domingo, 25 de julho de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto* - Vitórias parciais e novos desafios ao sistema político

Prossigo, como fiz na semana passada, batendo na tecla de que, ao reverso do que ocorreu em 2018, dessa vez a caravana da política precisa passar. A defesa do sistema político que temos é das mais elementares condições para que se produza um desfecho democrático da crise de múltiplas faces que a política brasileira vem enfrentando há quase uma década e se exorcize os fantasmas de metástase que passaram a ameaçar nossa república, desde que, naquele ano, um autocrata extremado chegou, pelas urnas, à sua presidência.

Essa reflexão é institucional e, também, política. O sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário são partes solidárias de um todo que, bem além de reproduzir um modelo formal de democracia representativa tendente à tolerância e à produção de consensos, pelos freios e contrapesos de poder que o constituem, tem sido, de fato, um ambiente interativo de negociação política refratário às intenções do autocrata de forjar sua autocracia, por meio de uma polarização radical. Nossa ordem política funda-se em boa doutrina e num saldo positivo quanto aos resultados políticos de suas virtudes e mazelas. As primeiras facilitam que, ao lado desse sistema, atue, com razoável autonomia, uma sociedade civil cada vez mais vigilante. Soma-se, então, aos próprios freios e contrapesos formais do sistema, uma opinião pública nada indulgente com as segundas.

Em artigo atual (“Dribles na tirania” – Revista Veja, edição em circulação), a jornalista Dora Kramer apresentou evidências recentes da dinâmica política que produz o saldo positivo. Elas revelam um padrão de conduta, do Congresso e de partidos em geral, em que, ao lado do sempre lembrado “toma-lá-dá-cá”, vigora um geralmente subestimado “chega pra lá”. Desenham-se, assim - lembra Kramer –, a frustração da manobra golpista da exumação do voto impresso para deslegitimar as eleições, bem como contenções legais , tardias e bem vindas, à militarização desmedida do Poder Executivo e da administração pública e ao uso autoritário da LSN, em si mesma entulho autocrático cujos dias parecem estar contados.

Merval Pereira - A política da destruição

O Globo

Ao admitir que sempre fez parte do Centrão nos seus anos de Congresso, o presidente Bolsonaro desnuda mais uma das  muitas manobras políticas que engabelaram boa parte de seus eleitores em 2018, em busca de um salvador contra a corrupção dos hábitos políticos. Muitos outros votaram nele sabendo exatamente de quem se tratava, mas interesses pessoais de toda sorte levaram a que aderissem a uma candidatura que só poderia dar no que deu, um governo disfuncional e absolutamente sem rumo. Que tem o único objetivo de destruir o que foi construído desde a redemocratização do país, transformando-o em uma arena  regressiva guiada pela incitação ao ódio.

Acontece que Bolsonaro não tem outra escolha, a não ser se entregar ao Centrão, e a partir daí, corre o risco de perder boa parte do eleitorado. Ele joga com a possibilidade de que o candidato adversário seja o ex-presidente Lula, que não será o escolhido pelo eleitor arrependido ou decepcionado, e nesse ponto tem razão. Vejo aí um caminho aberto para a terceira via, um candidato que não seja do Centrão, nem um governante que desista de combater a corrupção por causa dos apoios eleitorais e da família.

Bolsonaro pode ganhar apoio no Legislativo, mas não entre os eleitores. É verdade que os políticos do Centrão são profissionais, sabem espalhar prefeitos e vereadores pelo país, fazem uma política eficiente de clientelismo à qual Bolsonaro vai aderir, aumentando a abrangência do Bolsa Família, por exemplo. Temos que ver como o eleitorado irá se comportar diante das outras opções. Acossado pela realidade, pode ser que algum dos candidatos já apresentados, ou um nome que surja no decorrer deste ano, se transforme numa saída de emergência para esse eleitorado que está decepcionado com Bolsonaro, e não quer a volta de Lula.

Bernardo Mello Franco - Instituições funcionando

O Globo

Millôr Fernandes tinha uma boa frase para ilustrar os perigos do otimismo em excesso. Para ele, o otimista era o sujeito que se atirava do décimo andar e, ao passar pelo oitavo, comemorava: “Até aqui, tudo bem!”. A imagem parece descrever os brasileiros que não veem ou fingem não ver as ameaças de golpe contra a democracia.

