quinta-feira, 4 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

No Brasil, a crise precedeu a covid – Opinião / O Estado de S. Paulo

O País já estava em crise antes dos primeiros sinais da pandemia do novo coronavírus. A situação era especialmente grave na indústria

O socorro aos pobres funcionou, a ajuda às empresas diminuiu o choque e a economia brasileira, no resumo final, encolheu 4,1% em 2020. Foi o pior desempenho anual na série histórica iniciada em 1996. Mas a perda teria sido bem maior sem os gastos federais para o enfrentamento da crise. Bem mais feio, pelo menos à primeira vista, é o balanço de boa parte do mundo rico. Na zona do euro, onde se encontram potências como Alemanha, França e Itália, o Produto Interno Bruto (PIB) diminuiu 6,7%. No Reino Unido o tombo foi de 9,9%. No Japão, a terceira maior economia do mundo, a perda foi de 4,8%. Mas é preciso ser cauteloso e evitar a imodéstia nas comparações. 

O Brasil fica em posição nada invejável quando se consideram o desemprego, o potencial de crescimento a partir de 2021, o miserável desempenho da economia nos últimos dez anos, o ritmo da vacinação e a ameaça ainda presente da pandemia. A covid-19 é uma variável muito importante em toda projeção econômica, mas o governo federal, rejeitando o exemplo da maior parte do mundo, ainda menospreza o risco do contágio e das mortes.

Merval Pereira - O futuro não chega

- O Globo

A aposta parecia factível em 2003. Se o Brasil crescesse em média 3,6% ao ano, chegaria em 2050 a ser a quinta economia do mundo, ultrapassando a Itália em 2025, a França em 2031, Inglaterra e Alemanha em 2036. Ela constava de estudo da Goldman Sachs que lançou ao mundo a sigla Brics, países que eram vistos como o futuro da economia mundial: Brasil, Índia, Rússia e China.

Mas a projeção não levou em conta peculiaridades brasileiras, como o maior escândalo de corrupção já desvendado no país, quiçá no mundo, uma crise econômica provocada por uma presidente que acabou impedida pelo Congresso de continuar governando, a chegada ao governo de um capitão tresloucado, uma pandemia que mata mais de 1.800 pessoas por dia. Resultado: a economia brasileira teve um crescimento na última década de pífio 0,3% ao ano, com o resultado de 4,1% negativos anunciado ontem pelo IBGE.

Após crescer 4,7%, em média, durante o período de 2004 a 2007 e de se expandir em 5,2% em 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2009, caiu 0,3%. De 1990 a 2003, o crescimento médio foi de 1,8%; de 80 a 2003, 2%. Essa média cresceu um pouco com o resultado dos 8 anos do governo Lula, que teve um crescimento médio de 4% ao ano, mas voltou ao nível de 2% no governo Dilma.

O país já teve também períodos de crescimento sustentado de níveis asiáticos: de 1950 a 1980, média de 7,15%; de 1960 a 1969, média de 6,12%; de 1970 a 1979, de 8,78%. O problema é que já tivemos crescimento médio de 5,3% durante 50 anos, mas ele caiu nos últimos 40 anos, crescendo menos que o PIB mundial. Entre 1981 e 1990, o PIB brasileiro cresceu a mísero 1,55% ao ano. Daí até 2000, o crescimento médio foi de 2,65% ao ano, até 2010 chegou a 3,7%, retomando a performance prevista pela Goldman Sachs.

William Waack - Cada um por si

- O Estado de S. Paulo

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Jorge Zaverucha* - A grande vítima

- O Globo

A grande vítima do imbróglio envolvendo o deputado Daniel Silveira foi a já cambaleante democracia brasileira. Tudo começou com a publicação da entrevista concedida pelo general Villas Bôas ao pesquisador Celso Castro. Nela é reproduzida a ameaça castrense ao STF para que não concedesse habeas corpus a Lula. O general ainda revelou que o tuíte foi discutido com o Alto-Comando do Exército. Ou seja, foi ação institucional. Participaram da elaboração alguns generais que hoje são ministros do governo Bolsonaro. Esse tipo de comportamento não se coaduna com o jogo democrático. Na época, apenas o ministro Celso de Mello reagiu. O ministro Fachin acordou de um sono de três anos e soltou uma nota contra as declarações do general. O ex-comandante do Exército debochou da nota.

