quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

José Serra* - Novo regime social

- O Estado de S. Paulo

Auxílio emergencial é uma gota no oceano de desigualdade que a pandemia deixará

O governo federal pagou cerca de R$ 300 bilhões a 70 milhões de pessoas, no ano passado, na forma de auxílio emergencial, que simplesmente deixou de existir com a virada do ano. As dificuldades financeiras, infelizmente, continuam tirando o sono de milhares de famílias em nosso país. Conhecendo a situação em que vivem milhões de brasileiros, creio que não nos podemos contentar com auxílio simplesmente emergencial. A parcela de nossos concidadãos destituída de recursos para sobreviver precisa de apoio permanente, o que exige um novo regime social.

O Executivo não se mostra interessado em aprovar o Orçamento e já articula com o Congresso um auxílio emergencial em troca de pequenas medidas de ajuste fiscal. É um erro. Deve-se aprovar o Orçamento, condicionando eventual auxílio emergencial à adoção de uma nova ordem social no País. Basta ouvir a voz dos que sofrem para chegar a essa conclusão.

Mesmo tardiamente, as lideranças políticas no País devem começar a refletir sobre a enorme tristeza que passa pela alma de quem não tem dinheiro para alimentar adequadamente a sua família. Difícil imaginar quão sufocante e angustiante deve ser para as famílias, especialmente para as mães, saber que seus filhos não terão condições de estudar e sonhar com um futuro melhor. Sabemos que a educação é o único instrumento que pode romper o ciclo da pobreza de várias gerações.

A pandemia piorou ainda mais essa situação. Com o vírus à solta, as pessoas perderam renda e empregos. As crianças ficaram fora da escola. Muitas não têm para onde ir e ficam nas ruas.

Nesse contexto, o que se discute em Brasília? A concessão de uma nova rodada de socorro emergencial de, no máximo, seis meses. O benefício, por ser temporário e sem nenhuma vinculação com outras políticas públicas, devolverá as pessoas à situação de pobreza. Todos conhecemos isso e os beneficiários, mais que todos. O auxílio não é mais que um paliativo de curtíssimo prazo. Não oferece perspectiva alguma de mudança em médio e longo prazos, leva essas famílias a viverem em constante estado de tensão, percebendo que as autoridades propõem apenas uma migalha, sem dúvida necessária, mas temporária.

Eugênio Bucci* - Sinais de fissão

- O Estado de S. Paulo

Eles já se fazem notar entre o Planalto e a turma discreta que agora pede mais juros

Inconstitucionalidades já não importam no Brasil. Não vai ser por inconstitucionalidades que Bolsonaro será posto para fora. Basta ver como o presidente da República se compraz em afrontar a Constituição três ou quatro vezes por semana e fica tudo por isso mesmo.

Durante o carnaval, nas praias catarinenses, entre passeios de moto aquática e aglomerações sem máscara, ele declarou que “o certo é tirar de circulação GloboFolha de S.PauloEstadão, O Antagonista”, pois esses órgãos de imprensa “são fábricas de fake news”. Dias depois, no sábado passado, em cerimônia de entrada de novos alunos da escola preparatória de cadetes do Exército, em Campinas, reincidiu: “Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Reações? Nenhuma. O chefe de Estado enxovalha à vontade os pilares da democracia e do Estado de Direito e o País não dá a mínima. Ao contrário, os desaforos presidenciais, como as UTIs superlotadas e os cemitérios com retroescavadeiras, vão se tornando um dado a mais na rotina tormentosa da pandemia. No mais, a vida segue e a morte segue mais ainda. Para que serve a Carta Magna? Para o presidente malhar. Só.

É verdade que o Brasil ainda não descambou em definitivo. O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), bolsonarista de raiz, saiu por aí pregando a volta do AI-5, em meio a ofensas odiosas e ameaçadoras contra os ministros do STF, e colheu alguma consequência. Está na cadeia. Aos que reclamaram de autoritarismo do Supremo, que, por unanimidade, determinou o encarceramento, valeria lembrar o dado mais crucial do episódio: a própria Câmara dos Deputados, por 364 votos contra 130, autorizou a prisão. Em resumo, não foi porque os ministros do Supremo ficaram zangados que o parlamentar fixou residência atrás das grades, mas porque a Câmara dos Deputados, por ampla maioria, considerou que a prisão é justa.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editorias

Mau sinal – Opinião / Folha de S. Paulo

Anulação de provas contra Flávio pelo STJ pode ser devastadora para investigação

Causou justificada apreensão a decisão do Superior Tribunal de Justiça que anulou provas apresentadas por promotores do Rio de Janeiro contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), anunciada na terça-feira (23).