Há duas semanas, Jair Bolsonaro deu um ultimato: ou o Congresso ressuscita o voto impresso ou “corremos o risco de não ter eleição no ano que vem”. A chantagem foi tratada com condescendência. Em vez de ser processado por crime de responsabilidade, o capitão foi convidado para um cafezinho no Supremo.

Nesta quinta, o jornal O Estado de S. Paulo informou que o ministro da Defesa aderiu ao complô para tumultuar a sucessão presidencial. Braga Netto mandou dizer ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que só haverá eleição com as regras impostas pelo governo. Usou o coturno de general para intimidar o poder civil.

Seguiram-se negativas pouco convincentes. O deputado Lira desconversou sobre o assunto. “A despeito do que sai ou não sai na imprensa”, disse, vamos todos à urnas em 2022. O general bolsonarista optou pelo cinismo. Tentou desqualificar a reportagem, mas reforçou, em papel timbrado, a pressão indevida pelo voto impresso.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, limitou sua reação a um tuíte. Disse que conversou com os envolvidos, e os dois “desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”. O ministro acrescentou que o país tem “instituições funcionando”. Lembrou o otimista de Millôr antes de se esborrachar na calçada.

Míriam Leitão - A democracia morre no fim deste enredo

O Globo

O agressor da democracia não vai parar. É como o agressor da mulher que, após perdoado, volta a atacar e muitas vezes o fim é a morte da vítima. Quem me fez esse raciocínio foi uma autoridade da República. Todos os dias a democracia apanha do presidente Jair Bolsonaro. Os generais e os civis que o cercam reforçam suas atitudes ou tentam justificá-lo. Essa violência só vai parar no fim deste governo, mas deixará cicatrizes. Quando as instituições estão funcionando, ninguém precisa dizer em notas e declarações.

— O presidente fala uma coisa e na hora que aperta ele recua, igualzinho ao homem que agride mulher. O agressor recua, garante que a ama, algumas pessoas asseguram que ele vai mudar e a violência cresce. Um dia ele chegará com um revólver e vai matar a mulher. É dessa certeza que surgiu a Lei Maria da Penha — explicou a pessoa com quem eu conversei sobre as crescentes ameaças do presidente e dos generais que o seguem, da reserva ou da ativa, nessa mesma lógica de agredir e negar que agrediu, prenunciando outro ato que seja ainda mais forte.

Nesse último episódio, revelado pelo “Estadão”, o ministro da Defesa, Braga Netto, enviou um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira, com o seguinte teor: “a quem interessar, se não tiver eleição auditável não terá eleição.” Foi dentro de uma escalada de agressões. Tudo se passou entre os dias 7 e 8 de julho. A nota do ministro da Defesa e dos comandantes militares tentando coagir a CPI do Senado foi no dia 7. No dia 8, Bolsonaro afirmou que ou vai ter o voto impresso ou não vai ter eleição, o general Braga Netto mandou o mesmo recado golpista, e o comandante da Força Aérea deu uma entrevista ao GLOBO elevando o tom da ameaça contida na nota, sendo em seguida apoiado pelo comandante da Marinha. O atentado foi combinado. Eram instituições funcionando. Com o objetivo de destruir a democracia.

Dorrit Harazim - Leiam Brecht

O Globo

O marxista alemão Bertolt Brecht, que usou o teatro para tentar transformar o mundo, também produziu uma série de poemas esperançosos e atípicos para a época. Foi na terceira década do século XX —naquele entreguerras em que os intelectuais e poetas chafurdavam na desilusão, e o militarismo das nações cavalgava para novos confrontos — que Brecht escreveu seu mais célebre poema, dirigido a oficiais:

— O vosso tanque, general, é um carro-forte/ Derruba uma floresta, esmaga cem/ Homens/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um motorista./ O vosso bombardeiro, general/ É poderoso/ Voa mais depressa que a tempestade/ E transporta mais carga que um elefante/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um piloto. / O homem, meu general, é muito útil/ Sabe voar, e sabe matar/ Mas tem um defeito/ —Sabe pensar.