O deputado Daniel Silveira decidiu tomar as dores do general e fez um repugnante vídeo, tanto pelo conteúdo golpista como pelos termos chulos e insultuosos contra membros do STF. Quebrou o decoro parlamentar e deveria ser julgado pela própria Câmara de Deputados. Ante o excesso parlamentar, o STF reagiu com outro excesso. Dois erros não fazem um acerto. Passou por cima do artigo 53 da Constituição e baseou-se na Lei de Segurança Nacional (LSN) para deliberar que houve um crime inafiançável. Nas palavras do deputado Marcel van Hattem: “Desta vez, o AI-5 vem do Poder Judiciário, vem do Supremo Tribunal Federal”. O fim justificou o meio. Lembro que a LSN foi criada pelo regime militar para perseguir seus oponentes políticos. O STF, que questionou os termos autoritários do mencionado parlamentar, valeu-se de um “entulho autoritário” que já deveria ter sido abolido. Tal como no Chile, na Argentina e no Uruguai.

Miguel Torres* - Sindicalismo nos novos tempos

- O Globo

A redemocratização brasileira, cujo marco são as eleições de 1985, começou com o fim do AI-5 e a luta pela anistia, em 1978 e 79, e as grandes greves daquele período semearam novas ideias no movimento sindical.

Na esteira daquelas transformações, a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), em agosto de 1981, viu o movimento se dividir em diferentes correntes, e o sonho de criar uma central única fragmentar-se entre radicais, conservadores e demais sindicalistas que, insatisfeitos com a polarização, almejavam uma central mais antenada com os novos tempos.

No artigo “Centrais sindicais: histórico e constitucionalidade”, Nelson A. Jobim e Rodrigo de Oliveira Kaufmann falam da criação das centrais como resultado de “uma mentalidade inovadora” e citam o livro “Um projeto Para o Brasil” (1993) como base da busca desse sindicalismo mais moderno.

Tal livro sistematizava as propostas anunciadas pela incipiente Força Sindical em seu congresso de fundação, no Memorial da América Latina, em São Paulo, perante 1.793 delegados sindicais, em 8 de março de 1991.

A central se firmou com a força dos diversos sindicatos e categorias que a definem e, mesmo naquele período de recessão e hiperinflação, cresceu sob o comando de direções comprometidas com a luta, encabeçadas por meus antecessores, Luiz Antonio de Medeiros e Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, e da atual direção, de que sou presidente com muito orgulho.

Luiz Carlos Azedo - Mortes, recessão e desemprego

- Correio Braziliense

O negativismo de Bolsonaro em relação ao distanciamento social, à eficácia das vacinas e ao uso adequado de máscaras aumenta as dificuldades para combater o vírus

As notícias não são boas, porque a recessão, o desemprego e as mortes por covid-19 avançam. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que talvez não seja compartilhado nem pela maioria de seus seguidores, cujo negacionismo em meio à crise sanitária não chega a ponto de se recusar a tomar uma vacina. Em vez de liderar o combate à pandemia, Bolsonaro ataca governadores e prefeitos que tentam conter sua expansão. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, do ‘fique em casa’. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?” — disse Bolsonaro, ontem, a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília.

Como sempre acontece quando se vê diante de dificuldades, o presidente terceiriza responsabilidades e se faz de vítima: “Para a mídia, o vírus sou eu”. Ontem, o Brasil registrou 1.910 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, um novo recorde desde o início da pandemia, e mais 71.704 novos casos, segundo informou o Ministério da Saúde. O número de óbitos pela doença chegou a 259,2 mil, e o total de casos aumentou para 10,718 milhões. O cenário é de colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) na maioria dos estados. Em Santa Catarina, por exemplo, dezenas de pessoas morreram por falta de UTI; casos graves estão sendo transferidos para o Espírito Santo.

Ricardo Noblat - Mansão de Flávio Bolsonaro vira dor de cabeça para seu pai

- Blog do Noblat / Veja

Rapaz treloso

É estranho que Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) tenha comprado uma mansão em Brasília no valor de 6 milhões de reais se tem, como senador, a custo quase zero, o direito a um amplo apartamento em área nobre de Brasília e mais perto do seu local de trabalho da Praça dos Três Poderes?

Sim, seria estranho se recuarmos no tempo algo como 36 anos. Enquanto durou a ditadura militar de 64, apenas os mais destacados servidores do Estado moravam em casas luxuosas da chamada Península dos Ministros, no Lago Sul da cidade, com direito a todo tipo de mordomia. O acesso ali era controlado.

