domingo, 4 de julho de 2021

Fernando Henrique Cardoso - Cuidado, presidente

O Globo / O Estado de S. Paulo

Maior falha de Bolsonaro na compra de vacinas é dar sensação à opinião pública de que não avaliou corretamente o tipo de problema que havia, que era grave

Tentei escapar, mas é quase inevitável falar sobre a CPI e os fatos que levam a ela. Não gosto de personalizar e menos ainda, por motivos óbvios, quando se trata do presidente. Tratarei de não o fazer, embora seja difícil.

O caso parecia banal: uma tentativa de gastar dinheiro público, sem critério. Mas não era. Não só porque há certa irritação no país com relação ao desvio de finalidades no uso do dinheiro dos contribuintes, mas porque, no caso, trata-se de um governo que se jacta de ser cuidadoso nessa matéria (obrigação de qualquer presidente que se preze). E também porque os fatos em tela se dão no âmbito de uma pasta, a da Saúde, diretamente ligada à luta contra a pandemia, a qual torna a vida de cada um de nós arriscada. Portanto, o olhar da opinião pública fica ainda mais atento para tudo o que se passa em seu âmbito e no dos setores do governo a ele ligados.

Não quero dizer que se deva generalizar o que aconteceu, nem deixar de reconhecer o efeito, louvável, de o governo prestar atenção ao que ocorre com os fundos públicos. Não deveria agora desviar o olhar. E não se trata só do presidente, mas do conjunto da administração: o chefe dela paga o preço de erros dos quais sequer toma conhecimento. Quem está na chuva, se molha, como eu me molhei, mesmo não sendo responsável direto por alguns erros...

Por isso mesmo, pasma ver quanta incompetência e descaso na administração de coisas tão importantes como o que ocorre com recursos do Ministério da Saúde. Pior, chega a assustar o pouco caso inicial da autoridade máxima com os eventos que ocorreram naquela pasta. A alegação de desconhecimento pode até ser verdadeira (recordo-me do caso do apagão, quando eu, entusiasmado com a construção de novas hidroelétricas, não me dei conta de outros problemas de distribuição de energia que já atormentavam o povo e terminaram por “balançar o coreto”).

Merval Pereira - Nossos dilemas democráticos

O Globo

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem se mostrado uma barreira firme contra as tentativas de grupos radicais , estimulados pela postura do presidente da República, de ir contra a democracia, mas está desmontando toda a estrutura jurídica de combate à corrupção.

Uma posição vai de encontro à outra, pois não teremos uma democracia enquanto a corrupção for considerada um delito menor, especialmente a corrupção política, que se transformou do dia para a noite em mero crime eleitoral.

A respeito do pedido da Procuradoria Geral da República de abertura de investigação contra Bolsonaro por prevaricação, o Palácio do Planalto soltou uma nota de um cinismo absoluto, na qual diz que o Executivo não se pronuncia sobre outros poderes. Bolsonaro deve se sentir um simples blogueiro, e não um presidente, porque, pela boca dele, a Presidência fala todos os dias.

Bernardo Mello Franco – A pressão aumenta

O Globo

A Procuradoria-Geral da República deixou claro que não tinha a menor intenção de investigar Jair Bolsonaro no rolo da Covaxin. Ainda assim, a abertura de um inquérito por suspeita de prevaricação pode complicar a vida do presidente.

A PGR foi pressionada a agir pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal. Ela rejeitou a desculpa de que seria melhor esperar as conclusões da CPI da Covid, que deve se arrastar até o fim de outubro.

“No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”, escreveu. Agora o espectador será obrigado a entrar em campo, mesmo que a contragosto.

Com a abertura do inquérito, Bolsonaro passa a ser formalmente investigado por prática de crime comum. Isso deve ampliar seu desgaste num momento de queda de popularidade e aumento dos protestos de rua.

O capitão já foi alvo de mais de 120 pedidos de impeachment, mas todos adormecem na gaveta do presidente da Câmara, Arthur Lira. Na quarta, o deputado recebeu um novo “superpedido”, que aponta a prática de 23 crimes de responsabilidade. Numa rápida entrevista, indicou que vai manter as acusações em banho-maria. “Não será feito agora, né? Tem que esperar”, disse.