A Quinta Turma do STJ considerou ilegal a quebra de sigilo bancário e fiscal do filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro, determinada numa investigação sobre desvios em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio.

A maioria do colegiado seguiu a opinião do ministro João Otávio de Noronha, deixando isolado o ministro Felix Fischer, relator do caso de Flávio e das ações da Operação Lava Jato no tribunal.

Na visão de Noronha e dos que o acompanharam, o juiz de primeiro grau que autorizou a devassa nas contas do filho do presidente não fundamentou a decisão adequadamente, limitando-se a endossar as razões dos promotores.

A menção pareceu suficiente a Fischer, combinada com o fato de que o juiz ratificara a medida em despacho mais detalhado depois, mas a maioria da turma concluiu que ele o fizera tarde demais.

Os efeitos da decisão do STJ tendem a ser devastadores para o trabalho dos promotores do Rio, que há dois anos investigam o envolvimento de Flávio com o chamado esquema da rachadinha.

O Ministério Público aponta o filho de Bolsonaro como chefe de uma organização que teria desviado R$ 6 milhões dos cofres da Assembleia Legislativa, apropriando-se de parte dos salários de servidores do seu gabinete.

Graças à quebra do sigilo, surgiram evidências de que o senador movimentou grandes quantias em espécie, usando parte dos recursos para custear despesas pessoais e fazer negócios com imóveis.

William Waack - Homem convicto

- O Estado de S. Paulo

No peculiar mundo político de Bolsonaro pululam as conspirações

Jair Bolsonaro é um homem de convicção. Não se trata de convicção sobre princípios de política ou de economia, mas, sim, da convicção trazida pela percepção de que ele, presidente da República, está perdendo instrumentos de poder. Como o de demitir chefes de estatais, ou de exigir deles obediência ao que Bolsonaro considere melhores políticas – incluindo fechamento de agências do Banco do Brasil ou formação de preços de combustíveis

A convicção de Bolsonaro baseia-se na forte crença de que há sempre conspirações em curso para tirá-lo do poder. Esses processos mentais, não importa a opinião médica que se tenha deles, são fatores importantes para se entender a motivação e as decisões do presidente brasileiro, segundo relatos em “off” de pessoas que acompanharam diretamente como chegou a recentes posturas políticas. No caso da Petrobrás, por exemplo, o presidente acha que a conspiração foi armada via aumentos de preços do diesel para irritar os caminhoneiros que, por sua vez, têm a capacidade de paralisar o País e criar o clima de caos social para prejudicá-lo. 

O mesmo ocorreu no caso do Banco do Brasil. O fechamento de agências, entende Bolsonaro, foi urdido com o intuito de prejudicá-lo entre o eleitorado de pequenas cidades e a pressão que elas exercem sobre deputados de várias regiões. Mesmo a aprovação da autonomia do Banco Central (algo que ele defendeu em público durante a campanha) caiu sob a mesma interpretação: Bolsonaro acha que lhe foi retirado um poder efetivo, o de mandar na taxa de juros. 

Adriana Fernandes - Morde e assopra

- O Estado de S. Paulo

Ministro recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos

O presidente Jair Bolsonaro elevou de patamar o jogo de morde e assopra com o ministro da EconomiaPaulo Guedes, após o estopim provocado pela demissão do presidente da Petrobrás, as ameaças de mais intervenção na economia e o impacto de tudo isso no mercado financeiro.

Guedes recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos. Segue, portanto, pressionado pelo Palácio do Planalto, ministros próximos do presidente e pelos aliados no Congresso.

O Ministério da Economia pode até dizer que o Guedes fez do limão uma limonada ao conseguir que o presidente fosse com ele numa caravana até o Congresso para entregar o texto da MP de privatização da Eletrobrás numa estratégia bem encenada que recebeu “aplausos” do mercado financeiro após o “combo” que levou ao tombo das ações da Petrobrás, Eletrobrás, Banco do Brasil, alta de juros, perda de confiança e disparada do dólar.

Esse é um jogo em que ninguém é enganado, muito menos o mercado que passa a mão na cabeça no governo e ajuda a desorganizar as coisas. O Congresso não é lugar de "protocolo" de projetos, em que se tem uma resposta passados X dias úteis. Lá, o governo precisa trabalhar pela aprovação de suas propostas.