Havia quadras nas Asas Sul e Norte do Plano Piloto, como ainda há, destinadas a deputados, senadores e ministros de tribunais superiores. Mansões eram para os ricos do Distrito Federal que as construíam, ou para representantes de empresas que atuavam como lobistas, ainda poucos para os padrões atuais.

Ostentar riqueza pegaria mal para um parlamentar, era simplesmente inconcebível. A política ainda não tinha virado um grande negócio capaz de encher os bolsos dos mais ousados. A corrupção existia, embora não fosse admitida nos vastos salões, corredores e gabinetes do Congresso.

Um deputado ou senador comemorava quando conseguia emplacar um afilhado político em algum cargo de escalões inferiores do governo. No máximo, o afilhado retribuía mais adiante indicando fornecedores de serviços públicos que poderiam ajudar seu padrinho a pagar despesas das próximas eleições.

Maria Hermínia Tavares - A farra do centrão

- Folha de S. Paulo

Arthur Lira deve pensar que é um bom momento para passar a sua boiada

Na hora em que a morte é mais rápida que as vacinas, o presidente da Câmara e chefe do centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), decidiu trazer a reforma política de volta à agenda do Congresso.

Talvez imaginando que este seja um bom momento para passar a sua boiada, criou duas comissões destinadas a produzir uma pretensiosa revisão da legislação eleitoral e partidária, com mudanças na forma de escolha dos representantes, na propaganda e financiamento de campanhas e no papel da Justiça Eleitoral.

Assim reassume o seu lugar à mesa de debates o fim do sistema de voto proporcional de lista aberta, que distribui as cadeiras no Legislativo entre as legendas segundo a proporção de votos recebidos por elas, uma a uma, respeitada a preferência do eleitor pelos candidatos que compõem as listas partidárias. Em seu lugar, entraria o "distritão", apelido dado ao sistema que os especialistas denominam, com uma ponta de pedantismo, "voto único não transferível". Nele, as cadeiras nas Câmaras e Assembleias iriam para os mais votados, em seus distritos eleitorais, cujos limites, aqui, coincidiriam com os estados da Federação.

Forma raramente adotada de sistema majoritário, hoje, existe apenas na Jordânia, no Afeganistão e em paragens exóticas como Vanuatu e Ilhas Pitcairn. Seus efeitos mais notórios são limitar a representação das minorias e estimular os partidos a apostar em candidatos com grande potencial de votos: pastores, celebridades de TV e formadores de opinião nas redes sociais.

Mariliz Pereira Jorge - Impeachment ou morte

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado.

Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado. Na terça (2), ofereceu um almoço no Palácio do Planalto a autoridades. Talvez para celebrar o recorde de óbitos em um dia pela Covid-19. "Estava alegre e descontraído", contou o deputado Fabio Ramalho (MDB-MG). Tirou foto do convescote. Só faltou soltar um "foda-se a vida", como já fez uma blogueira, e postar nas redes sociais.

O prato principal foi leitão, embora saibamos que o que Bolsonaro têm servido numa bandeja diariamente é o pescoço do brasileiro. Nesta quarta, o presidente voltou a debochar da catástrofe que vivemos. Disse a apoiadores que a imprensa o considera "o vírus", que os veículos de comunicação criaram "pânico".

O "pânico", eu digo a Bolsonaro, é este: vacinamos menos de 4% das pessoas, as filas nas UTIs, desastre no PIB, intervenção nas estatais, brasileiros mais pobres, ministros fantoches, 260 mil mortes, um país sequestrado por um delinquente.

Gabriela Prioli - A reprise do horror

- Folha de S. Paulo

O abismo entre o que somos e o que gostaríamos de ser

A vida anda difícil para qualquer pessoa que tenha pelo menos um mindinho fincado na realidade. Presos numa reprise macabra de 2020, tudo parece uma consequência de dois problemas: a nossa dessensibilização e a aversão à realidade.

É preciso algum grau de insensibilidade para sobreviver num país como o nosso. Alguns passos nas calçadas das grandes cidades e, mantida a nossa humanidade no seu mais alto grau, choraríamos de desespero. Nossos olhos se acostumaram ao absurdo, mas, em algum momento, nós perdemos o pé: 1.840 mortos num só dia, e uma parte de nós segue fingindo que o problema não é o vírus, mas as medidas de contenção.