Eliane Cantanhêde - O tempo, senhor da razão

O Estado de S. Paulo

A questão central para a eleição presidencial de 2022 é se o tempo contará a favor ou contra Bolsonaro e Lula.

O presidente Jair Bolsonaro vai afundando em denúncias e investigações na CPI da Covid, no Supremo, no Ministério Público e na Polícia Federal e passa a conviver com manifestações nas ruas do País e uma lista robusta de pedidos de impeachment. Porém, muita água ainda vai rolar e a questão é se o tempo conta a favor ou contra Bolsonaro.

Para a oposição, cada vez mais ampliada e ativa, Bolsonaro exagerou no seu negacionismo tacanho na pandemia, desdenhou das agora mais de 520 mil mortes, disseminou a ameaça de golpe e se perdeu num caminho sem volta.

Quanto mais o tempo passa e a CPI avança, mais demolidor será o arsenal de notícias e denúncias. A economia, com desemprego desesperador, não vai zerar a conta.

Carlos Melo* - Ruas agora falam em impedimento com naturalidade maior

O Estado de S. Paulo

As ruas falam em impeachment com naturalidade maior que antes. Política é processo, por isso é conveniente que se especule em torno de seus sinais. Observados casos passados, depreende-se que impeachments dependem de cinco condições: insatisfação econômica; fato determinado; forte mobilização popular; fragilidade parlamentar; amplo acordo político envolvendo, inclusive, algum tipo de aquiescência do vice-presidente da República.

O governo bate o bumbo da recuperação econômica, mas são inegáveis os sintomas de mal-estar: desemprego, desalento, milhões desprotegidos, na informalidade, perda de renda com a inflação. Tudo incontestável e não importa se o País, um dia, se recuperará. Política é processo e timing. O governo patina nessa área e o fato é que o “posto Ipiranga” não entrega o que promete.

Já fatos determinados não faltam: além do desproporcional número de vítimas da covid, mais de uma centena de denúncias sustenta um “superpedido” de impeachment. Processos no TCU têm, agora, a companhia de inquérito formalizado na ProcuradoriaGeral da República. Até às cortes internacionais o nome de Jair Bolsonaro foi levado. No mais, a CPI é um manancial de fatos novos.

Lourival Sant'Anna - Democracia e autocracia

O Estado de S. Paulo

China vem criando um modelo de colonização com base na dependência econômica

O Partido Comunista Chinês comemorou na semana passada 100 anos de existência, dos quais, 72 no poder. O centenário coincide com a reinterpretação, por parte de Joe Biden, da natureza do desafio chinês à hegemonia americana, como sendo “a disputa do século entre a autocracia e a democracia”. Um exame isento, porém, revela que as ameaças à democracia vêm das próprias sociedades democráticas, e não de fora.

O rótulo “comunista” perdeu o sentido original, da busca de uma sociedade igualitária. Essa doutrina fracassou em todos os lugares nos quais foi experimentada, incluindo a própria China, produzindo ditaduras, elites burocráticas, economias disfuncionais, atraso e pobreza. A partir da morte de Mao Tsé-tung, em 1976, seu sucessor, Deng Xiaoping, livrou a China dessa armadilha, integrando sua economia ao restante do mundo, e criando o capitalismo de Estado.

Partindo de uma base extremamente pobre, a China tem conseguido desde então gerar nos seus cidadãos o sentimento de que cada geração vive melhor do que a anterior. O ganho no campo econômico não tem como contrapartida uma perda palpável no campo político, porque os chineses nunca gozaram de liberdades democráticas, nem essa é uma exigência cultural. Ao contrário: as raízes confucionistas da cultura chinesa priorizam a hierarquia e a disciplina sobre a liberdade.

