sábado, 30 de janeiro de 2021

Merval Pereira - Só até a beira

- O Globo

Assim como a velhice pode ser considerada uma boa situação levando em conta a alternativa, que é a morte, também o presidente Bolsonaro ter vendido a alma ao Centrão pode ser uma boa alternativa para ele, diante da ameaça do impeachment. Nesse primeiro momento, a simbologia da provável vitória dos dois candidatos que apoia, na Câmara Arthur Lira, e Rodrigo Pacheco no Senado,  indica que Bolsonaro está dono da situação.

Negociou verbas, nomeações, prometeu cargos, está estudando uma reforma ministerial para o Centrão. Um dos atingidos pode até mesmo ser o General Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, que vem fazendo a negociação política do Palácio do Planalto.

O Centrão está de olho em ministérios com poder político, como também o Gabinete Civil, ocupado por outro General, Braga Neto. Mas querem outros ministérios estratégicos, como o da Cidadania, que coordena o Bolsa Família e o provável novo auxílio emergencial, e o da Indústria e Comércio, que seria recriado, desmontando o espírito do ministério da Economia, onde Paulo Guedes centraliza as ações econômicas.

Se Guedes engolir mais essa, é previsível que venha a enfrentar desafios à sua orientação, como já acontece com Rogério Marinho no ministério do Desenvolvimento Regional. Mas como se trata do Centrão, não se pode dizer que o presidente da República estará permanentemente blindado, protegido. Além de ter a goela grande, que vai exigir do governo mais e mais vantagens à medida que a situação política piore, há a corrida presidencial que já começará a se delinear  a partir segundo semestre.

Ascânio Seleme - Bolsonaro corrupto

- O Globo

O capitão, que foi eleito prometendo varrer a corrupção de Brasília, montou ele próprio um esquema para se defender e proteger as falcatruas de seus filhos e aliados

Já se falou quase tudo do governo de Jair Bolsonaro. Da sua índole intolerante e antidemocrática, da sua beligerância permanente, das baixarias que produz em escala industrial, dos seus inúmeros crimes de responsabilidade, da sua fraqueza moral, dos atentados que comete contra a vida humana no tratamento que dispensa à pandemia do coronavírus. Agora, pode-se também afirmar que esse governo é corrupto. O capitão, que foi eleito prometendo varrer a corrupção de Brasília, montou ele próprio um esquema para se defender e proteger as falcatruas de seus filhos e aliados.

São várias as evidências desse esquema ao redor do presidente. Bolsonaro controla tanto a Procuradoria-Geral da República quanto a Polícia Federal com absoluto rigor. Apesar de manter a aparência de independência, Augusto Aras e Rolando Alexandre de Souza fazem o que for preciso para não desagradar ao presidente. Outras instituições do Estado, além da PF, são usadas sem constrangimento. Tanto o Ministério da Justiça quanto a Advocacia- Geral da União foram instrumentalizadas por Bolsonaro para defender ele mesmo, os seus três zeros e a sua turma.

Com o centrão no comando da pauta do governo, o que teremos até o desfecho deste lamentável mandato será apenas mais um governo corrupto. Sabe-se desde já que na Câmara Bolsonaro vai comer pelas mãos de Arthur Lira (corrupção ativa, lavagem de dinheiro, violência doméstica) e seus parceiros. Lira deve ganhar a presidência da Casa, mas mesmo que perca, será o guia do capitão naquele plenário. No Senado, com Rodrigo Pacheco ocorrerá o mesmo. Como noticiou o Estadão na quinta-feira, o deputado já anunciou que, sendo eleito, vai torpedear CPIs contra o Planalto. Duas já estão na sua mira, a das Fake News e a da Saúde. E o senador avisou que não gosta de CPIs. Oras.