O Congresso que se organiza rapidamente para defender os próprios interesses segue omisso nas providências em relação ao maior dos negacionistas: o presidente. Não faço parte do grupo que condena sem possibilidade de perdão quem ajudou a eleger Bolsonaro. Foi preciso fechar os olhos para suas declarações de admiração por torturadores, seu desejo pelo fuzilamento de adversários políticos, seu projeto de Brasil de "matar uns 30 mil", mas, se naquela época era possível dizer que estávamos no campo da retórica, agora temos vítimas reais: mil setecentas e vinte e seis. Um dia.

Bruno Boghossian – 1.840 mortes e o mesmo Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Presidente continuará a fazer estragos enquanto estiver ali

No dia em que o Brasil registrou 1.840 mortes em 24 horas, o presidente da República começou a manhã com seu esporte favorito: dar de ombros para a pandemia. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode viver em pânico”, disse a apoiadores, no Palácio da Alvorada.

O discurso é o mesmo do início da crise do coronavírus. Em março do ano passado, em seu primeiro pronunciamento na TV para falar da doença, Jair Bolsonaro disse que não havia “motivo para pânico”. Nas semanas seguintes, vieram a “gripezinha”, o “e daí?” e o “não sou coveiro”.

O Brasil descobriu cedo o tamanho do estrago que um presidente poderia fazer numa pandemia mortal. Desde o início, Bolsonaro incentivou aglomerações, fez campanhas de desobediência a medidas de proteção, divulgou informações falsas sobre a Covid-19, distribuiu remédios ineficazes contra a doença e atrapalhou a aquisição de vacinas.

Maria Cristina Fernandes - Calamidade Pública S.A.

- Valor Econômico

Bolsonaro faz escola com propostas que se desviam da covid

A publicidade da nova transação imobiliária do senador Flávio Bolsonaro não estava no roteiro com o qual o presidente Jair Bolsonaro se preparava para enfrentar o momento mais dramático da pandemia.

A ideia era não mexer em time que está ganhando, o do presidente, claro, capaz de manter inertes as instituições contra seu desgoverno na pandemia. E repetir a estratégia do ano passado, no recrudescimento da covid-19, quando jogou o verbo e a Polícia Federal pra cima dos governadores.

Desta vez, parecia óbvio que a nova travessura do primogênito dificultaria sua tentativa de demonstrar que o desespero dos governadores vem do desvio de recursos. A nova morada do senador, no entanto, não foi capaz de baixar o tom do presidente. É assim que ele desvia do assunto. Puxando uma briga ruidosa com os governadores.

Encontrou em João Doria o parceiro ideal para a encenação. Sem espaço no seu próprio partido, o governador de São Paulo investe na polarização com o presidente, mimetizando-o. Endurece o isolamento para cativar os insatisfeitos com o bolsonarismo, mas excetua os cultos religiosos para cativar a mesma plateia do presidente.

A entrada dos presidentes da Câmara e do Senado na mediação com os governadores é útil para Bolsonaro porque canaliza parte das insatisfações. Na carona da mediação, amaciou-se a resistência à fila dupla na vacinação. No mesmo projeto do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) com o qual foi reapresentada a prerrogativa de Estados e municípios de comprar vacina, abriga-se a aquisição pelo setor privado depois de esgotada a vacinação de grupos prioritários.

A mediação com os governadores também amplia os aliados com os quais o presidente da Câmara espera contar para forçar o teto de gastos para além do auxílio emergencial.

Ribamar Oliveira - É facultativo, pero no mucho

- Valor Econômico

Estado ou município que não fizer ajuste não terá aval da União

Muitos analistas e mesmo parlamentares reclamaram de um artigo da PEC 186, em votação no Senado ontem, que torna facultativo o acionamento de medidas de ajuste quando as despesas de um Estado ou de um município superarem 95% de suas receitas correntes. A conclusão de muitos é que, se o ajuste é facultativo, nenhum governador ou prefeito vai disparar os gatilhos das medidas, todas impopulares. O artigo pode se tornar, portanto, letra morta.

Há, no entanto, um detalhe que pode ter passado despercebido. A PEC estabelece que, se um Estado ou município estiver com suas despesas correntes superiores a 95% de suas receitas correntes, não poderá receber garantias da União ou de outro ente da federação ou fazer operação de crédito com a União ou outro ente da federação. Estão ressalvados somente os financiamentos destinados a projetos específicos, celebrados na forma de operações típicas das agências financeiras oficiais de fomento.