Luiz Carlos Azedo - Presidente gay

Correio Braziliense / Estado de Minas

Eduardo Leite se posicionou estrategicamente para dialogar com a esquerda, ocupar um lugar ao centro e confrontar o reacionarismo homofóbico e misógino de Bolsonaro

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), protagonizou, na quinta-feira passada, o fato político mais importante da semana em relação às eleições de 2022, ao assumir que é um “governador gay”, no programa Conversa com Bial, da Rede Globo. O tema da homossexualidade é um tabu nas eleições, principalmente majoritárias, em quase todas as democracias do mundo. Entretanto, nos últimos 20 anos, há exemplo de mandatários gays eleitos na Islândia, na Noruega, na Bélgica, na Irlanda, em Luxemburgo e na Sérvia.

“Eu nunca falei sobre um assunto que eu quero trazer pra ti no programa, que tem a ver com a minha vida privada e que não era um assunto até aqui porque se deveria debater mais o que a gente pode fazer na política, e não exatamente o que a gente é ou deixa de ser. Eu sou um governador gay e não um gay governador, tanto quanto Obama nos Estados Unidos não foi um negro presidente, foi um presidente negro. E tenho orgulho disso”, declarou. Sem citar o nome, o tucano assumiu seu romance com o pediatra capixaba Thalis Bolzan, de 26 anos. “Tô namorando há nove meses. Não é do Rio Grande do Sul, é um médico do Espírito Santo. Tenho enorme admiração e amor por ele”.

Ricardo Noblat - Vacina, impeachment, genocídio e, agora, corrupção animam as ruas

Blog do Noblat / Metrópoles

Como o presidente da República se livrará da suspeita de que prevaricou sem sacrificar os militares envolvidos com a compra de vacinas?

Por que o governo do presidente Jair Bolsonaro emprega tantos militares (quase sete mil), a maioria em lugares antes reservados a civis pelos próprios governos da ditadura de 64?

A justificativa oficial é de que os militares são tão capazes quanto os civis. Pode ser, mas como a comparação dispensa exames para atestar sua veracidade, tome-se isso como mera opinião.

O mais provável é que Bolsonaro militarizou seu governo com a pretensão de tornar-se “imbrochável, imorrível e incomível”, como disse um dia. Acrescente-se: inderrubável.

Como dono de um vocabulário primário e raso, tais expressões, ausentes de ilustres dicionários, são contribuições que ele dá para enriquecer a língua portuguesa.

A quantidade recorde de militares foi a maneira que Bolsonaro encontrou de retribuir o apoio que recebeu deles para eleger-se presidente. Essa história está à espera de ser bem contada.

Bruno Borghossian - Golpismo sem vergonha

Folha de S. Paulo

Presidente não busca urna segura, mas um pretexto para não entregar a faixa em 2022

Jair Bolsonaro dedicou os últimos dias à preparação do golpe que pretende liderar em outubro do ano que vem. Ao longo da semana, ele repetiu suspeitas vazias de fraude nas urnas eletrônicas, insinuou que pode se recusar a deixar o cargo e pediu apoio para um levante caso a esquerda vença a eleição.

O presidente tenta adicionar novos elementos à teoria que serve de base para sua conspiração. Com o objetivo de instigar bolsonaristas mais radicais, ele inventou a existência de um conluio entre partidos políticos e ministros do STF para reabilitar o ex-presidente Lula, fraudar a disputa de 2022 e dar a vitória ao petista.

"Vamos ter problemas no ano que vem. Como está aí, a fraude está escancarada", disse, na quinta (1º). "Tiraram o Lula da cadeia, tornaram ele elegível para ele ser presidente na fraude. E isso não vai acontecer."

Hélio Schwartsman - Todos contra os fatos

- Folha de S. Paulo

Hoje não precisamos de unanimidade, mas só uma elite de políticos, cientistas e outros em postos-chave que estejam de acordo com algo

Tornou-se uma espécie de lugar-comum destes tempos sombrios afirmar que a democracia exige algum tipo de consenso em torno dos fatos. Eu mesmo já escrevi coisas parecidas aqui. Mas será que é isso mesmo? A crer no excelente “The Constitution of Knowledge”, de Jonathan Rauch, o problema é mais complicado.