O governo vai voar em céu de brigadeiro e só sentirá turbulência se não soltar lastro toda vez que for exigido pelos aliados gulosos. Vai precisar se livrar de muito peso, é bom que se diga. Já sinalizou inclusive que pode criar novos ministérios para abrigar a turminha. Bolsonaro vai fazer concessões, nenhuma dúvida, mas não terá sequer uma agenda que consiga pelo menos balancear possíveis estragos que vierem a ser feitos por larápios. Como se viu na demissão do presidente da Eletrobrás, nem a agenda liberal sobreviveu a dois anos de governo. Fora o escancaramento na liberação de armas e munições, a pauta conservadora também não anda, porque a turma não é tão besta assim. O que vai sobrar é o velho toma-lá-dá-cá.

Míriam Leitão - Ação deliberada de espalhar vírus

- O Globo

Crime de epidemia. Essa é a acusação feita a Jair Bolsonaro na representação encaminhada à Procuradoria-Geral da República para que ele ofereça denúncia contra o presidente. “Da mesma forma que alguém que agrave uma lesão existente responde por lesão corporal, presidente que intensifica a epidemia existente responde por esse crime. Jair Bolsonaro sempre soube das consequências de suas condutas, mas resolveu correr o risco.”

Esse crime é previsto no artigo 267 do Código Penal. “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” e a punição é prisão de 10 a 15 anos, podendo agravar-se a pena se houver morte. Torna-se então crime hediondo.

Houve outras ações às quais essa representação se refere e que apontaram vários artigos do Código Penal que ele teria infringido, como o 132, que é pôr em perigo a vida ou a saúde de outrem.

O grupo de procuradores aposentados — alguns exerceram até recentemente postos elevados no Ministério Público — e um desembargador que entrou com a ação apoiou-se em pesquisa. Recentemente publicado, o estudo faz uma linha do tempo dos atos e palavras do presidente da República nesta pandemia, para assim mostrar que houve uma ação deliberada do presidente de contaminar o máximo de pessoas, na suposição de que assim se atingiria a tal “imunidade de rebanho”.

Oscar Vilhena Vieira - A troca da guarda

- Folha de S. Paulo

País ameaça dar mais um passo atrás com eleição no Congresso

Caso se confirme a eleição dos candidatos apoiados pelo governo para a presidência das duas casas do Congresso Nacional, o Brasil estará dando mais um perigoso passo no processo de regressão democrática em que ingressou com as eleições de 2018.

Conforme a elegante formulação do ex-ministro Carlos Ayres Britto: “impedir que um governante subjetivamente autoritário possa emplacar um governo objetivamente autoritário” é uma das funções fundamentais de um regime democrático e, portanto, uma tarefa essencial de instituições como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Com a ascensão de populistas autoritários em diversas partes do mundo, inúmeros regimes democráticos têm sido submetidos a um dramático teste de resiliência. Muitos, como demonstram as experiências da Venezuela, da Rússia, da Hungria, da Índia ou da Turquia, não têm sobrevivido aos ataques de populistas e autoritários que, por meio da erosão e do vandalismo institucional, pavimentam o processo de subversão da democracia liberal.

Demétrio Magnoli – O oxigênio do impeachment

- Folha de S. Paulo

Remoção de presidentes catastróficos é derradeira ferramenta de defesa da democracia

Jair Bolsonaro comete crimes de responsabilidade diversos desde que subiu a rampa do Planalto. Dezenas de pedidos de impeachment protocolados na Câmara ainda aguardam encaminhamento, pois Rodrigo Maia sabe que o destino do presidente não será decidido no tabuleiro das leis, mas no da política. A tragédia de Manaus marca uma reviravolta no cenário: depois das mortes por asfixia, o impeachment transitou do éter dos sonhos para a esfera das possibilidades.

A histeria do impeachment é, hoje, a maior ameaça ao impeachment. O Congresso não impedirá o presidente pelo chiclete ou pelo leite condensado. Os escândalos culinários provavelmente indicam um rastro de esquemas corruptos ligados a superfaturamentos, fornecedores fantasmas e lavagem de dinheiro. Contudo, a investigação do labirinto demandaria meses, obscurecendo o crime maior que tem o potencial de abreviar o pesadelo nacional.