Celso Ming - Estratégia populista e falso liberalismo

- O Estado de S. Paulo

A intervenção de Bolsonaro na Petrobrás é mais uma das inúmeras demonstrações de que seu objetivo é ganhar as eleições de 2022

Algumas decisões do presidente Jair Bolsonaro podem passar a impressão de que a estratégia continua sendo de política econômica liberal. Mas é grave engano.

A intervenção desastrada do presidente na Petrobrás produziu enormes estragos. A principal divergência de Bolsonaro com o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, talvez não tenha sido a questão dos preços dos combustíveis nem a política adotada, mas de falta de afinidade visceral, do tipo “não vou com tua cara, e pronto”. Mesmo se fosse por aí, não seria preciso tanta truculência. 

A substituição do presidente da Petrobrás poderia ter sido feita com jeito. Afinal, o mandato de Castello Branco terminaria em março. Se o chefe dos acionistas majoritários quisesse trocar o comando da Petrobrás, como se viu que quis, teria bastado acionar os mecanismos ordinários previstos para isso sem a turbulência que se viu depois.

De todo modo, Bolsonaro parece ter sentido a necessidade de olhar para o outro prato da balança. Primeiramente, tratou de afagar a cabeça do ministro da EconomiaPaulo Guedes, que vinha sendo ignorado. Na terça-feira, trabalhou para dar andamento no projeto de privatização da Eletrobrás – outro item da agenda liberal. 

Maria Cristina Fernandes - Populismo fiscal de Bolsonaro embaralha jogo

- Valor Econômico

Bolsonaro não cairá de podre, é o país que pode apodrecer

Ao mergulhar no populismo dos combustíveis e tarifas, o presidente da República faz uma aposta que não apenas o posiciona no jogo de 2022 como desmonta o daqueles que se apresentam para enfrentá-lo.

Na tentativa de forçar a polarização com o PT, Jair Bolsonaro mexeu-se para abraçar a pauta do adversário. E foi por ele abraçado. A ordem é “não importa a cor do gato, o que importa é que mate o rato”.

Nessa linha, os sindicatos de petroleiros comemoraram a derrubada do ex-presidente da Petrobras, Castello Branco, e alimentam expectativas, correntes também nos meios militares, de que a BR Distribuidora venha a ser reestatizada e a venda de refinarias, suspensa

O tom com o qual Jair Bolsonaro queixou-se publicamente do trabalho remoto de Castello Branco, não se diferencia muito daquele que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem usado, internamente, para se queixar dos dirigentes sindicais que evitam se expor às aglomerações da pandemia.

Se Bolsonaro se move para roubar a bandeira do populismo fiscal, como se diferenciaria do PT? Com seu programa “Armas para Todos” e com uma pauta radicalizada nos costumes, acelerando a volta do Brasil ao estágio pré-civilizatório.

O jogo é um campo minado para todo o resto. Um aumento médio de 30% nos combustíveis em menos de dois meses do ano afeta não apenas a base bolsonarista de caminhoneiros e produtores rurais, mas precarizados de toda ordem que hoje ganham a vida em aplicativos de transporte. É discurso para o campo e a cidade.

Não é à toa que o enfrentamento deste discurso desnorteie a oposição. Abraçar uma política de preços 100% ditada pelo mercado é um suicídio eleitoral. Atacá-la à la Bolsonaro também o é. Uma coisa é endividar o país quando se tem o poder nas mãos de implementar políticas que gerem crescimento capaz de pagar essa dívida.

Ribamar Oliveira - O novo marco fiscal da PEC 186

- Valor Econômico

Governo vai perseguir uma trajetória para a dívida pública

Se o substitutivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, apresentado pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), for aprovado, o teto de gastos da União, instituído pela emenda 95/2016, terá função complementar e poderá, no futuro, ser suavizado. Na verdade, a proposta institui um novo marco fiscal para a União, no qual o governo federal irá perseguir uma trajetória de convergência do montante da dívida pública para um limite definido em lei.

Um modelo semelhante é utilizado pela Suécia. Lá, o governo adota uma política fiscal que tem um limite para a dívida pública bruta, uma meta de resultado nominal e um teto para gastos de base móvel, que pode ser ajustado depois de um determinado período. Tanto o teto como a meta fiscal são fixados para manter a dívida bruta na trajetória pré-definida. Há uma série de outros detalhes que não cabe aqui especificar.

O fato é que os elementos básicos desse modelo estão presentes na PEC 186. O inciso VIII do artigo 163, que está sendo acrescentado na Constituição pela PEC, estabelece que uma lei complementar definirá a trajetória de convergência do montante da dívida com limites especificados em legislação. Não esclarece, no entanto, se o conceito a ser utilizado é o da dívida bruta ou líquida.