A proibição vai durar até que todas as medidas de ajuste elencadas na PEC 186 tenham sido adotadas, de acordo com declaração do respectivo Tribunal de Contas. As medidas abrangem proibição de concessão de aumento, reajuste, vantagem ou adequação de remuneração de servidor, criação de cargo ou função, realização de concurso público, alteração de estrutura de carreira, criação de despesa obrigatória e adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação.

Vinicius Torres Freire - PIB foi até melhor do que se esperava, mas Bolsonaro estraga surpresa

- Folha de S. Paulo

Investimento produtivo caiu pouco; mortes de Covid e os dedos do presidente são ameaça para 2021

O resultado do ano seria um desastre histórico certo e óbvio, “recorde”, por causa da epidemia. Mas a economia andou um pouquinho melhor do que o esperado no final do ano horrível de 2020. Um tanto mais impressionante, o investimento caiu pouco –trata-se aqui da despesa em novas construções, casas, instalações produtivas, máquinas, equipamentos etc.

Caso a economia mantivesse o ritmo de produção do último trimestre de 2020 ao longo de todo este 2021, o crescimento seria algo em torno de 3,7% ao final deste ano. Seria uma estagnação, trimestre ante trimestre. Mas, como o trimestre final de 2020 foi muito melhor do que o restante do ano desastroso, na média 2021 seria melhor.

Vai manter o ritmo?

Difícil saber, mas o ano começou fraco: a economia sentiu o fim do auxílio emergencial, mais do que o previsto pelos economistas. A nova onda de morticínio da epidemia já fez estragos no primeiro trimestre e terá efeitos também pelo menos ainda em abril –o setor mais danado da economia em 2020 foi o de serviços, que não vai se recuperar enquanto o vírus estiver livre para matar, com ou sem restrições de movimento. A vacinação é tardia. Se houvesse governo, pois, seria possível crescer mais do que 3,7% e quase recuperar pelo menos o que se perdeu em 2020.

Roberto Macedo* - Prossegue a tragédia do PIB brasileiro

- O Estado de S. Paulo

Quanto a políticas públicas em contrário, confesso meu pessimismo

O relatório do IBGE sobre o produto interno bruto (PIB) do quarto trimestre e do ano de 2020, divulgado ontem, é mais um amontoado de más notícias e outro retrato da tragédia por que passa o PIB brasileiro. Este caiu 4,1% em 2020, principalmente como resultado do impacto da covid-19.

Logo que a covid surgiu, houve previsões de queda próximas de 9% A política econômica governamental moveu-se em sentido contrário, como no auxílio emergencial e no crédito, mas uma queda de 4,1%, mesmo supondo que poderia ter sido pior, é por si mesma muito alta. E lamentável. Aliás, o relatório aponta que foi a pior taxa desde que a série dados foi iniciada em... 1996 (!). E mais: o PIB per capita, ou por habitante, caiu ainda mais, 4,8%, pois a população segue aumentando.

Em retrospecto, em 2020 as taxas trimestrais, relativamente ao trimestre imediatamente anterior, foram de -2,1% no primeiro, -9,2% no segundo, 7,7% no terceiro, e 3,2% no quarto. Esse movimento de descida e subida costuma ser chamado de recuperação em V, mas ele veio com sua haste direita sem voltar à mesma altura da haste esquerda. Assim, fazendo essa altura no último trimestre de 2019 igual a 100, em 2020 o PIB caiu para 89 no ponto mais baixo do V e alcançou 98,8% no alto de sua haste direita com as taxas positivas verificadas nos dois últimos trimestres do ano. Também se pode dizer que o PIB passou por uma recessão no primeiro semestre de 2020, que foi interrompida no segundo, mas sem voltar ao valor que tinha no final de 2019. Além disso, por conta desse V a média do PIB em 2020 ficou bem abaixo da média de 2019, o que levou a essa queda de 4,1%.

Adriana Fernandes – O chefe mandou

- O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro foi um dos principais patrocinadores da proposta de exclusão do programa Bolsa Família do limite do teto de gastos na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do auxílio emergencial.