Manaus é a prova de que já não dispomos de um governo funcional. Nos países modernos, retirantes não perecem de inanição na beira da estradas, não porque a miséria foi extirpada mas porque o Estado é capaz de mobilizar meios emergenciais para evitar o desenlace fatal. As mortes por falta da cilindros de oxigênio nos remetem a um passado mais ou menos distante, quando famélicos desabavam, exaustos e desamparados, fugindo das secas nordestinas. Na época, faltavam-nos aviões, helicópteros, estradas, caminhões e recursos financeiros. Hoje, tudo isso existe: o que falta é governo.

Cristina Serra - Bolsonaro e a PQP

- Folha de S. Paulo

Seus ataques ao jornalismo não podem ser naturalizados.

"Previsão do tempo: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras". Com essa previsão do tempo, publicada na primeira página do Jornal do Brasil em 14 de dezembro de 1968, o jornalista Alberto Dines (1932-2018) tentava driblar a censura para noticiar o AI-5, que deu poderes de exceção aos generais para reprimir opositores da ditadura.

Naqueles dias, atitudes como a de Dines poderiam resultar em prisão, tortura e morte. Transposta para o Brasil hoje e guardadas as diferenças históricas, a alegoria meteorológica é de assombrosa atualidade. Sob Bolsonaro, doentes morrem por falta de ar. As instituições sufocam. Ele e sua súcia de bandoleiros semeiam tormentas toda vez que ameaçam com golpe.

Escumalha da ditadura, Bolsonaro, se pudesse, mandaria todos os jornalistas para a "ponta da praia". Nesta semana, contrariado com uma publicação, o boca-suja do Planalto despejou seu vocabulário de espelunca contra a imprensa, mais uma vez. Aos gritos, o presidente-sem-decoro da República mandou o jornalismo brasileiro para a pqp e que os jornalistas enfiassem latas de leite condensado "no rabo".

Hélio Schwartsman - O papel dos clássicos

- Folha de S. Paulo

Entre as missões da escola está a de produzir um conjunto de referências que sejam partilhadas por quase todos

A escola deve cobrar a leitura dos clássicos da literatura? O argumento contrário, apresentado pelo youtuber Felipe Neto, reza que forçar jovens a enfrentar obras para as quais ainda não estão intelectualmente preparados —e ele citou Álvares de Azevedo e Machado de Assis— apenas os faz desgostar da literatura.

Não acho que esse seja o melhor ângulo para abordar a questão. Aqui, eu sou um pouco fatalista. Há pessoas que gostam de ler e há as que não gostam. O que define isso é uma complexa combinação de genes e estímulos ambientais nos primeiros anos de vida. Se a meta é formar um público leitor, isso precisa ser trabalhado bem antes do ensino médio ou mesmo do fundamental 2.

De qualquer modo, a escola precisa definir conteúdos concretos para as diferentes disciplinas que ministra. Em literatura, pode ser Machado ou um romance açucarado com pitadas de sexo e muita ação. Em tese, tanto faz. Mas reparem que não nos perguntamos se a trigonometria é mais ou menos "divertida" que a análise combinatória nem se as agruras de uma cotangente tiram o gosto da garotada pela matemática.

Ricardo Noblat - 2020, o ano que não acabou. 2022, o ano que já começou

- Blog do Noblat / Veja

2021, o ano que não foi

Nada sairá caro para Jair Bolsonaro se ele conseguir realizar daqui a um ano seu intento de se reeleger. É isso que o move desde que foi admitido pela primeira vez no imóvel mais cobiçado do país, o monumental e nada acolhedor Palácio da Alvorada, e passou a despachar no terceiro andar do Palácio do Planalto.

Liberar mais de 4 bilhões de reais para que deputados federais e senadores votem em seus candidatos às presidências da Câmara e do Senado? Bobagem! Sai na urina. E não sai do bolso dele, sairá indiretamente do nosso que pagamos impostos. Recriar ministérios que extinguiu para acomodar nomes do Centrão?