Rauch começa com a constatação de que não há e provavelmente nunca houve consenso em torno de fatos. É só olhar para os EUA de hoje. Dois terços dos americanos acreditam que anjos e demônios atuam no mundo; 75% creem em fenômenos paranormais; e 20% pensam que o Sol gira em torno da Terra. Num tributo à paranoia, 1/3 julga que o governo age em conluio com a indústria farmacêutica para esconder “curas naturais” que existem para o câncer.

Vinicius Torres Freire - Pessimismo desinformado na vacinação


Folha de S. Paulo

Piora no número de mortes e contaminação já dura quatro meses

lambança de São Paulo na semana retrasada animou avaliações pessimistas desinformadas sobre a vacinação no estado e no Brasil. Haveria menos doses disponíveis, menos doses para o governo paulista e a prefeitura paulistana teria um calendário inexequível, dizia-se. Não é verdade.

O Brasil tem poucas doses por causa da perversidade criminosa de Jair Bolsonaro. Dado esse limite, houve avanço mais veloz em junho. O prognóstico para julho é bom. Os planos de aplicação acelerada da primeira dose, como os de São Paulo ou Rio, podem dar certo. O risco cada vez maior é de que esse plano leve uma rasteira da variante delta (antes dita indiana) e de outras cepas agressivas que se avizinham.

Em junho, o número de doses distribuídas aos estados aumentou 14% em relação a maio. Foi o maior até agora. Os brasileiros recebemos 1,1 milhão de doses por dia em junho (o recorde anterior fora em abril, com 821 mil doses diárias).

Em junho, São Paulo recebeu 21,2% das doses distribuídas pelo país (o estado tem 21,9% da população nacional, na projeção do IBGE, mas isso não é lá muito preciso). Ou seja, distribuição equânime.

Se mantiver o ritmo de vacinação diária do início de junho até agora, o estado de São Paulo cumprirá o objetivo de dar a dose 1 a todos os adultos até 1º de setembro (antes da meta de 15 de setembro); a capital, um par de dias depois. O Brasil daria dose 1 a todos de 18 anos ou mais no final de setembro.

Janio de Freitas - A milícia da Covid informa:

- Folha de S. Paulo

Militares já podem iniciar a contabilidade do que o Exército perdeu

A correnteza encontra o seu leito natural. Espera de dois anos e meio, só toleráveis pelo acúmulo de certezas e comprovações que conduzem a correnteza para percursos legítimos, menos incivilizados, convincentes —o que golpes não oferecem.

"As instituições estão funcionando", diziam, e não era verdade. Por si mesmas, instituições não funcionam, nem se imobilizam. O que as move e lhes dá funcionamento coerente com seus meios e fins, ou os contrariam, são os seus ocupantes por direito ou privilégio.

A ministra Rosa Weber —uma garantia de integridade— submete Jair Bolsonaro à investigação que pode refazer a dignidade nacional. O Supremo Tribunal Federal, por maioria dos ministros, está reconhecendo as suas responsabilidades e dando-lhes vida. Chama o procurador-geral da República a comportamento decente, conduz com eficácia inquéritos sobre manifestações antidemocráticas, redes de desinformação/difamação e seus financiadores no empresariado.

Elio Gaspari - Uma milícia de picaretas

O Globo / Folha de S. Paulo

Vacina com pixuleco de um dólar humilha um país onde já morreram mais de 500 mil pessoas e, entre os vivos, há 14,8 milhões de desempregados

A vacina com pixuleco de um dólar humilha um país onde já morreram mais de 500 mil pessoas e, entre os vivos, há 14,8 milhões de desempregados. Passados dois anos da promessa de uma “nova política” com Jair Bolsonaro, chegou-se a algo muito pior. Sabia-se que as tais “bancadas temáticas” que dariam suporte ao governo eram uma fantasia, prima do nióbio, do grafeno e da cloroquina. Tudo acabou nas mãos do Centrão, reforçado pelo primarismo das milícias.