Esse chamamento à capacidade humana de um pensar livre não foi ouvido à época, e o mundo se encarniçou na Segunda Guerra Mundial. Algumas lições do conflito foram incorporadas à História, outras nem tanto. Ainda assim, aos trancos e barrancos, conseguiu-se chegar a 2021. Oitenta anos depois de Brecht, o cenário global vive novo período de negativismo moral (não confundir com negacionismo): o planeta Terra está literalmente derretendo por obra de quem nele habita, a humanidade vive para não morrer na pandemia, a desigualdade entre pobres e ricos virou cancro explícito e obsceno, e as instituições que sustentam os regimes democráticos estão sob assalto por toda parte. Daí a atualidade da esperança brechtiana no homem e da necessidade de um engajamento coletivo. Pensar leva a agir. Só alertar já não basta.

Em discurso na Filadélfia, berço da democracia norte-americana, o presidente Joe Biden falou claro, dias atrás. “Estamos enfrentando a prova mais tormentosa à nossa democracia desde a Guerra Civil”, advertiu ele, referindo-se ao conflito interno do século XIX que fez mais de 600 mil mortos e deixou feridas nacionais não cicatrizadas até hoje. “E não digo isso para alarmá-los. Digo isso porque vocês precisam ficar alarmados.” Motivos não faltam. Desde sua posse, em janeiro, o sucessor de Donald Trump não conseguiu impedir o cerceamento acelerado do direito ao voto no país. Dados do Centro Brennan de Justiça, citados pelo jornal The Guardian, apontam que, só neste ano de 2021, 17 estados já aprovaram 28 leis que dificultam o ato de votar; 400 outros projetos de lei no mesmo sentido foram apresentados em legislaturas de 48 estados. No conjunto, essas mudanças tendem a afetar grupos eleitorais de tendência democrata (pobres, negros, jovens). “Precisamos agir”, exortou Biden ao final. Soou bonito, mas oco. Ele ficou devendo seu próprio plano de ação para neutralizar a insidiosa alegação trumpista de que eleições são fraudulentas. Mais de 70% de seus eleitores negam até hoje o resultado das urnas que deu vitória ampla a Biden em 2020 — e voltarão a fazê-lo em 2024.

Elio Gaspari - A crise mora no Planalto

O Globo / Folha de S. Paulo

Mudanças no ministério, 24 ao todo em menos de três anos, mostram um governo sem objetivo

Em menos de três anos de governo, Jair Bolsonaro fez 24 mudanças no seu ministério. Não chega a ser demais. Havendo um problema, mexe-se no time. No Ministério da Educação, ele criou três encrencas até chegar ao experimento com o doutor Milton Ribeiro. É o jogo jogado.

A porca torce o rabo quando se vê que no Palácio do Planalto, o coração do governo, há quatro ministros e só nesse time aconteceram nove mudanças, duas delas traumáticas.

Pela Casa Civil, a pasta mais relevante, passaram três titulares: Onyx Lorenzoni, Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. O capitão começou com Lorenzoni, seu aliado do tempo em que os bolsonaristas cabiam numa Kombi e agora ficará com Ciro Nogueira, que via nele um fascista.

Pela Secretaria-Geral da Presidência que pode fazer muita coisa ou coisa nenhuma, passaram quatro titulares. Para lá vai Luiz Eduardo Ramos que, como chefe da Casa Civil, não sabia que mudaria de serviço. O primeiro a ocupar a cadeira foi Gustavo Bebianno, outro passageiro da Kombi bolsonarista. Demitido de forma cruel, morreu meses depois.

Pela Secretaria de Governo, que pode coordenar as relações com o Congresso, passaram o general da reserva Santos Cruz, o onipresente Ramos e hoje está lá a deputada Flávia Arruda, que precisa combinar com Ciro Nogueira quem fará o quê. Santos Cruz é hoje um espinho no pé de Bolsonaro quando ele pisa nos quartéis.

O general da reserva Augusto Heleno (Segurança Institucional) é o único sobrevivente da equipe da Kombi. Menos loquaz, já não acha que “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”.

Em muitas organizações há os “amigos do rei” que vão de um lugar para outro. Nesse caso estão Ramos e Lorenzoni, que ganhou a recriação do Ministério do Trabalho. Mesmo assim, qualquer organização com tamanha rotatividade em torno do monarca é um lugar perigoso para se trabalhar.

