domingo, 12 de dezembro de 2021

Morre o símbolo maior da Portela e do samba

Líder da Velha Guarda da Portela e personagem único da escola teve oito décadas de dedicação à música

João Máximo / O Globo

Monarco nasceu, cresceu e passou toda a vida no meio do samba. De menino a desfilar no bloco Primavera a “puxador de corda”, figurante, compositor, cantor, diretor de harmonia, agregador e personagem único na história da Portela, a mais vitoriosa das escolas cariocas, foram oito décadas de íntima, constante e apaixonada dedicação ao samba.

Nascido no subúrbio de Cavalcanti, em 17 de agosto de 1933, ganhou em criança o apelido que o acompanharia por toda a vida. Passou parte da infância em Nova Iguaçu e mudou-se para Oswaldo Cruz, onde, atraído pelo samba, descobriu a Portela. Tinha então 16 anos. Embora seu primeiro samba tenha sido feito aos 12, só então sua carreira de compositor começou. Segundo dizia, guiado pela arte da ala dos compositores, à frente da qual brilhava Paulo da Portela.

Paulo foi o primeiro ídolo de Monarco. Mas o convívio entre os dois durou pouco, pois Paulo trocou a Portela pela Lira do Amor, de Bento Ribeiro, inconformado com a atitude do portelense Manuel Bambambã ao proibir que dois ilustres mangueirenses, Cartola e Heitor dos Prazeres, visitassem a Portela.

Com isso, o samba que Monarco queria ter feito com Paulo da Portela não aconteceu. Ou melhor, aconteceu pela metade. E postumamente. Para uma primeira parte em que Paulo falava de uma macarronada na casa de um certo Chocolate, Monarco fez a segunda: “... o pessoal da Portela vai cantar partido-alto/vai ter pagode até o dia amanhecer/e os versos de improviso/serão em homenagem a você”. Você, no caso, Chocolate.

O samba só seria gravado, pelo próprio Monarco, em 1976, quando o futuro líder da Velha Guarda dava início, com um atraso reclamado por críticos e historiadores da música popular, sua vida profissional. O samba passava então por um dos muitos renascimentos que se seguiram a cada uma das mortes proclamadas em nome da moda do momento.

Até então, e desde que se mudara para Oswaldo Cruz, Monarco vivera de várias ocupações: camelô, feirante, vendedor de peixe, guardador de carro, funcionário faz-tudo da Associação Brasileira de Imprensa, onde escovou muita mesa de bilhar para Villa-Lobos jogar. E onde surpreendeu o presidente Herbert Moses que, ao sair do elevedor ao lado de visitantes de cerimônia, deparou-se com Monarco sambando... com uma vassoura.

Monarco sempre gostou de contar histórias como estas, vividas longe do samba. Fazia-o, porém, de modo só seu: ilustrando cada episódio com um samba que ele mesmo cantava com voz inconfundível. Voz que o jornalista Juarez Barroso, um dos primeiros a escrever sobre as qualidades do guardador de carros do jornal onde trabalhava, definiu como “ampla, áspera, ágil, de extrovertido lamento”, ao que se pode acrescentar que era uma voz densa, sem enfeites, dos melhores cantores negros, sobretudo do samba.

Monarco sabia usar com perfeição seu timbre e sua emissão, embora fizesse tudo espontaneamente, sem adornos técnicos. Em primeiro lugar, cantando seus próprios sambas. Em segundo –– e é pena que não o tenha gravado em disco –– interpretando obras de outros sambistas, perfeitas para seu modo de cantar. Foi ele o primeiro e até agora único a se dedicar à obra de Noel Rosa com os impropriamente chamados “compositores do morro” (Canuto, Manuel Ferreira, Ernani Silva, Lauro dos Santos, Zé Pretinho), nas primeiras parcerias inter-raciais da história do samba. Ismael Silva e Cartola também fazem parte desse grupo de parceiros de Noel, mas não precisaram de Monarco para serem revividos.

Na Portela, sempre teve posição de destaque. A escola jamais desfilou com samba-enredo seu. Não que ele não tentasse. Chegou a mudar-se para a Unidos do Jacarezinho, inconformado por ter seu samba arbitrariamente excluído da disputa para o carnaval de 1967. Mas logo voltou à Portela, onde vários outros sambas seus foram sucessos de quadra, de meio de ano, de ensaios ou mesmo de “esquenta”, como “Passado de glória”, cantado pela escola na área de concentração, minutos antes do desfile: “Teu livro tem tanta página bela/Se eu for falar da Portela, hoje não vou terminar”.

Seu primeiro samba a sair do ineditismo, “Vida de rainha”, gravado em 1956 por Risadinha, tinha primeira parte de Alvaiade e segundo dele, Monarco: “Eu não guardo ódio ou rancor/Só porque nosso amor chegou ao fim/Foi melhor assim.” E seu último disco, “Monarco de todos os tempos”, foi lançado 2018. Segundo o próprio Monarco, “feito num mar de alegrias”, nem por isso deixa de falar de amor que não deu certo, dos temas favoritos do compositor: “A chama do nosso amor, em meu peito já não arde”, diz um dos inéditos do repertório, música e letra de Monarco. O arranjador do disco e parceiro em seis sambas é o filho Mauro Diniz, também compositor e companheiro musical do pai por mais de 40 anos: “Mauro sabe para onde eu vou, conhece os caminhos, descobre o acorde certo, é mais que um parceiro”.

O cantor e o compositor também se destacou como líder. Em especial, da Velha Guarda. Pouco a pouco, os primeiros integrantes do grupo foram desaparecendo. Monarco ficou por último para lembrar que mal tinha chegado aos 40 quando percebeu que a idade realmente pesava na aceitação do sambista pelo pessoal mais jovem da escola. Foi então que juntou seu talento e sua energia a figuras lendárias de sua escola –– Manacéia, Mijinha, Lonato, Ventura, Chico Santana, Casquinha, Alvaiade, Picolino, Argemiro, Colombo, Rufino, Candinho, Waldir 59 –– para com eles criar as raízes do que seria a Velha Guarda da Portela. Ao mesmo tempo, fez-se amigo e, algumas vezes, parceiro de gente mais moça, como Wilson Moreira e Paulinho da Viola, este, materializador e padrinho da guarda que mantinha firme e atuante o velho sambista.

Este líder –– inteligente, elegante, querido por todos –– acabou se tornando exemplo. Todas as grandes escolas de samba da cidade em que Monarco viveu têm hoje a sua Velha Guarda.  

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