Quem ficará chocado com isso é porque não votou nele – ou votou, arrependeu-se e não votará mais, a não ser que a esquerda tenha chance de voltar ao poder. Bolsonaro quer preservar seu capital inicial – os 30% dos brasileiros que incondicionalmente o apoiam. Se conseguir, uma das vagas do segundo turno será sua.

De Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), os mais cotados para comandar a Câmara e o Senado a partir da próxima segunda-feira, Bolsonaro espera que lhe entreguem algumas coisas prometidas: barrar pedidos de impeachment, facilitar a aprovação de reformas da economia e driblar pautas-bombas.

João Gabriel de Lima - O Canadá e o Brasil na ‘era da precariedade’

- O Estado de S. Paulo

O coronavírus chamou atenção para a importância de uma rede de proteção social permanente

Parte do enredo de As Invasões Bárbaras, filmaço que levou o Oscar de produção estrangeira em 2003, se passa nos corredores de um hospital público do Canadá. O que se vê não combina com um país considerado modelo de bem-estar social: doentes amontoados pelos corredores, atendimento precário, burocracia infinita para agendar procedimentos. O protagonista do filme, Rémy, tem uma doença terminal. Ele só consegue tratamento decente porque seu filho, Sébastien, pode pagar os honorários dos melhores médicos. 

Poucos países são mais diferentes que Canadá e Brasil. Jogamos vôlei na praia, eles brincam com bonecos na neve. Nosso mito musical é Tom Jobim, o gênio da bossa nova; o deles, Glenn Gould, pianista que revolucionou a música clássica. No mundo do coronavírus, no entanto, os dois países têm a pandemia em comum – e precisaram desenhar programas emergenciais a toque de caixa. “O Canadá criou do dia para a noite um seguro-desemprego dos sonhos”, diz o cientista político Ricardo Tranjan, brasileiro radicado em Ottawa, personagem do minipodcast da semana. Tal seguro pode inspirar algo que se estenda a tempos normais – o que seria um saldo positivo da pandemia.

Monica de Bolle* - A política econômica de Guedes e a Covid-19

- Revista Época

O que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da população brasileira neste momento?

 “Quer criar auxílio de novo? Tem de ter muito cuidado, pensar bastante. Se fizer isso, não pode ter aumento automático de verbas para a educação e segurança pública porque a prioridade passou a ser a guerra (contra a Covid). Pega as guerras aí para ver se tinha aumento de salário, se tinha dinheiro para a saúde e educação. Não tem, é dinheiro para a guerra.” Essas palavras são de Paulo Guedes em recente matéria da Folha de S.Paulo.

É bom lembrar que a metáfora da guerra é inadequada para a pandemia, uma crise sanitária com desdobramentos singulares na economia. O ministro deveria saber disto: na guerra, o capitalismo implica a produção intensiva de certos bens. Mas a fala também deixa ver a ideia que Guedes tem do capitalismo. Ela tem relação com um fenômeno que fez Arendt afirmar, sobre o imperialismo em suas Origens do totalitarismo, que “a expansão não era uma fuga apenas para o capital supérfluo. Mais importante do que isso, a expansão protegia os donos do capital contra a ameaça de se manterem, eles próprios, completamente supérfluos e parasitários”. Arendt, tão citada por liberais, era uma crítica da centralidade da economia na política, da política econômica como uma forma de administração da vida. Se cabe alguma analogia entre a pandemia no Brasil e a guerra é que o governo que Guedes integra e ao qual dá racionalidade administra a morte.

Desde o início da pandemia, a política econômica de Guedes contextualiza a epidemia no Brasil e aponta as escolhas que devem ser administradas em tal situação.

Adriana Fernandes - A máquina do Executivo está a serviço de honrar o toma lá dá cá

- O Estado de S. Paulo

Ala política do governo está ocupando espaços dentro do próprio Orçamento, sem que isso necessariamente atenda às prioridades do País

Não faltou estratégia nem plano. Foi arquitetada a ação que a ala política do governo Jair Bolsonaro empreendeu por meses até a abertura do cofre para destinar R$ 3 bilhões para 250 deputados e 35 senadores aplicarem em obras em seus redutos eleitorais.