Luiz Carlos Azedo - Quem tem medo do impeachment?

Correio Braziliense / Estado de Minas

Engrossa a adesão de centro-esquerda e centro-direita à tese do afastamento de Bolsonaro, mas, em contrapartida, cresce a resistência da esquerda tradicional 

Existe uma explicação para a surpreendente troca de ministros na Casa Civil, com a entrada do senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, no lugar do general Luiz Ramos, transferido para a Secretaria-Geral da Presidência: Bolsonaro está com medo do impeachment, já não confia na liderança e na capacidade política do grupo de generais que o cerca e teme a deriva das Forças Armadas em apoio ao vice, Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas escanteado pelo presidente da República. Entregar o coração do governo ao Partido Progressista — herdeiro da antiga Arena e do PDS, partidos que apoiaram o regime militar — foi a maneira que encontrou para evitar que a legenda governista embarque no impeachment, diante do desgaste de Bolsonaro e da pressão das ruas a favor do afastamento.

Os generais palacianos que mandavam e desmandavam no Palácio do Planalto levaram um baile dos políticos do Centrão, que se aproveitam do enfraquecimento do governo para abocanhar fatias maiores de poder e do Orçamento da União. O último lance dessa disputa de bastidor foi o vazamento da suposta ameaça feita pelo ministro da Defesa, Braga Netto, de que não haveria eleição sem voto impresso. O novo ministro da Casa Civil teria sido o portador do recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que vazaria a informação para as jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, do jornal O Estado de S. Paulo.

A dúvida é se o vazamento foi combinado entre os dois políticos ou não. Resultado: o general acabou na berlinda, mesmo tendo desmentido a informação, porque insistiu em defender a tese de que as urnas eletrônicas não são seguras, o que é uma forma de tumultuar o processo eleitoral, além de uma atitude inadequada para quem ocupa o cargo de ministro da Defesa. Nos bastidores da política de Brasília, todos sabem que Braga Netto põe pilha na radicalização de Bolsonaro e, para agradá-lo, constrange os comandantes militares, com exceção do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, bolsonarista convicto. A disputa entre os militares e os políticos do Centrão pelo controle político dos ministérios será a grande contradição interna do governo até as eleições.

Ricardo Noblat - Até onde o Centrão está disposto a ir na companhia de Bolsonaro

Blog do Noblat / Metrópoles

Manobra feita pelo presidente para tentar salvar o seu governo tem data marcada para acabar

Razão para quem merece – no caso, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que a propósito da chegada do Centrão ao coração do governo, admitiu que “quem é Bolsonaro mesmo” sabia que “para poder governar teria que ser assim”.

Demorou a acontecer, mas está aí. É um jogo que começa a ser jogado com atraso. Zambelli só não explicou por que na campanha de 2018, Bolsonaro preferiu esconder dos eleitores o que estava escrito nas estrelas, o que se daria mais dia ou menos dia.

Em palanque, Bolsonaro referia-se ao Centrão como “a nata do que há de pior no Brasil”. Seu filho Zero Três disse que até gostaria de fotografar cada apoiador do seu pai para conferir na “hora em que o pau comesse” quem o trairia aliando-se ao Centrão.

 “Eu sou do Centrão”, reconheceu Bolsonaro na semana passada. “Eu nasci de lá”. E justificou por que só agora decidiu tirar a máscara:

“Se você afastar esses partidos de centro, sobram 300 votos para mim. Se você afastar cento e poucos parlamentares de esquerda, PT, PC do B e PSOL, eu vou governar com um quinto da Câmara?”

Entrevista | ‘Protagonismo militar está em pleno ato’, diz cientista político

Eliezer Rizzo de Oliveira, cientista político e professor aposentado da Unicamp

Professor vê conexão de interesses entre partido ‘de extração verde-oliva’ e a candidatura de Bolsonaro ao Planalto

Wilson Tosta / O Estado de S. Paulo

RIO – Especializado na área militar, o cientista político e professor aposentado da Unicamp Eliezer Rizzo de Oliveira vê se desenhar “um cenário de crise” na movimentação política das Forças Armadas em relação ao voto eletrônico nas eleições de 2022. O exemplo é o da invasão do Capitólio por apoiadores de Donald Trump, inconformados com a vitória de Joe Biden, em janeiro – com peculiaridades brasileiras que aponta. Como a possível ação de “setores da sociedade armados e mobilizáveis”, que, diante de uma derrota de Jair Bolsonaro, produzam um “cenário de extrema violência”. “O protagonismo militar está em pleno ato.” Segundo ele, ocorreu em 2018 uma conexão de interesses entre uma espécie de partido militar “de extração verde-oliva” e a candidatura de Bolsonaro ao Planalto.