Ricardo Noblat - Sobrará para quem merece parte da culpa pelas mortes da Covid

- Blog do Noblat / Veja

Uma tragédia que poderia ter sido mais bem enfrentada se houvesse vontade e competência

Em países onde o sistema de governo é parlamentarista, há muito teria sido apeado do poder o chefe de Estado que sabotou o combate à pandemia da Covid-19, o maior flagelo da humanidade nos últimos 100 anos, celebrou a morte preocupado acima de tudo em salvar a economia e não se empenhou em vacinar a população.

Lembra alguém? Por aqui o sistema de governo é presidencialista. E um presidente só pode ser impedido de completar seu mandato mediante um processo de impeachment. Mais de 60 pedidos repousam no fundo de uma gaveta do presidente da Câmara dos Deputados. Se não andaram antes, agora muito menos.

Enquanto isso, há um ano a ser completado amanhã do primeiro caso de coronavírus no Brasil, o país ultrapassou a pavorosa marca de 250 mil mortes (exatas 250.079) e de 10 milhões de doentes (exatos 10.326.008). O vírus já matou no mundo 2.492.886 pessoas. Aqui, nas últimas 24 horas, 1.433, um novo recorde.

Os Estados Unidos continuam na liderança em número de mortes – 504.738. Em seguida vem o Brasil com cerca de 10% de todas as mortes do planeta. Depois, México, Índia e Reino Unido. São, em média, 49.533 novos casos por dia no Brasil, 9% a mais do que 14 dias atrás. É de 1.129 a média de mortes por dia.

O total de vacinados com a primeira dose corresponde apenas a 2,92% da população brasileira. E com a segunda dose, 0,75%. Nos primeiros 55 dias deste ano, as mortes por Covid no Amazonas (5.357) superam o total das mortes do ano passado naquele Estado. Tem gente ainda morrendo por lá sem oxigênio.

Entre as mais recentes trapalhadas do Ministério da Saúde comandado por um general que é especialista em logística militar, destaca-se a que ocorreu ontem. Era para o Amazonas ter recebido 78 mil novas doses de vacina, e o Amapá 2 mil. Aconteceu justamente o contrário. O erro seria corrigido nesta madrugada.

Luiz Carlos Azedo - Emenda Daniel Silveira

- Correio Braziliense

Arthur Lira busca uma reaproximação com os 130 deputados que votaram contra a prisão de Daniel Silveira, com os quais havia contado para a sua própria eleição

Com 186 assinaturas, a Câmara discute uma emenda constitucional cujo objetivo é proteger os deputados da prisão em flagrante, com novas regras que visam garantir não a sua imunidade parlamentar, mas velhos privilégios. Articulada pelo novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a proposta pode ser chamada de Emenda Daniel Silveira (PSL-RJ), o deputado falastrão de extrema direita preso por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), por desacatar àquela Corte e seus ministros. É muita ironia, porque a prisão do parlamentar foi mantida pelo plenário da Casa por esmagadora maioria: 364 votos a favor, 130 contra e três abstenções.

Lira quer regulamentar o artigo 53, que trata da imunidade parlamentar e da prisão de deputados e senadores. Na prática, a proposta impede que um parlamentar seja afastado do mandato ou preso por ordem de um único ministro da Corte, como aconteceu com Daniel Silveira. Tecnicamente, somente poderá ser preso em flagrante por crime inafiançável (racismo, tráfico, formação de grupos armados e crimes hediondos), mesmo assim, ficará sob os cuidados da Câmara ou do Senado, porque a proposta estabelece que o deputado ou senador, após a lavratura do auto de flagrante, permanecerá sob custódia da respectiva Casa até o pronunciamento definitivo dos seus pares.

Caso mantida a prisão pelo plenário, como aconteceu com Daniel Silveira, o juízo competente deverá promover, em até 24 horas, a audiência de custódia, oportunidade em que poderá relaxar a prisão, conceder a liberdade provisória ou, havendo requerimento do Ministério Público, converter a prisão em flagrante em preventiva ou aplicar medida cautelar, que precisará ser confirmada pelo plenário do Supremo. Autor da proposta, o deputado Celso Sabino (PSDB-PA) propõe que o afastamento ou a perda de mandato de um parlamentar só possa ser decidido em um processo disciplinar da Câmara: “Nem um juiz nem o Supremo Tribunal Federal nem ninguém do Poder Judiciário pode afastar um representante legítimo do povo das suas funções. Representante que foi escolhido pelo poder maior da nação, que é o povo, não pode ter o seu mandato afastado por uma decisão judicial”, disse.