O dinheiro saiu do Ministério do Desenvolvimento Regional e tem servido como moeda de troca de apoio às candidaturas do Palácio do Planalto nas eleições das mesas da Câmara e do Senado.

Reportagem de Breno Pires e Patrik Camporez, do Estadão, revelou a existência de uma planilha interna de controle de verbas, até então sigilosa, com os nomes dos parlamentares contemplados com os recursos “extras”, que vão além dos que eles já têm direito de indicar. Segue o fio:

A estratégia começou a ser desenhada depois que fracassou a tentativa de criação do Pró-Brasil, o programa do grupo político-militar (capitaneado pelo ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional) para deslanchar investimentos em obras, sobretudo no Nordeste, onde o presidente queria ampliar sua base de apoio nas eleições municipais, de olho na sua reeleição em 2022.

Marinho entrou em choque com o ministro Paulo Guedes, contrário à politica do Pró-Brasil como resposta à crise da covid-19.

Guedes começou a ser fritado pelos desenvolvimentistas do governo e pelo Centrão, mas resistiu com apoio do mercado financeiro.

Paulo Sotero – O Brasil já perdeu dois bondes no governo Biden

- O Estado de S. Paulo

Mas o País é maior do que o governo que tem e isso é reconhecido no exterior

A participação de Raquel Krähenbühl, da Rede Globo, no pool de jornalistas que acompanhou o presidente Joe Biden no dia de sua posse resultou da competência e dedicação da jornalista, a única correspondente internacional incluída no grupo. Mas ela ilustra algo maior, a que me referi em novembro neste espaço: a despeito da devoção subserviente de Jair Bolsonaro a Donald Trump, que levou o Brasil a perder os bondes do combate à pandemia e às mudanças climáticas, Biden não hostilizará o Brasil – embora não faltem motivos para fazê-lo. Isso não significa que a nova administração em Washington terá tempo para um presidente que reafirmou sua devoção ao fracassado ex-líder americano mesmo depois de ele ter desencadeado manobras para invalidar a surra que levou nas urnas de novembro e que culminaram num assalto sem precedentes ao Capitólio, no dia 6 de janeiro, justificando a instauração de um segundo processo de impedimento constitucional – fato inédito na História dos Estados Unidos.

A atrasadíssima carta de congratulações que o presidente do Brasil mandou ao colega americano não vale o papel em que foi impressa e foi recebida como uma manifestação sem significado. As mensagens oriundas do Brasil que contam hoje em Washington são duas, e estão relacionadas com prioridades do governo Biden. A primeira, intensamente negativa, é a desastrosa resposta brasileira à epidemia de covid-19, tragédia que os dois países compartilham por motivos parecidos e levou as autoridades americanas a reimporem as restrições de acesso aos EUA por viajantes oriundos do Brasil, que Trump tinha levantado no apagar das luzes de seu governo. Se for para valer e produzir resultados – ou seja, punições exemplares –, será bem recebida a investigação que o Supremo Tribunal Federal ordenou contra o ministro da Saúde, um general sem qualificação para o cargo que ocupa e que comprovou sua incompetência em logística, supostamente sua especialidade, deixando que faltassem tanques de oxigênio nos hospitais de Manaus.

Marcus Pestana* - A agonia da semana

No Brasil, cada ano parece uma eternidade. Como disse o ex-ministro Pedro Malan, em nosso país “o futuro é duvidoso e até o passado, imprevisível”. E o presente?  É cheio de nuvens carregadas. A pandemia e a crise econômica não dão o menor sinal de arrefecimento.