A seguir, trechos da entrevista. 

Como o sr. analisa o episódio de ameaça às eleições de 2022 enviada pelo ministro da Defesa, Braga Netto ao presidente da Câmara, Arthur Lira?

O episódio é nebuloso, já que o general Braga Netto o desmentiu e Lira não o teria confirmado, tampouco desmentido. No entanto, o deputado se inscreve entre as diversas personalidades que vieram a público para defender as eleições. Algumas criticaram duramente o general Braga Netto, com toda razão. E este também se manifestou: não teria formulado ameaça militar, não costuma mandar recados, mas falar diretamente com as autoridades políticas e – aqui o principal – ele se alinha ao voto impresso, que é o sonho autoritário de Bolsonaro. O ministro age como se fosse membro de um diretório nacional partidário. Sim, no caso, do partido verde-oliva que governa com Bolsonaro. 

O voto eletrônico é realmente uma preocupação entre militares ou é uma chave que usam para interferir na política?

Imagino que haja militares a favor e contra o voto eletrônico. Mas não poderia dizer se eles associam suas posições às de seus comandantes militares. Bolsonaro, sim, tornou o voto impresso uma questão de condição para preservar a democracia: “sem voto impresso não haverá eleição”. Como, se a eleição é determinação constitucional? Vai colocar tanques nas ruas? Os comandantes cumprirão tal ordem inconstitucional? Espero que não, que cumpram a Constituição. Os governadores cruzarão os braços? Desenha-se mais um cenário de crise, a exemplo da invasão do Capitólio por trumpistas. Se agregarmos setores da sociedade armados e mobilizáveis, chegamos a um cenário de extrema violência que sugere golpe militar para controlar o caos social. 

O que explica que as Forças Armadas, que foram as “grandes mudas” da política brasileira, de 1985 a 2018, voltem a querer ter o velho protagonismo?

As Forças Armadas foram valorizadas, de certo modo, e conviveram com o processo de reparação das vítimas da violência repressiva da ditadura militar: Lei e Comissão de Pessoas Presas e Desaparecidas e Comissão da Anistia. O presidente Fernando Henrique Cardoso criou o Ministério da Defesa, contrariamente à vontade dos altos comandos militares. Mas estes se resignaram e não confrontaram o presidente. Foram adotados importantes documentos de Defesa Nacional – Política Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de Defesa e Livro Branco de Defesa Nacional – com a participação das Forças e relativa participação de políticos e acadêmicos. 

Eliane Cantanhêde - O novo velho Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

O ‘mito’ de 2018 acabou, o real Jair é Centrão e brinca de golpes desde criancinha.

O personagem de 2018, Messias, ou “mito”, acabou definitivamente quando o presidente Jair Bolsonaro admitiu que “nasceu no Centrão”, sempre foi Centrão, desde criancinha. Se o personagem da eleição era falso, essa confissão é verdadeira e gera uma dúvida para 2022: o Bolsonaro da TV e dos palanques será o real ou ele vai inventar um novo personagem para enganar os bobos?

A máscara caiu desde a posse e (literalmente até) na pandemia. Capitão insubordinado da reserva e depois deputado do baixo clero por 28 anos, ele foi despindo a fantasia da campanha, peça por peça, promessa por promessa, ao longo desses dois anos e meio, até ficar evidente: o eleitorado rechaçou a candidatura do tucano Geraldo Alckmin COM o Centrão, mas deu a vitória AO Centrão com Bolsonaro.

Entre a dezena de partidos pelos quais o presidente passou, destaca-se um, o PP, onde ele ficou dez longos anos, sem jamais ser indicado líder de bancada, presidente de comissão ou relator de qualquer tema, relevante ou não, fosse de defesa nacional, segurança, emprego, qualquer coisa. Baixo clero no Congresso, baixo clero no PP.