Nenhum dos picaretas que atacou a bolsa da Viúva equiparou-se ao cabo da PM mineira Luiz Paulo Dominguetti Pereira. Ele denunciou que Roberto Ferreira Dias, o então diretor de logística do Ministério da Saúde, pediu-lhe um pixuleco de um dólar para cada unidade da vacina da Oxford/AstraZeneca numa encomenda de 400 milhões de unidades.

A um dólar por vacina o pixuleco seria de 400 milhões de dólares. Isso não existe, como não existe um rato de 400 toneladas. Na tarde de quinta-feira o senador Tasso Jereissati, com sua experiência de empresário bem-sucedido, demonstrou que o laboratório AstraZeneca não teria como entrar numa operação desse tipo. Se isso fosse pouco, a empresa nunca teria capacidade para fornecer 400 milhões de vacinas a quem quer que seja.

Num governo normal, o cabo Dominguetti seria desqualificado como um simples Napoleão de hospício, mas o de Bolsonaro não é um governo normal. Nele, os Napoleões internam o diretor do manicômio.

Em dezembro do ano passado, o coronel Elcio Franco, com seu brochinho de punhal ensanguentado, disse que o governador João Doria sonhava acordado ao prometer vacinas para janeiro: “Não brinque com a esperança de milhares de brasileiros. Não venda sonhos”. No dia 17 de janeiro a enfermeira Mônica Calazans recebeu a primeira dose da vacina CoronaVac, aquela que Bolsonaro garantia que não seria comprada.

Um mês depois da vacinação de Mônica Calazans, o cabo Dominguetti encontrou-se com Dias num restaurante de Brasília. Ele estava acompanhado pelo seu assessor, o coronel da reserva Marcelo Blanco, um dos 21 militares da ativa e da reserva que escoltavam o general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde.

Em março, ao deixar o cargo, o próprio Pazuello denunciou “a liderança política que nós temos hoje”. Atribuiu sua queda a um grupo de “oito atores (...) um grupo interno nosso” que “tentou empurrar uma pseudonota técnica que nos colocaria em extrema vulnerabilidade, querendo que aquele medicamento, a partir dali, estivesse com critérios técnicos do ministério, e ele (o medicamento) não tinha”.

Dorrit Harazim - Longo inverno

O Globo

A decisão estava tomada: mudar de assunto ao menos neste domingo de inverno, para não agravar ainda mais nosso estoque de dores e perdas, raiva e desalento. Embalado pelo poema “Um pouco sobre a alma”, da maravilhosa Wislawa Szymborska, o artigo de hoje tinha a intenção de trazer leveza. Até porque os versos da Nobel de Literatura, recebidos de véspera de um amigo querido, haviam me trazido acalento. Foi fácil levantar voo e planar por algum tempo com o poema que começa assim: “Às vezes temos uma alma./ Ninguém a tem o tempo todo/ e para sempre. /Dia após dia, /ano após ano/ podem se passar sem ela. / Às vezes ela só se aninha / por mais tempo/ nos enlevos e medos da infância. / Às vezes só no espanto de estarmos velhos…”.

Duro foi despencar do universo rarefeito da poesia, essencial à expressão humana, e voltar a pousar no cotidiano local que a cada dia se apresenta mais desumano — por doentio e doente. O Brasil está doente de Covid-19, cuja origem a ciência ainda não desvendou 100%, mas cuja feroz mortandade, em solo pátrio, já tem responsabilidade e origem escancaradas — o governo Jair Bolsonaro. Como doenças, mesmo as mais perversas, se curam ou são combatidas pela ciência, algum dia os sobreviventes do horror atual haverão de respirar melhor e sem medo, com o resto do mundo.

Já a violência nacional não é doença. É, sim, doentia, cria da própria sociedade e não curável pela ciência. Continuará a ser estrutural até que gerações futuras queiram mudar a história do país.