Há fatalidades e há erros cometidos. Ninguém poderia prever o inesperado ataque do coronavírus. Mas era possível não mergulhar no negacionismo, não apostar em falsas soluções, mobilizar a sociedade para a prevenção, apostar na convergência, preparar rápida ação de imunização, terreno em que o Brasil tem larga experiência. Outra enorme perda de tempo e oportunidades foi a falsa polêmica entre vidas e empregos, saúde versus economia. As duas crises são irmãs gêmeas, faces da mesma moeda. Só haverá retomada econômica com a ampla vacinação da população.

Os desafios para 2021 são enormes: comprar tardiamente insumos farmacêuticos e vacinas num mercado mundial distorcido; vacinar a maioria da população, o que parece que só será possível até o final do ano; oferecer auxílio emergencial aos milhões de desempregados, desalentados e subempregados, e estímulo econômico a milhares de empresas que se encontram à beira do abismo, num quadro de total penúria fiscal e risco de perda do controle sobre a estabilidade econômica.

André Lara Resende - Vale tudo pelo equilíbrio fiscal?

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Verdadeira responsabilidade não é a harmonia orçamentária em todas as circunstâncias e a qualquer custo

A partir da segunda metade dos anos 1990, depois da estabilização da inflação crônica brasileira, passou a haver uma sistemática preocupação de evitar que as contas do setor público saíssem de controle. A preocupação com o descontrole das contas públicas advém da vinculação entre o déficit fiscal e a expansão monetária. Até o fim do século passado, a macroeconomia hegemônica considerava que o descontrole dos gastos públicos e a excessiva expansão da moeda estavam por trás de todo processo inflacionário. Como gato escaldado tem medo de água fria, no Brasil depois da estabilização, a preocupação com o equilíbrio das contas públicas passou a pautar a política macroeconômica.

No momento em que se discute a suspensão do auxílio emergencial à população em nome do equilíbrio fiscal, justamente quando a epidemia de covid recrudesce, é fundamental entender que a verdadeira responsabilidade fiscal não é o equilíbrio orçamentário em todas as circunstâncias e a qualquer custo. Nas atuais circunstâncias, a insistência no equilíbrio fiscal, além de macroeconomicamente equivocada, é moralmente inaceitável. O objetivo deste artigo é examinar mais a fundo as raízes dos equívocos da macroeconomia hegemônica. Apesar de revista, continua pautada pela lógica da moeda metálica. É incapaz de incorporar em seu arcabouço analítico a moeda fiduciária e o crédito sem lastro na poupança prévia.

Macroeconomia revista
A teoria monetária passou por uma profunda revisão a partir da última década do século passado. Quando ficou claro que o instrumento de política dos bancos centrais não é a base monetária, mas sim a taxa de juros, a relação automática entre a moeda e a inflação foi abandonada.

O “quantitative easing”, QE, um inusitado experimento de expansão monetária sem respaldo analítico prévio consolidado, multiplicou o passivo dos bancos centrais por fatores superiores a dez vezes num espaço de poucos meses, sem que houvesse qualquer sinal de pressão inflacionária. Ficou então patente que não há relação entre a expansão da moeda e a inflação. Todas as economias onde o QE foi posto em prática continuaram a flertar com a deflação.

Abandonada na prática a relação de causalidade entre expansão monetária e inflação, por tantas décadas sustentada pela macroeconomia hegemônica, a restrição conceitual imposta à expansão do crédito público foi reformulada como um limite superior para a relação dívida/PIB.

Em 2009, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff2, dois expoentes da macroeconomia hegemônica, publicaram trabalho influente sustentando que o limite a partir do qual a economia se desorganizaria seria 90%. Mesmo sem considerar a totalidade do passivo consolidado do Estado, ou seja, o passivo do Tesouro somado ao do Banco Central, antes mesmo da crise de covid, inúmeros países, entre eles Japão, Itália, Grécia, EUA, já tinham ultrapassado esse nível de endividamento.

A reação coordenada das políticas monetárias e fiscais à pandemia durante 2020 voltou a elevar a relação dívida/PIB em todo o mundo. Apesar dos altos níveis de endividamento público e da abundância de crédito monetário, não há sinais da volta da inflação, nem de que as economias avançadas estejam à beira de uma crise fiscal.