O chefe mandou. Essa foi a razão pela qual vários senadores governistas passaram a cravar entre terça-feira e ontem a aprovação da medida com a ajuda também de outros senadores, inclusive da oposição, que sempre foram contrários à regra que limita o crescimento das despesas à variação da inflação.

A coluna apurou que o presidente pressionou muito para que a proposta fosse incluída na PEC, enquanto a equipe do seu ministro da EconomiaPaulo Guedes, e o presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, se desdobravam na busca de apoio do mercado financeiro e de congressistas para enterrar a proposta.

A posição de Bolsonaro foi o gatilho que faltava para os senadores embarcarem nesse movimento fura-teto na véspera da votação da PEC.

A empolgação foi grande. Fontes relataram que as propostas para deixar o programa fora do teto variaram entre R$ 35 bilhões (o orçamento do programa previsto para 2021), R$ 60 bilhões até chegar em R$ 150 bilhões para 2021 e 2022.

A meta de déficit das contas do governo de R$ 247,1 bilhões para 2021 teria que subir no mínimo para R$ 282,1 bilhões. Como retratou o economista Caio Megale, da XP, o céu é o limite.

Míriam Leitão - O ano da queda que não terminou

- O Globo

O ano de 2020 terminou melhor do que se temia, o ano de 2021 começou pior do que o esperado. Esse é o resumo dos números de ontem do PIB que mostraram uma recessão de 4,1% no ano, e uma alta de 3,2% no último trimestre. Houve dados que foram aleatórios, como o crescimento de 20% no investimento, mas que subiu principalmente pela importação de plataformas da Petrobras. O cenário de 2021 começou muito mal. A economia do país entra em 21 caindo e se existe alguma esperança é de que melhore no segundo semestre. Dependendo da vacinação.

Há dados realmente positivos, como a força da agricultura, único setor a crescer. A MB Associados acha que o choque positivo do agro foi até pouco captado pelo IBGE. “O crescimento da renda real do setor foi de 9,3%”, diz um relatório da consultoria. Mas, ao mesmo tempo, os números, quando olhados em conjunto, mostram uma economia desencontrada. A indústria cresceu bastante no fim do ano, mas os serviços têm grupos fortemente negativos e são justamente os que empregam mais.

Foi um ano difícil marcado pela crise global do coronavírus, e os erros de uma liderança nefasta no país. O presidente da República foi o pior fator complicador da crise de saúde, e também da economia. Ontem estava de novo dizendo “criaram o pânico”. Mesmo com 1.840 mortos num dia, ele mantém a mesma atitude criminosa que tem tido desde o início.

Entrevista | Arminio Fraga: ‘Não é só uma crise fiscal, há crise política e institucional’

Ex-presidente do BC ressalta que, enquanto não for superada, pandemia continuará sendo um freio para a recuperação da economia

Cassia Almeida – O Globo

RIO - Ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Gávea Investimentos, o economista Arminio Fraga diz que o Brasil passa por uma crise que vai além da área fiscal. Segundo ele, o Brasil é percebido hoje como um país de visão atrasada, que passa ao largo de grandes debates, como meio ambiente e qualidade da democracia.

Arminio diz que nenhum país cortaria o auxílio à população de forma abrupta. Ressaltou que mesmo em uma situação econômica e sanitária não tão negativa, a saída teria seria “suavizada”.

Tivemos a maior recessão desde o Plano Collor. O que nos espera?

O Brasil, na verdade, sofreu dois tombos. Tivemos o de 2014, 2015 e 2016, e agora esse. Olhando o gráfico com os dados trimestrais do PIB, é qualquer coisa de extraordinário: desde 2012, o PIB caiu mais que subiu. A queda do PIB per capita chegou a bater quase 10%. É um sinal muito ruim.

E a pandemia?

É um momento que requer muita reflexão. A economia só vai ter chance de se recuperar quando a pandemia estiver dominada. Há um consenso de que a reação do governo deixou muito a desejar, custando caro em número de vidas e em termos de PIB. Há a visão clara e pacífica de que, enquanto a pandemia não estiver superada, vai funcionar como um freio.