Gabriela Prioli - E a pandemia?


- Folha de S. Paulo

A construção da narrativa que ignora o vírus

Estávamos em março de 2020 quando eu disse que a estratégia de Bolsonaro para (não) lidar com a pandemia seria esperar que as medidas impostas por governadores e prefeitos funcionassem a ponto de garantir que a crise de saúde desse lugar à crise econômica. Aí, poderia dizer que a culpa da miséria vivenciada por muitos brasileiros na ressaca da pandemia era responsabilidade de todos, menos dele, que, embora presidente, havia tido as suas mãos amarradas pelo STF.

Esse discurso começa a degringolar com a atitude tresloucada de se contrapor à vacina. Mesmo quem tem método sucumbe à própria vaidade. Ora, a vacina é a forma que temos hoje de pensar no retorno à normalidade. Esse era, supostamente, o desejo de um presidente que falava contra o isolamento. Por culpa de Bolsonaro, entretanto, não temos vacinas.

E, se não temos vacinas, temos uma segunda onda, que, ao deixar sem ar os pacientes de Manaus, escancarou a incompetência do governo. Temos hoje em São Paulo a maior ocupação de leitos de UTI desde o início da pandemia. A Bahia já tem 80% dos leitos ocupados. No Rio de Janeiro a situação é ainda pior.

Maria Hermínia Tavares* - Não é o que eles dizem

- Folha de A. Paulo

Vinculação de receita é a forma possível de garantir prioridades

Na versão de seu relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), a proposta da emenda emergencial à Constituição, entre várias iniciativas para lidar com o presente aperto fiscal, extingue os pisos obrigatórios do gasto público com saúde e educação, assegurados na Carta de 1988.

A discussão sobre o tema não diz respeito ao reconhecimento das severíssimas limitações daquilo que o governo pode desembolsar sem comprometer sua capacidade política e administrativa ou travar de vez o já trôpego andar da economia. Só os nefelibatas —com ou sem diploma em ciências econômicas— podem imaginar que limites fiscais são perversas invenções do neoliberalismo.

Tampouco se trata de debate sobre liberdade de escolha, em que um imaginário prefeito governaria melhor se pudesse decidir, por conta própria, despender mais com a crescente população idosa do que com escolas de primeiro grau cuja clientela minguou. Só pode achar que esse é o dilema quem se imagina no país de Birgitte Nyborg, a simpática primeira-ministra dinamarquesa da série Borgen, da Netflix.

Não é demais lembrar a maneira pela qual instrumentos tão pesados —toscos, em português claro—, como as vinculações mandatórias, adentraram a Constituição. No texto original, saúde, Previdência e assistência social foram reunidas sob o mesmo princípio do direito universal à seguridade, garantido por um Orçamento único. No percurso da teoria à prática, descobriu-se porém que o cobertor era curto demais: para atender à Previdência, era comum deixar a saúde desassistida --em plena montagem do SUS. Por isso, não por uma perversa maquinação antiliberal, a EC (emenda constitucional) número 29 criou o piso de gasto.

Bruno Boghossian – Sobrevivendo em Brasília

- Folha de S. Paulo

Câmara faria um serviço ao país se modernizasse regras, mas ideia cria brecha para retrocessos

Poucas coisas movimentam tanto o Congresso quanto a força-tarefa que tenta mudar as leis que mexem com a vida política dos parlamentares. A ideia é reformar regras ultrapassadas e conter abusos, mas o esforço abre caminho para perdoar o caixa dois, blindar deputados e livrar prefeitos que fazem barbaridades com dinheiro público.

Logo nas primeiras semanas de atividade, os parlamentares lançaram um grupo de trabalho para reformar a legislação eleitoral. O Congresso faria um bem ao país se criasse regras modernas para a propaganda e o financiamento de campanhas. Os deputados, no entanto, também querem discutir retrocessos que interessam principalmente à sua sobrevivência política.

Voltaram ao debate monstrengos como o distritão, que enfraquece os partidos políticos e facilita a eleição de aventureiros para o Legislativo, e a flexibilização da cláusula de barreira, que impediria o enxugamento do número de siglas nanicas.

Mariliz Pereira Jorge – O guarda da esquina

- Folha de S. Paulo

 Instituições barram ímpetos golpistas do presidente, mas não de seus seguidores

Depois do decreto que pretende flexibilizar o acesso às armas e que só tem o intuito de abastecer milícias bolsonaristas, temos mais um capítulo de “como as democracias morrem”. Um grupo criou uma tal Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil, que nada tem com a OAB, mas com o compromisso de intimidar críticos ao governo.