Está claro que não existe um limite fatídico para a relação dívida/PIB, a partir do qual se abriria um “abismo fiscal”, na expressão preferida dos analistas brasileiros, e o país entraria em colapso.

Diante de tão flagrante evidência, os principais macroeconomistas americanos deram uma guinada conceitual. No início de dezembro último, Jason Furman e Lawrence Summers3, renomados professores da Universidade Harvard, argumentaram em favor de uma mudança de paradigma: a relação dívida/PIB, ao contrário do que acreditavam, não é um indicador relevante da sustentabilidade fiscal.

Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, assim como Olivier Blanchard e Kenneth Rogoff, ex-economistas chefes do FMI, concordaram com eles. Como as taxas de juros praticamente nulas não foram capazes de reativar as economias paralisadas pela pandemia, Furman e Summers agora defendem uma política fiscal expansionista, baseada num programa de investimentos públicos.

No Brasil, ao menos por enquanto, a esmagadora maioria dos analistas continua a defender a imperiosa necessidade de equilibrar as contas públicas. Optaram por se dissociar de seus mentores americanos para sustentar seus dogmas. Apelam para a tese da jabuticaba, Brasil é diferente porque o Estado e os políticos não são confiáveis. Sustentam que por aqui o equilíbrio orçamentário é ao mesmo tempo condição necessária para evitar o abismo e condição suficiente para que a economia volte a crescer. Aparentemente, os únicos temas econômicos relevantes são o risco fiscal e as reformas necessárias para garantir o equilíbrio das contas públicas. Tudo mais seria secundário.

O ponto central da tese de Keynes na “Teoria Geral” é que a política monetária precisa ser acompanhada do investimento público para que a economia se recupere. A possibilidade de que, apesar do crédito abundante e dos juros baixos, não haja recuperação do investimento e da atividade econômica não deveria ser novidade.

A possibilidade do que Keynes chamou de uma armadilha da liquidez tem sido efetivamente reivindicada para explicar por que, apesar das taxas de juros muito próximas de zero, as economias contemporâneas continuam estagnadas e sem inflação. No entanto, a solução proposta por Keynes, uma política fiscal expansionista com o aumento do investimento público, continua a ser vista com desconfiança pela grande maioria dos analistas.

Mesmo superado o dogma do equilíbrio fiscal e o fetiche da relação dívida/PIB, a macroeconomia hegemônica continua a não entender que a expansão do crédito prescinde da expansão da poupança. A tese de que a taxa de juros baixa é consequência do excesso de poupança tem origem na análise dos economistas clássicos que precederam Keynes. Segundo os clássicos, a taxa de juros é resultado do equilíbrio entre a oferta e a demanda de fundos para investimento. Conhecida como a teoria dos “loanable funds”, dos fundos disponíveis para empréstimos, foi um dos pontos centrais da crítica de Keynes, para quem a taxa de juros nada tem a ver com a poupança, é determinada no mercado monetário. Para Keynes, a poupança é sobretudo função da renda e investimento do otimismo dos empresários. São ambos pouco sensíveis à taxa de juros. Se não há otimismo e perspectiva de crescimento, a economia pode ficar estagnada, sem investimento, mesmo quando a taxa de juros está baixa e há abundância de crédito.

Sérgio Augusto - O último Silveira

- O Estado de S. Paulo

Poucos colegas me inspiraram tanto respeito e reverente temor quanto o gaúcho Zé

Perdi mais um amigo de covid. Virou rotina. Cismei de contabilizar as perdas que mais intensamente me atingiram nos últimos 10 meses, e só me lembrei de três exceções ao flagelo virótico: Nirlando Beirão, Pete Hamill e Zuza Homem de Mello, abatidos por outras enfermidades. No início da semana, o vírus nos levou José Silveira, um dos últimos moicanos da era de ouro do jornalismo.