Míriam Leitão - Clarice conversa com a História

O Globo

Um grito cortou a ordem dada por agentes de segurança do Exército, presentes à cerimônia fúnebre. “Não! Não enterrem.” Era a voz de Clarice exigindo que os militares, que queriam se livrar do corpo de Vladimir Herzog, esperassem a chegada da mãe do jornalista, Zora. Eles obedeceram. O tom era imperioso. E era 1975. Zuenir Ventura me contou sobre outro momento em que a voz dela se levantou: “Foi quem disse primeiro ‘mataram o Vlado’”. E ela seguiu dizendo isso. Em 2017, a voz de Clarice foi ouvida na Corte Interamericana de Justiça, quando o advogado Alberto Toron defendia, em nome do governo Temer, que o caso Herzog já tinha sido julgado e prescrito. “Não é nada disso”, disse alto Clarice.

No dia primeiro de julho, Clarice Herzog fez 80 anos. Ela nunca desistiu da verdade no país que decidiu não encarar a realidade do que houve na ditadura. Clarice nos leva, inevitavelmente, à reflexão sobre a História do Brasil, na qual a verdade tem sempre que ser resgatada das falsificações. São quase 46 anos desde o martírio do Vlado. O Brasil é hoje governado por Jair Bolsonaro, que defende a ditadura e glorifica torturadores. Tem sido áspero o caminho de Clarice, mas ela marcou a História.

A frase “Mataram o Vlado” foi dita por ela, pela primeira vez, antes que lhe contassem que ele havia morrido. Ela viu os diretores da TV Cultura, onde ele era diretor de jornalismo, chegando à noite em sua casa e intuiu a tragédia. Foi ela que comunicou à família, aos amigos, à História do Brasil que ele havia sido assassinado no II Exército. Era a voz de uma mulher contra o regime de força que impunha a mentira do suicídio.

Manifestantes voltam às ruas por impeachment de Bolsonaro e rapidez na vacinação

Atos contra o presidente são registrados em todos os estados brasileiros e no exterior em meio a desgaste do governo após denúncias de corrupção e propina em negociações por vacinas

Camila Zarur, Rodrigo Castro, Guilherme Caetano, Ivan Martínez-Vargas e Mariana Muniz e Alfredo Mergulhão* / O Globo

RIO, SÃO PAULO E BRASÍLIA — Milhares de manifestantes voltaram às ruas neste sábado em todos os estados do país e no Distrito Federal para pedir o impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e cobrar celeridade na vacinação contra a Covid-19. Os atos transcorreram em meio a um desgaste sofrido pelo governo diante de denúncias de corrupção e propina em negociações para compra de vacinas. No Rio, o protesto ganhou novas cores com a presença de bandeiras do Brasil e da comunidade LGBTQIAP+. Em São Paulo, a novidade foi a adesão de grupos de centro e direita, com representantes do PSDB, PSL e do movimento liberal Livres.

Os protestos, convocados por entidades e movimentos sociais, contam com o respaldo de partidos políticos e centrais sindicais. Além da oposição, alas do centro e da direita que hesitavam em aderir aos atos também endossam as manifestações. Siglas como PSDB e PSL planejam a participação mas sem fortalecer uma eventual candidatura de Lula nas próximas eleições.

Além de todas as capitais do país, também houve protestos em países como Alemanha, Áustria, Irlanda, Portugal, Canadá e Suíça.

A manifestação em São Paulo começou pouco depois das 15h. A concentração aconteceu na Avenida Paulista, em frente ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), tradicional palco de protestos da capital paulista.

Inicialmente previstas apenas para o próximo dia 24, as manifestações foram antecipadas após crise desencadeada no governo frente às suspeitas sobre a compra da vacina indiana Covaxin e a acusação de pedido de propina para aquisição de doses da AstraZeneca. Os protestos foram organizados às pressas e ocorrem exatas duas semanas depois dos últimos atos contra Bolsonaro, em 19 de junho.

Dezenas de representantes de movimentos e partidos políticos apresentaram na última quarta-feira um 'superpedido' de impeachment contra Bolsonaro. O documento que contou com 45 signatários unificou os argumentos expostos em outros 123 pedidos já submetidos à Câmara. Um dos apontamentos mais recentes é o de que o presidente teria cometido prevaricação nas suspeitas de corrupção no contrato de compra da Covaxin.

Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, o ato aconteceu na Avenida Presidente Vargas, no Centro da cidade. Entre cartazes contra o presidente, destacaram-se também bandeiras do Brasil e do movimento LGBTQIAP+. O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ), líder da minoria na Câmara, foi à manifestação vestindo uma camisa com as cores do Brasil. É o primeiro protesto do qual o parlamentar participa.

— As cores do Brasil não pertencem a nenhum ditador. Pertencem ao povo brasileiro. Bolsonaro fez as cores da bandeira serem a da divisão e do ódio. Qualquer um que defenda a democracia tem o direito de usar a bandeira — afirmou Freixo.

A bandeira brasileira e as cores verde e amarelo eram marcas das manifestações a favor de Bolsonaro mesmo antes de sua eleição, em 2018. Agora, nos protestos contrários ao presidente, o uso dos símbolos seria uma forma de fazer acenos a movimentos do centro e da direita.

Representantes de partidos como Psol, PT, PSB, PV, PDT, PCdoB, PCB e Cidadania marcaram presença no protesto. Ainda que algumas alas do PSDB tenham defendido os protestos na rua contra o presidente, o partido não participou do ato no Rio. Segundo o presidente estadual da legenda, o deputado federal Otávio Leite, o momento é de evitar aglomerações.

"Nesse momento entendemos que a 'não a aglomeração' é um imperativo! Quanto ao futuro, o partido vive um fértil momento de debates internos em busca de uma alternativa de Centro para o país", disse o deputado em nota.

Para a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), a manifestação é uma forma de pressionar o presidente da Câmara, Arthur Lira, a dar prosseguimento a abertura do processo de impeachment, além de respaldar as investigações da CPI.

— A manifestação vai respaldar o pedido de impeachment. É evidente que existe um vontade de uma maioria pela saída de Bolsonaro. Porém, há uma dureza por parte da presidência da Casa. Sem esse povo na rua, é impossível ajudar a CPI a investigar o governo e ajudar que o Parlamento a abrir o processo de impeachment — disse a parlamentar, que também participa do ato.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Vacina permite vislumbrar fim da pandemia

O Globo

A queda na média diária de mortes pela Covid-19 no Brasil trouxe um vislumbre de que a pandemia poderá ter fim. É verdade que o patamar, acima de 1.500 mortos todo dia, ainda é alto, superior ao do ano passado inteiro, por isso não justifica relaxamento prematuro nas medidas de restrição à circulação ou no uso de máscaras. Apesar disso, o avanço da vacinação, que já alcançou mais de 12% dos brasileiros, permite, sim, termos uma esperança de que o pesadelo deverá um dia acabar. E autoriza imaginar como será a vida normal depois que o contágio estiver sob controle.

É importante entender que o Sars-CoV-2 não desaparecerá, nem deixará de evoluir para novas cepas que poderão eventualmente driblar as vacinas disponíveis (algo que não ocorreu ainda). Mas ele tenderá a se tornar um vírus endêmico. Com o alívio na pressão sobre o sistema de saúde, mesmo que surja alguma variante resistente, os cientistas desenvolverão novas vacinas, como fazem com doenças sazonais.

É certo que a pandemia ainda está longe de acabar. A característica que marcará o fim será provavelmente uma variante com alta taxa de contágio, mas que, mediante a proteção das vacinas e a ação dos tratamentos disponíveis, resulte em letalidade bem mais baixa. Será o equilíbrio na disputa evolutiva entre o coronavírus e nós, seres humanos. Nos países de vacinação avançada, a tendência já é perceptível. No Reino Unido, onde predomina a variante delta, bem mais contagiosa que as demais, a letalidade para quem pega Covid-19 gira hoje em torno de 0,1% — similar à de uma gripe —, quando já foi de oito a dez vezes isso. Nos Estados Unidos, 99% dos mortos nas últimas semanas não haviam sido vacinados.