Por meio de um comunicado nas redes sociais, ameaça processar “todos” que ofenderem Bolsonaro, sua família e integrantes da administração: “vamos derrotar o mal”. O “mal”, como sabemos, é a liberdade de expressão garantida pela Constituição, que dá aos brasileiros o direito de fiscalizar, questionar, desaprovar e esculhambar até o ocupante do cargo mais importante do país.

Vinicius Torres Freire – Sinais de desconfiança final no governo

- Folha de S. Paulo

Autoridades e donos do dinheiro tomam atitudes que mostram descrédito terminal

Governos, prefeitos e empresas querem comprar vacinas. Articulam politicamente as autorizações formais. Em parte, já foram concedidas por decisão do Supremo e ainda podem se tornar lei de iniciativa do Senado, que Jair Bolsonaro já ameaça vetar ao menos parcialmente.

É um sinal óbvio e agora levado às vias de fato, por assim dizer, de que acabou a confiança que poderia restar na capacidade do almoxarifado da Saúde de comprar vacinas a fim de acelerar a imunização.

É apenas um dos sinais de descrédito terminal.

O governo avalizou proposta de emenda à Constituição (PEC) que autoriza a renovação do auxílio emergencial, a criação de um sistema novo de decretação de estado de calamidade nacional e estipula medidas de contenção do aumento de gastos, grosso modo com servidores e outras despesas obrigatórias, além de acabar com o piso de despesa em saúde e educação. Não há medidas de redução de despesa, ressalte-se.

É possível que não passe nada além do auxílio emergencial dessa emenda que nada mais é do que o resto lipoaspirado e amputado de um pacotaço de PECs enviadas pelo governo ao Congresso em 2019.

O governo não tem articulação política. Paulo Guedes acha que pode “colocar granadas no bolso do inimigo”, passar medidas com truques, pegadinhas e “planos infalíveis”. Não vai. Talvez fiquem na PEC as medidas de contenção de despesa que evitem a explosão do teto de gastos ou a paralisia da máquina pública —e olhe lá. Parlamentares já querem deixar também esse assunto para depois, aprovando apenas o auxílio emergencial.

Arthur Koblitz* - PEC emergencial contém golpe fatal no BNDES

- Folha de S. Paulo

Silenciosamente, a gestão de Paulo Guedes cumpre sua missão de destruição do banco

PEC emergencial contém o que pode ser um golpe fatal e final no BNDES.

No seu artigo 4º, inciso 7, a PEC revoga o parágrafo primeiro do artigo 239 da Constituição. O parágrafo revogado estabelece que no mínimo 28% da arrecadação do PIS/Pasep será destinada ao “financiamento de programas de desenvolvimento econômico, por meio do BNDES”.

Até bem recentemente, em 2019, o percentual de repasse era de 40%. Graças a ação decisiva do Congresso Nacional, o percentual foi apenas reduzido, ao invés de ser anulado como gostaria a equipe econômica de Paulo Guedes. Como mostra a PEC emergencial, Guedes continua no encalço do BNDES.

O BNDES aparece na Constituição Federal apenas nesse parágrafo e ele pode ser revogado sem que qualquer discussão de suas consequências seja esboçada: nas justificativas do relator, o BNDES não é sequer mencionado.

Os repasses do FAT são a fonte de financiamento (funding) mais importante para o BNDES. Para entender a gravidade da proposta é preciso compreender o que nunca esteve tão claro: o fim dos repasses constitucionais é o último movimento de uma série que foi planejada para acabar com o BNDES. A arquitetura da destruição foi posta em marcha a partir de 2016. Não há dúvida de que a conjunção dos ataques será fatal.

Míriam Leitão - Por um ajuste sem granadas e jabutis

- O Globo

Ajuste fiscal não pode ser feito com a lógica de “colocar a granada no bolso do inimigo”. Não pode ser uma coleção de jabutis. Nem bodes. Mas é dessa forma que foi preparada a PEC Emergencial relatada pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC). Quem acha que é possível, no momento extremo que vivemos, fragilizar o SUS, acabar com o Fundeb? A PEC faz isso. E, de quebra, o ajuste que está sendo proposto pelo governo Bolsonaro acaba com duas fontes de financiamento da Receita Federal e assim torna mais fraco o órgão que arrecada e combate a sonegação.