Não conheci ninguém que não o admirasse como profissional, e daria para contar nos dedos os que não têm ao menos uma história divertida com ou sobre ele dentro de uma redação ou fora dela. Em todos os jornais por onde andou – Última Hora, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, além do Estadão – muito ensinou até a quem acreditava já saber tudo sobre como fechar uma edição, encontrar o melhor título para uma reportagem, limpar as impurezas de um texto e cortar uma foto para dar mais realce gráfico à primeira página.     

Secretário de redação incomparável, uma de suas mais decantadas proezas – reduzir um artigo de oito laudas de Antonio Houaiss a duas, sem deixar nada de fora – entrou para o folclore do jornalismo, com ajuda suplementar de Paulo Francis, que adorava relembrá-la, até porque achava Houaiss verborrágico e rebuscado além da conta.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

A época da patifaria – Opinião | O Estado de S. Paulo

Além de conspurcar o exercício da Presidência e dar o governo ao Centrão, Bolsonaro pode ressuscitar a oposição destrutiva, liderada pelo lulopetismo, que floresce no caos.

Em abril do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro, durante um dos tantos protestos golpistas que estimulou, esbravejou contra o Congresso: “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás, nós temos um novo Brasil pela frente. Acabou a época da patifaria!”.

Pouco menos de um ano depois, Bolsonaro partiu para a compra explícita de apoio de parlamentares e partidos fisiológicos. Isso nem velha política é, pois no passado, mesmo que a negociação de votos fosse a norma, ainda havia eventualmente algum acordo em torno de projetos em comum. Hoje não mais: o que há é a entrega do governo para a deglutição do Centrão, que se banqueteará de cargos, verbas e poder. Poucas situações representam a época da patifaria como essa.

Repórteres do Estado tiveram acesso a uma planilha de negociação do governo com deputados para angariar apoio à eleição, para as presidências da Câmara e do Senado, dos candidatos apadrinhados pelo presidente Bolsonaro. A reportagem mostra que aquela planilha representa a distribuição de cerca de R$ 3 bilhões para 250 deputados e 35 senadores usarem em obras em seus redutos eleitorais.

Mas esse é seguramente apenas um fragmento da história. Outras fontes garantem que o total de recursos liberados é de cerca de R$ 16,5 bilhões. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, falou em R$ 20 bilhões. Em qualquer dessas contas, o valor destinado aos parlamentares supera, em vários casos, o limite a que cada um deles tem direito a destinar em emendas ao Orçamento.

A reportagem mostra que o gabinete do ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, tornou-se o quartel-general das candidaturas apoiadas por Bolsonaro. Segundo parlamentares ouvidos pelo Estado, o candidato governista à presidência da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), orienta os deputados a ir ao gabinete do ministro Ramos e acompanha todas as etapas do processo, negociando conforme seus interesses e envolvendo seus apadrinhados, que já estão em vários postos importantes do Ministério de Desenvolvimento Regional, pasta de onde sai o dinheiro.

“Aspectos do Novo Radicalismo de Direita”

Theodor W. Adorno. Tradução: Felipe Catalani. Editora Unesp, R$ 32

“Quem não quer falar do capitalismo, deveria calar-se sobre o fascismo.” A frase de Max Horkheimer (1895-1973), do tempo da Segundo Guerra, ainda ressoa nesta análise “adorniana” de um novo radicalismo de direita na Alemanha dos anos 1960. Como isso se explica no seio de uma democracia? Theodor W. Adorno (1903-1969) insiste: tal fenômeno é menos um sinal de loucura ou tolice e mais um sintoma de uma transformação social objetiva em curso. Em 1967 o filósofo dizia: “Os pressupostos dos movimentos fascistas, apesar de seu colapso, ainda perduram socialmente, mesmo se não perduram de forma imediatamente política”. Estava ali o alerta: mesmo com o fim do regime nazista, o que o provocara ainda estava presente.

Poesia – Joaquim Cardozo - Chuva de caju

Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve?
Teresa? Maria?
Entra, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros
e em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada a tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quer te chames Teresa ou Maria.