Rolf Kuntz - Do desgoverno ao golpismo

O Estado de S. Paulo

Justiça e Congresso repelem ameaças, enquanto Bolsonaro se entrega ao Centrão

Golpismo, desemprego, fome, inflação e milhares de mortes evitáveis, mas ainda causadas pela pandemia, são as grandes marcas, até agora, do terceiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro, o mais inepto e mais desastroso chefe de governo do Brasil independente. Chefe de governo, título hierárquico, é o rótulo mais adequado, porque governante ele nunca foi. Governar é atividade complicada e trabalhosa. Se algum dia tiver constado de sua agenda, logo deve ter sido riscada. Incompetente e omisso no enfrentamento da covid-19, Bolsonaro já ficaria na História pelos desmandos e erros cometidos enquanto se perdiam mais de meio milhão de vidas. Mas o destaque de sua folha corrida, ao lado de tantos fatos sombrios, será sua coleção de ameaças à democracia.

As ameaças bolsonarianas foram formuladas publicamente e são inegáveis. Mais de uma vez o presidente vinculou a realização das eleições de 2022 à adoção do voto impresso. Antes disso, apontou o risco de desordens se a votação eletrônica for mantida. Em 7 de janeiro, um dia depois da invasão do Congresso americano, incitada por Donald Trump, Bolsonaro apontou o risco de algo semelhante no Brasil, em caso de suspeita de fraude, uma hipótese fantasiosa, se o sistema for mantido.

Repetindo a fala trumpista, Bolsonaro falou em eleição fraudada nos Estados Unidos e insistiu na ideia de falsificação de resultados no País. Era essa a sua preocupação mais visível naquele momento, enquanto outros brasileiros, atentos à pandemia, torciam pelo início da vacinação. A primeira dose de vacina seria aplicada dez dias depois, em São Paulo, em evento no Hospital das Clínicas. O imunizante seria a Coronavac, introduzida no Brasil por meio da cooperação entre o Instituto Butantan e a fabricante chinesa Sinovac – aquela mesma apontada como indesejável “vachina” pelo presidente da República.

Sergio Fausto* - Por que Cuba importa

O Estado de S. Paulo

A ilha continua a alimentar uma direita primitiva e uma esquerda anacrônica

Cuba tem uma importância política e geopolítica muito superior ao seu pequeno território e à sua precária economia.

Para começar, a questão cubana é um tema da política interna dos Estados Unidos. Afeta o resultado das eleições presidenciais sobretudo pela influência decisiva que tem sobre o voto na Flórida, o terceiro Estado com maior número de representantes no colégio eleitoral. Quanto mais atritada for a relação entre Estados Unidos e Cuba, melhor para a extrema direita norte-americana, que tem nos grupos anticastristas naquele Estado uma base política de peso.

A ilha é também diretamente importante para a América Latina. Não é segredo que o serviço de inteligência da Venezuela conta com vários oficiais cubanos treinados em métodos de vigilância e repressão, empregados pelo regime castrista contra dissidentes internos ou agressões externas. Quanto mais avançar a normalização das relações entre Cuba e Estados Unidos, maiores as chances de Havana deixar de ser um dos sustentáculos da ditadura venezuelana.

Barack Obama fez a coisa a certa. Deu um passo na direção correta e só não deu outros porque sabia que não tinha cacife no Congresso para derrubar a legislação do embargo. Cuba e Venezuela devem ser vistas como variáveis de uma mesma equação, a ser resolvida com as pressões cabíveis dentro de relações diplomáticas que respeitem a soberania dos dois países.

José Roberto Mendonça de Barros* - Crescimento cíclico ou retomada sustentada - parte 2

O Estado de S. Paulo

A última década foi terrivelmente frustrante em termos de crescimento econômico

O crescimento econômico é uma construção de longo prazo. O Brasil tem crescido pouco desde 1980. Imaginamos que o controle da inflação, desde o Plano Real, pudesse abrir as portas para uma nova era. Entretanto, a última década foi terrivelmente frustrante. Paramos de vez. 

Para sair de um buraco, primeiro é preciso parar de cavar. Por isso, para voltar a crescer, antes de tudo precisamos deixar de apostar em ações fracassadas.