Malu Gaspar - O fator Luiza

- O Globo

"O PSB pode ter uma candidata a presidente da República que é muito interessante, que é a Luiza Trajano’, declarou na semana passada o deputado Luiz Romanelli (PSB-PR) a um blog do site Metrópoles, de Brasília. “Nem sei se eu podia falar isso aqui”, emendou o parlamentar, queimando a largada na articulação de bastidores para convencer a fundadora e dona do Magazine Luiza a entrar na disputa eleitoral de 2022. Há alguns meses, a empresária começou a ser assediada por líderes partidários para participar de composições de chapa para disputa à Presidência. Pelo menos três legendas – PT, PSDB e PSB –, além de movimentos políticos como Agora e Acredito, já enviaram emissários para discutir o assunto com a ela. Nas conversas, por ora, Luiza tem se mantido enigmática e um tanto arredia. Quando não rejeita o convite de cara, hesita. Diz que prefere ajudar o país de outras formas e se exaspera com o fato de as constantes negativas de que vá se candidatar não encerrarem o debate público em torno de seu nome.

Acontece que, na política, nem sempre é possível controlar tudo o que se diz a nosso respeito. Se as especulações não cessam, é porque não falta, tanto no meio político como no empresarial, quem esteja em busca de uma alternativa viável para escapar à reedição da disputa de 2018 entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad (ou Lula). E também porque, vez por outra, o nome de Luiza surge de forma espontânea em pesquisas de opinião encomendadas por partidos e empresas para sondar o humor dos brasileiros sobre a próxima eleição.

Numa das mais recentes, que aterrissou na mesa de uma figura importante do mercado financeiro no início de fevereiro, ela era o terceiro nome mais citado quando se perguntava quem o entrevistado queria ver na Presidência do Brasil. Luiza aparecia com 10,4% das menções, superando Luciano Huck (9,3%), Fernando Haddad (5,6%), João Doria (5,5%) e Sergio Moro (5,2%). Só Lula (26%) e Bolsonaro (24,5%) foram mais lembrados pelos eleitores do que a dona do Magalu. A pesquisa assanhou o empresariado desiludido com o liberalismo cloroquina de Paulo Guedes e levou a uma nova onda de pedidos para que Luiza se candidate.

Cora Rónai - Sem respostas para o futuro

- O Globo

Um dia o futuro vai olhar para nós e perguntar como foi que, a maior crise sanitária de todos os tempos, deixamos na presidência do país um homem que se aliou ao vírus e cortejou a morte

Ando sem estrutura emocional para enfrentar o Twitter. Cada vez que entro passo raiva. Esta semana, por exemplo:

“Onde houver consenso, Bolsonaro estará fora. Vacina salva vidas, Bolsonaro ataca. Máscara previne? Ele tripudia. Isolamento evita o contágio? Bolsonaro vai pra rua. SUS colapsado? Bolsonaro debocha. No curto prazo pode até funcionar para ele manter a base de radicais unida. No longo, é certeza de colapso.”

Isso foi no domingo.

 “Bolsonaro inaugurou o governo do cada um por si. Estados e municípios que se virem e comprem vacina; doentes que se virem pra achar vaga em UTI; investidores que se virem com as intervenções do governo; o país que se vire para vencer a pandemia.”

Isso, anteontem.

Dois ótimos tuítes, que qualquer pessoa sensata compartilharia sem restrições... desde que não soubesse que foram assinados pelo único homem que, durante dois anos, teve o poder real de fazer alguma coisa para livrar o Brasil de Bolsonaro, mas não fez: Rodrigo Maia.

Descobrir quem é Bolsonaro agora é muito pouco e muito tarde, deputado. Há mais de 60 pedidos de impeachment fechados numa gaveta da sua biografia.

Augusto de Franco* - Sinais de envenenamento da democracia

Uma das descobertas mais importantes dos estudos (de pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo) sobre a terceira onda de autocratização em curso é que 70% dos esforços de autocratização são feitos por meios legais (1).

Desde que a terceira onda de autocratização começou em 1994, 75 episódios de aumento de governos autocráticos – períodos de declínio democrático substancial – ocorreram em todo o mundo. A maioria não envolveu violência física. Ou seja, em mais de 52 países os processos de autocratização (ou de assassinato lento da democracia) não rasgaram as constituições (e, pode-se acrescentar, deixaram as instituições funcionando).

As democracias agora são mortas lentamente, como por envenenamento (por arsênico, por exemplo). Isso pode ser feito sem violar as leis, rasgar a Constituição, fechar as instituições (e empastelar a imprensa).

Tanques nas ruas? Nem pensar. Direitos políticos e liberdades civis formais podem permanecer vigendo. Além disso, eleições multipartidárias podem continuar ocorrendo normalmente.