A votação no Senado foi adiada. Ainda bem. A ideia original era votar a proposta, cheia de ardis e complexidades, em 48 horas. Seria hoje a votação do relatório apresentado na terça-feira. Neste governo e no meio de uma pandemia, quem sinceramente pode defender o fim das vinculações para a Saúde e Educação? O país quer e precisa de um SUS mais forte. O desafio de reabrir escolas públicas e recuperar o ano letivo perdido torna mais necessário o financiamento educacional. A proposta do governo é acabar com as vinculações nas três esferas administrativas, e para os dois setores. União, estados e municípios não teriam mais que cumprir o piso para educação nem o mínimo para a saúde.

A proposta ataca também a autonomia da Receita Federal, como contou no “Valor” de ontem Maria Cristina Fernandes. Com a supressão de um inciso, deixa de haver a vinculação de impostos para o financiamento das atividades de administração tributária. A vinculação foi introduzida numa Emenda Constitucional, a 42, de 2003, mas, segundo explicação de técnicos que eu ouvi, nem estava sendo usada. Isso porque a maior parte do financiamento da Receita vem do Fundaf, Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento de Atividades de Fiscalização. Ele foi criado pelo decreto lei 1.437 de 1975 e sobreviveu à Constituição de 1988.

Merval Pereira - Os extremos se encontram

- O Globo

O conselheiro da Petrobras Marcelo Mesquita, em entrevista à GloboNews, fez um comentário lateral sobre a crise na estatal, com a tentativa do governo Bolsonaro de controlar os preços dos combustíveis, que se torna fundamental quando se olha o quadro de maneira mais abrangente. Disse ele que “se fosse o PT, nós sabemos que teríamos esse problema há dois anos”, referindo-se à política do governo Dilma Rousseff na mesma direção.

Não é à toa que o PT está defendendo a intervenção do governo, e até mesmo o ex-ministro Aloizio Mercadante elogiou o general Joaquim Silva e Luna como “um militar nacionalista”. Há muitos pontos de contato entre visões de mundo autoritárias. Lula deu uma entrevista recente apoiando Bolsonaro quando ele critica o jornalismo profissional. Os dois se sentem atingidos pelas críticas e denúncias.

Tanto Bolsonaro quanto o PT consideram que o indutor do crescimento nacional é o governo e usam as estatais com tal objetivo, mesmo que já tenha sido provado na prática que o resultado é nulo. Mesquita lembrou que a Petrobras teve que pagar US$ 3 bilhões para encerrar uma ação de investidores internacionais (class action), quando o governo Dilma segurou o preço dos combustíveis com o intuito de conter a inflação.

Noutros governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, houve essa tentativa, frustrada, uma das vezes quando o ex-ministro José Serra era candidato à Presidência em 2002 e queria que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, segurasse os aumentos de combustíveis durante a campanha.

Agora o presidente Bolsonaro anuncia que vai “colocar o dedo” na eletricidade, o que geralmente dá choque nos governantes que tentam. Também a ex-presidente Dilma controlou o preço da eletricidade na canetada, e o resultado foi que, mais adiante, o repasse teve que ser feito de maneira mais acentuada, e até hoje a Eletrobras ainda sofre com o rombo provocado naquele tempo.

Malu Gaspar - O bolsopetismo e a Petrobras

- O Globo

De todas as reações à troca de comando promovida por Jair Bolsonaro na Petrobras, a que deu um nó na cabeça de muita gente foi a da esquerda. Nesse campo, quem não defendeu a medida, pelo menos em parte, se calou. “É um direito de Bolsonaro trocar o presidente da Petrobras”, disse José Dirceu, ex-ministro de Lula e ex-presidente do PT. “Precisamos tomar muito cuidado com o discurso do mercado financeiro, que possui interesses próprios.” Aloizio Mercadante, ex-ministro de Dilma Rousseff, elogiou o escolhido para o cargo, o general Joaquim Silva e Luna: “Até onde eu sei, o general Luna é também um militar nacionalista”. Cobrou que o presidente da República resgate o caráter “estratégico” da estatal para o Brasil, pare a venda de refinarias ao setor privado e retome a política de preços de combustíveis do período Dilma. Ciro Gomes e Fernando Haddad não comentaram diretamente o assunto. Nas redes, defesas do “papel social” da Petrobras e ataques à usura do mercado vinham tanto de esquerdistas como de bolsonaristas. Na reunião do conselho que aprovou a convocação da assembleia para substituir o presidente da empresa, a representante dos funcionários votou com o governo. O que impressiona, no caso, não é essa convergência específica entre o bolsonarismo e a esquerda — que a linguagem das redes sociais costuma carimbar como bolsopetismo (ou, mais recentemente, dilmonarismo). É que, depois de tudo o que vimos na década passada, não conseguimos um consenso mínimo em torno do essencial: o que a sociedade brasileira realmente espera da Petrobras.