Não é possível crescer com base em recursos derivados de atividades ilegais. O maior exemplo atual é o que ocorre na Amazônia: grilagem de terras, extração e exportação de madeira vinda de áreas públicas ou com documentos ilegais ou garimpos em áreas invadidas. A Região Norte não crescerá com essa base. 

Transferências para segmentos e regiões mais pobres têm mesmo de ocorrer, mas têm de ter propósito: bolsa-escola, médico de família, desenvolvimento da bioeconomia, recuperação florestal, pagamentos por serviços ambientais, pagamentos por serviços comunitários e tantos outros. 

Não é possível crescer com projetos inviáveis técnica e economicamente. A lista aqui é enorme. Um exemplo é a indústria naval. Outra é a obrigatoriedade de construir gasodutos e térmicas a gás em regiões sem o gás e sem grande consumo de energia (como está na atual lei sobre a Eletrobrás). Os experimentos fracassados de Ceitec e Unitec, que deveriam fabricar chips, são ilustrativos também. 

Também é evidente que projetos decorrentes de voluntarismo político e corrupção emperram o crescimento. As refinarias Abreu e Lima e Comperj torraram mais de US$ 30 bilhões sem retorno. Ao mesmo tempo, o Tribunal de Contas da União apontou a existência de algumas milhares de obras públicas federais inacabadas. O atual sistema de “emendas do relator” é mais um passo para gastar recursos em projetos paroquiais, no mais das vezes sem contribuição relevante para o crescimento ou com retornos sociais modestos. O processo de construção de um Orçamento com propósitos sensatos foi totalmente destruído na atual gestão. 

Hélio Schwartsman - Vidas Paralelas

Folha de S. Paulo

Plutarco diz ter escrito livro em que pareia biografias para ressaltar vícios e virtudes morais

Washington, 1801. Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, logo no início de sua administração estabeleceu contato com Benjamin Waterhouse, da Escola de Medicina de Harvard. Waterhouse era um entusiasta da vacina contra a varíola, desenvolvida quatro anos antes por Edward Jenner.

Jefferson pediu a Waterhouse um pouco de “matéria vacinal” para que ele pudesse dar curso a seus próprios experimentos. Por três vezes, as amostras chegaram mortas. Jefferson insistiu. Bolou um invólucro especial para que os vírus não morressem no transporte pelo serviço postal. Deu certo. Em pouco tempo, Jefferson inoculara cerca de 200 membros de sua família e vizinhos. Anotou todas as reações à vacina. Nos meses seguintes expôs os pacientes ao vírus da varíola e constatou que todos estavam imunes.

Jefferson, embora não fosse médico (era advogado), tinha forte interesse pela ciência e pelo bem-estar das pessoas. Teve papel fundamental na popularização da vacinação nos Estados Unidos.

Carol Pires - O caos que precede o golpe

Folha de S. Paulo

Além de caro e demorado, acoplar impressoras a urnas eletrônicas seria expô-las a erros e violações

Em 1993, Jair Bolsonaro levantou a hipótese de fraude no voto impresso. “Não querem informatizar as apurações pelo TRE [Tribunal Regional Eleitoral]. Sabe o que vai acontecer? Os militares terão 30 mil votos e só serão computados 3.000”, disse o então deputado, em registro do Jornal do Brasil. Desde então, o Brasil realizou 13 eleições usando urnas eletrônicas sem uma fraude sequer comprovada.

Já em 2018, Bolsonaro disse que não aceitaria o resultado da eleição se não fosse o vencedor. Repete o mesmo sobre 2022. Na última quinta-feira desafiou: “Se [as urnas] são [confiáveis], dá um tapa na minha cara”. Segundo Bolsonaro, sua única intenção é sanar a desconfiança no sistema eleitoral —desconfiança que ele próprio plantou.

Bolsonaro muda de ideia sem pudor porque seu único compromisso é com a violência. Suas teorias conspiratórias servem para manter a militância em alerta. Por isso, seu novo problema era a solução de outrora.

Infelizmente, mesmo sem provas ou nexo, essa desinformação ecoa na sociedade e corrói a confiança na democracia. Em 2018, 30% dos policiais declararam a um levantamento do Instituto Ideia confiar muito no sistema eleitoral. Em 2021, apenas 15% responderam o mesmo.