Ah!… mas se tudo isso está funcionando, por que se diz então que as democracias estão sendo mortas? Pois é. Para dar uma resposta a esta pergunta é preciso entender o que é a democracia. Pela visão minimalista de democracia – como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue – a democracia não está ameaçada nesta terceira onda de autocratização. O que, por si só, revela que essa visão – que reduz a democracia ao processo eleitoral – é absurda. E é absurda, antes de qualquer coisa, porque não percebe que as principais ameaças atuais à democracia vêm dos populismos – que amam de paixão as eleições (2).

Todavia, mais de 80% dos nossos representantes políticos e uma parte considerável de nossos analistas, também não conseguem entender como a democracia pode estar sendo derruída sem violação das leis. É a isso que nos referimos quando falamos do nosso déficit de democratas.

Para onde devemos olhar para perceber os sinais de envenenamento que estão matando as democracias lentamente? E que sinais são esses?

Recolocando a questão. Onde estão os sinais de envenenamento (da democracia) quando o corpo (as instituições) ainda acha que está sadio? Ou seja, nos estágios iniciais da “doença”, as instituições não percebem que estão sendo envenenadas.

O Estado de direito não dá conta de identificar os ataques contemporâneos à democracia e de se defender desses ataques. Como eles (esses ataques, que são contínuos ou intermitentes – e não se parecem nada com um putsch de cervejaria) não violam abertamente as leis, então são considerados parte da dinâmica normal da democracia. É como colocar o vigia noturno de uma manufatura para cuidar da segurança da Microsoft.

É por isso que não existem leis contra a falsificação da opinião pública via manipulação das mídias sociais. E não é porque isso seja uma novidade contemporânea (do século 21). Bem antes, já não existiam leis contra o discurso inverídico, contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia e nem contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão suporte.

É justamente nessas falhas estruturais da democracia que devemos procurar os sinais de envenenamento (ou de desconsolidação) da democracia (3).

Apenas com os indicadores atuais de direitos políticos e liberdades civis (usados, por exemplo, pela Freedom House, pela The Economist Intelligence Unit ou mesmo pelo V-Dem) não se consegue captar esses sinais. Até porque eles são fracos nos estágios iniciais do envenenamento. E além de fracos, eles não são visíveis diretamente. As mudanças que vão matar lentamente a democracia são subterrâneas (4).

Poesia | Joaquim Cardozo - Recife Morto

Recife. Pontes e canais.

Alvarengas, açúcar, água rude, água negra.

Torres da tradição desvairadas, aflitas,

Apontam para o abismo negro-azul das estrelas.

Pátio do Paraíso. Praça de São Pedro.

Lages carcomidas, decrépitas calçadas.

Falam baixo na pedra as vozes da alma antiga.

Gotas de som sobre a cidade,

Gritos de metal

Que o silêncio da treva condensa em harmonia.

As horas caem dos relógios do Diário,

Da Faculdade de Direito e do Convento

De São Francisco:

Duas, três, quatro... a alvorada se anuncia.

Agora ao ouvir as horas que as torres apregoam

Vou navegando o mar de sombra das vielas

E o meu olhar penetra o reflexo, o prodígio,

A humilde proteção dos telhados sombrios,

O equilíbrio burguês dos postes e dos mastros,

A ironia curiosa das sacadas.

As janelas das velhas casas negras,

Bocas abertas desdentadas, dizem versos

Para a mudez imbecil dos espaços imóveis.

Vagam fantasmas pelas velhas ruas

Ao passo que em falsete a voz fina do vento

Faz rir os cartazes.

Asas imponderáveis, úmidos véus enormes.

Figuras amplas dilatadas no tempo,

Vultos brancos de aparições estranhas.

Vindos do mar, do céu... sonhos!... evocações!...

A invasão! Caravelas no horizonte!

Holandeses! Vryburg!

Motins. Procissões. Ruído de soldados em marcha.

..................................................................................

Os andaimes parecem patíbulos erguidos.

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Vão pela noite na alva do suplício

Os mártires

Dos grandes sonhos lapidados.

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Duendes!

Manhã vindoura. No ar prenúncio dos sinos.

Recife,

Ao clamor desta hora noturna e mágica,

Vejo-te morto, mutilado, grande,

Pregado à cruz das novas avenidas.

E as mãos longas e verdes

Da madrugada

Te acariciam. (CARDOZO, 2007, p. 161-163)