Vera Magalhães - Karol Conká, Bolsonaro e o foco da indignação

- O Globo

Desde a edição que tinha o Diogo Alemão e a Siri, sei lá em que ano, não assito mais Big Brother Brasil. Quem me acompanha nas redes sociais sabe que tem poucos temas em que eu não meta a colher de pau, mas pode procurar por lá e não vai ver nenhum pitaco meu sobre as tretas da Karol Conká.

Inclusive apliquei inúmeros filtros para não ser bombardeada pelo assunto, todos eles inúteis diante da recorrência doentia na TL. Parece que a falta de abraço, de festas, de Carnaval levou as pessoas a só se preocuparem com uma coisa. Mas será essa a coisa mais importante para mobilizar a indignação do Brasil e suscitar a formação da tão sonhada e tão utópica frente ampla nacional?

Não, não sou dessas que acham que realities são entretenimento ruim, que quem fala sobre isso é alienado etc. Acho que ali se mostram, mesmo, muitos dos comportamentos que vemos todos os dias em casa, nas famílias, no trabalho, na política, e que essa lupa posta na maneira como as pessoas agem para manipular umas às outras e se dar bem é muito interessante, fonte inesgotável de entretenimento e didática.

Mas não acho que a Karol Conká seja a maior vilã do Brasil, merecedora de 99,17% de rejeição, algo bastante irracional, e alvo preferencial das frustrações da sociedade. Na minha casa, a eliminação dela (que sim, eu estava assistindo, vencida finalmente pelo hype) foi seguida de -- atenção -- FOGOS DE ARTIFÍCIO. Talvez os guardados pelos palmeirenses pela não vinda de mais um Mundial.

Não existe o menor propósito nisso quando se vê que o presidente da República, este sim responsável por decisões de vida e morte para a população, que jurou respeitar a Constituição, que tem o poder de derrubar com uma fala o valor da maior empresa do Brasil, ainda tem entre 33% e 40% de pessoas que dizem que seu governo é ótimo ou bom.

Sob qual aspecto? Por qual métrica? Qual o critério usado?

Cora Rónai - Kruela Kruel e o paradoxo da intolerância

- O Globo

A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar

Esta coluna é, como todas são, como tudo o que não é amanhã é, um eco do passado. São oito da noite de terça-feira, e, se o meteoro não atingiu o planeta entre agora e logo mais, Karol Conká terá sido eliminada do “Big Brother 21” com uma rejeição recorde, ou quase isso, porque afinal bater os 98,76% anteriores, do Nego Di, é difícil até para uma arquivilã de caricatura.

(Sim, foi: 99,17%. Só mesmo eleições na Coreia do Norte atingem esse nível.)

Karol Conká cabe como uma luva na clássica definição que o ministro Luis Roberto Barroso pregou na testa do colega Gilmar Mendes, uma das joias mais perfeitas da História do Brasil: ela é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.

Nem o seu fã-clube aguentou, e desativou a conta que tinha criado para segui-la na casa:

“Nós, como fãs da carreira musical da Karol, decidimos criar esse perfil para informar e acompanhar ela no BBB. Mas, devido a todos os acontecimentos dentro da casa, percebemos que ela na verdade é uma pessoa horrível. Iremos desativar a página e desejamos que ela se f*.”

Pronto, fãs, desejo atendido.

Poesia | Paulo Mendes Campos - Sentimento do tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados

Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados

E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.

As coisas estavam mortas, muito mortas,

Mas a vida tem outras portas, muitas portas.

Na terra, três ossos repousavam

Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.

As lágrimas correndo podiam incomodar

Mas ninguém sabe dizer por que deve passar

Como um afogado entre as correntes do mar.

Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz

Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.

Fizeram muitas vezes minha fotografia

Mas meus pais não souberam impedir

Que o sorriso se mudasse em zombaria

Sempre foi assim: vejo um quarto escuro

Onde só existe a cal de um muro.

Costumo ver nos guindastes do porto

O esqueleto funesto de outro mundo morto

Mas não sei ver coisas mais simples como a água.

Fugi e encontrei a cruz do assassinado

Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,

Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

Meus pássaros caíam sem sentidos.

No olhar do gato passavam muitas horas

Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.

Não sabia que o tempo cava na face

Um caminho escuro, onde a formiga passe

Lutando com a folha.

O tempo é meu disfarce