Janio de Freitas - Aliança de golpe e eleição

Folha de S. Paulo

A Abin é sempre esquecida quando o golpe é citado, e esse é um erro

Um indicador visível e seguro dos efeitos do bolsonarismo nas Forças Armadas, segundo a parte mais notória da opinião pública, veio da opção de confiança depositada em duas repórteres ou no general de quatro estrelas e ministro da Defesa que as contestou, Walter Braga Netto. Mesmo sem possibilidade de oferecer prova do que noticiaram, as duas jornalistas viram-se acreditadas enquanto a nota contestatória do general-ministro ruía em desconsideração imediata e irremediável.

Com muitas razões para tanto, foi logo aceita como verdadeira a notícia de um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira, no qual o ministro da Defesa o advertia de que “sem o voto auditável [ou impresso], não há eleição em 2022”.

O bordão de Bolsonaro, repetido no dia do recado. Não seria senão para isso, e outras atitudes assim, que foram substituídos os comandantes da Marinha e da Força Aérea, assumindo dois oficiais tidos como bolsonaristas. Também o do Exército, passado a um presumido manobrável, e posta a Defesa em mãos do ex-braço direito (e direita) de Bolsonaro no Planalto.

A articulação antidemocrática foi fortalecida, portanto, e fez agora a segunda demonstração de sua índole. Prever a terceira não é temeridade.

Armínio Fraga - Para onde queremos ir?

Folha de S. Paulo

Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor

Neném Prancha foi um olheiro e treinador de futebol no Rio de Janeiro, famoso por suas frases: “pênalti é uma coisa tão importante que quem devia bater é o presidente do clube”; “quem pede, tem preferência; quem se desloca, recebe”; “o importante é o principal; o resto é secundário”.

Yogi Berra foi o seu equivalente norte-americano, do mundo do baseball. Falando sobre um restaurante em Nova York, disse: “ninguém mais vai lá, está sempre muito cheio”. Minha favorita é: “se você não sabe para onde vai, em geral não chega lá”.

Essa última lição tem tudo a ver com o momento de grande incerteza e ansiedade que vivemos no Brasil. O quadro geral não é bom. Cenários os mais variados se descortinam, muitos a evitar. Faz falta uma visão de longo prazo que sirva de bússola para cada passo do caminho.

Que visão? No topo da lista, preservar a democracia, hoje ameaçada. Me refiro sobretudo à preservação do Estado de Direito, o Império da Lei. Alguns ainda preferem tapar o sol com a peneira. Ignoram que estamos vivendo um momento de estresse nessa área. Manifestações públicas do Executivo contra o Congresso.

Acusações não comprovadas de fraude em eleições. Ameaças de cancelamento de eleições ou de não aceitação do resultado. Tensões crescentes entre Executivo e Judiciário. Participação de militares da ativa no governo. Fake news para todo lado. São sinais assustadores, especialmente quando se leva em conta que em nossos tempos é exatamente assim que as democracias morrem.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Volta ao passado

Revista Veja

Em nome de sua reeleição, Bolsonaro vem promovendo uma ilegal e desnecessária reaproximação entre Igreja e Estado

No fim do século XIX, preocupado em fazer o país progredir, o governo militar que derrubou a monarquia brasileira colocou entre suas prioridades a separação entre Igreja e Estado. Pouco mais de cinquenta dias após a proclamação da República, Deodoro da Fonseca assinou o decreto 119-A, que instituía a liberdade religiosa no Brasil e retirava do catolicismo o status de credo oficial. Ratificada pela Constituição de 1891, a alteração tornou-se um símbolo de modernidade, sendo confirmada em todas as outras Cartas desde então, não importando a orientação nem o regime de governo. Aliás, a atual Constituição (em seu artigo 19) é enfática: ela proíbe “a União, os estados e os municípios de estabelecerem cultos religiosos ou igrejas, subvencio­ná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes uma relação de dependência ou aliança”. É importante ressaltar que o Brasil adotou a medida com bastante atraso, cerca de 100 anos depois dos Estados Unidos e da Revolução Francesa. Mas inegavelmente foi uma conquista relevante. A instituição do Estado laico, que não mistura seus interesses com o de organizações religiosas de qualquer natureza, tornou-se um dos marcos da civilização ocidental.