coisa de maricas.

Ao sentar-se para perpetrar sua autobiografia, abriu a camisa, desabotoou a bermuda, colocou o pé descalço no tapete e… Estranho… Foi invadido, novamente, por um frêmito, desta vez mais agudo e frio. Se tivesse alma, teria sentido medo. Sabia estar diante de uma tarefa descomunal.

— Por onde começo?

A dúvida o fez levantar da cadeira. Nesse momento, recorreu a uma simpatia irrigada desde sempre: tratou de ficar em posição de sentido diante do teclado do computador. Colocou o quepe, bateu continência, como nos tempos do quartel. Ficou assim por vários minutos, até começar a sentir pontadas na lombar e, felizmente, ser retirado do torpor pelo toque do celular. Era o Heleno. Santo Heleno.

Tratou de contar sua ideia, num rompante, e perguntou:

— Por onde eu começo esse livro?

Heleno, sendo um homem estudado, mais do que ele, afinal chegou a general, aconselhou:

— Comece pelo título, meu presidente.

Claro, por que não havia pensado nisso antes? Ainda bem que possuía auxiliares de estatura e farda passada.

Voltou ao computador. Tamborilou os dedos, mordiscou os lábios, soltou outro botão da bermuda, afrouxou a barriga. De um jato só, tal uma anunciação, escreveu o que lhe soou como o título de uma futura obra-prima capaz de humilhar Moro e Lula:

— Poeira em alto-mar.

Acrescentou um subtítulo:

— De cabo a rabo, baseado em fatos reais.

 

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