quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Zeina Latif - A lei do superendividamento na contramão

O Globo

Medidas para evitar são meritórias, mas a lei representa uma intervenção excessiva no mercado de crédito

Crédito é assunto sério. Trata-se de um importante motor da economia, sendo um dos principais canais de atuação da política monetária do Banco Central sobre a atividade econômica. Não à toa, é elevada a correlação entre a concessão de crédito à pessoa física e o crescimento do PIB.

Além disso, o crédito impacta o bem-estar dos indivíduos ao permitir a antecipação de consumo e o socorro diante de contingências. Por outro lado, excessos precisam ser evitados, pois produzem ciclo econômico mais acidentado e o sofrimento de devedores. Todo cuidado é pouco nas políticas direcionadas ao mercado de crédito.

No Brasil, com frequência ocorrem exageros. Não apenas por taxas de juros artificialmente baixas do BC, mas pela ação dos bancos públicos e do crédito direcionado (com juros regulados, a principal modalidade é o crédito imobiliário). Colhe-se assim inflação, alta dos juros e inadimplência.

Ao longo do ano passado, a inadimplência da pessoa física recuou, apesar da escalada do desemprego. A razão foi a combinação de expressiva injeção de recursos na economia via o auxílio emergencial e a própria expansão do crédito. Em que pesem as boas notícias, é inevitável a leitura de que houve excesso de estímulos governamentais.

O bom momento, em parte artificial, ficou para trás: a inadimplência ensaia elevação; cresce a utilização de linhas emergenciais (como o cheque especial); e o aperto monetário necessário para conter a inflação começa a cobrar seu preço — sobem os juros ao consumidor e há sinais de acomodação na concessão de crédito.

Com o endividamento recorde, o já elevado comprometimento da renda dos indivíduos com o pagamento da dívida deverá seguir em alta, o que poderá alimentar a inadimplência. Acendem-se as luzes amarelas.

O que fazer diante disso? A primeira coisa é não colocar areia nas engrenagens do crédito. Muitas vezes ações bem-intencionadas acabam se mostrando contraproducentes. É o caso da lei do superendividamento, em vigor desde julho.

A lei estabelece que as instituições financeiras precisarão condicionar a concessão de crédito à preservação de uma renda mínima para a pessoa cobrir suas despesas básicas, sem comprometer o orçamento com pagamento do serviço da dívida.

No caso de renegociação, vale o mesmo princípio: o acordo precisa preservar esse mínimo existencial, a ser regulamentado.

Medidas para evitar superendividamento são meritórias, e as análises de crédito dos bancos caminham para isso, o que depende da disponibilidade de informações dos clientes — foi a intenção da lei do cadastro positivo. Os clientes, por sua vez, precisam ter acesso transparente às informações do contrato — o que é previsto nesta lei.

Ao Estado cabe eliminar problemas de falta informação de lado a lado e coibir abusos.

No entanto, a lei representa uma intervenção excessiva no mercado de crédito. Há um caráter até paternalista em regular o grau de endividamento dos indivíduos, o que prejudica o amadurecimento financeiro. Além disso, sua implementação poderá ser um pesadelo.

A dificuldade começa pela definição do mínimo existencial. Trata-se de uma tarefa inglória, especialmente em um país com ciclo econômico acidentado e elevada informalidade. Esse mínimo poderá sofrer grandes oscilações ao longo do tempo, podendo abrir margem para judicialização.

A lei poderá alimentar comportamentos oportunistas, com indivíduos deixando zelar pela boa gestão de seu endividamento, pois veem maior espaço para uma renegociação adiante, questionando na Justiça a definição do mínimo existencial.

Essa seria uma fonte de insegurança jurídica ou até estímulo à inadimplência, fatores já responsáveis por parcela importante do custo do crédito. Somam-se a isso os custos adicionais associados à análise de crédito.

O resultado, ao final, será a menor oferta de crédito e com juros mais elevados. Os grupos de menor renda serão os mais afetados, frustrando a expectativa de ampliação do mercado de crédito, inclusive pelas fintechs. A lei produz ineficiências e está desalinhada com a agenda do BC e do governo de redução do custo do crédito.

Caberia ao governo gerir bem a economia para evitar ciclos econômicos acidentados, continuar avançando com medidas para reduzir a assimetria de informações no mercado e para reduzir o custo do crédito. Não foi esse o caso, pelo contrário.

 

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