domingo, 1 de agosto de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto* - Sinal amarelo na Câmara dos Deputados

Ensaiei, no artigo da semana passada, tratar de um assunto - o “distritão - incluído numa proposta de Emenda Constitucional, atualmente em tramitação no Congresso como parte do que tem se chamado, grosso modo, de “reforma eleitoral”. No momento ali tramitam duas PECs e o projeto de Lei Complementar que cria o “código do processo eleitoral”. Esse último consolida disposições legais hoje dispersas, que não alteram a Carta de 88 e tem potencial mais baixo de provocar controvérsia. Por sua vez, a PEC que propõe a impressão do voto eletrônico, ao ser instrumentalizada pelo discurso golpista do Presidente da República e de generais palacianos que o cercam, já tem contra si uma coalizão de veto sustentada por autoridades do Judiciário, representações da sociedade civil, de um modo geral, pela imprensa, em particular e por relevantes partidos. Parece caminhar para o malogro legislativo, ainda que estilhaços da propaganda subversiva em seu favor ameacem a percepção pública e, assim, a legitimidade do sistema eleitoral e do resultado das urnas de 2022. Caso diferente é o dessa outra PEC, que abriga a proposta do “distritão”, entre outras alterações na estrutura do sistema eleitoral, em vigor no Brasil desde 1945, sofrendo aperfeiçoamentos, mas conservando um núcleo fundamental. Para ela, as antenas da ciência política, como as da política democrática precisam estar alertas.

Enunciei, de modo particular, no artigo passado, o tema do “distritão”. Mencionei, superficialmente, algumas das suas possíveis implicações e dei uma opinião, qualificando essa regra, que se pretende instituir, como retrocesso em nosso sistema representativo, atentado contra instituições partidárias e um haraquiri político para a elite parlamentar.  

Para nivelar a informação entre leitores de variados graus de familiaridade com os aspectos formais do nosso sistema eleitoral e suas implicações sobre a política concreta, farei menção a alguns desses aspectos. Peço desculpas, por essa digressão, a quem já tem essas informações. E para não me perder em pormenores no exíguo espaço dessa coluna,  sugiro a escuta do podcast https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/ 2021/07/05/o-assunto-487-um-retrocesso-chamado-distritao.ghtml, em que a jornalista Renata Lo Prete esmiúça esse e outros assuntos correlatos, com o auxílio de colegas seus e também entrevista o cientista político Jairo Nicolau sobre esses mesmos assuntos. 

Merval Pereira - O show de Bolsonaro

O Globo

Assim como Truman Burbank - o personagem do filme "O show de Truman", de 1998, que antecipou a chegada dos reality shows ao mundo televisivo - vive em uma cidade cenográfica e é acompanhado por cinco mil câmeras durante 24 horas por dia, sem saber, o presidente Bolsonaro é protagonista de seu próprio show, mas por vontade própria.

Com uma diferença: quando descobre que toda a sua vida é uma farsa, com atores e atrizes fazendo o papel de sua mulher, seu melhor amigo, seus vizinhos, Truman começa a desejar conhecer o mundo verdadeiro. Ao contrário, Bolsonaro faz questão de viver em seu mundo imaginário, onde valem mais as imagens do que a realidade.

O filme antecipa também a crítica à chegada dos novos meios de comunicação, nos quais as pessoas se expõem ao público por prazer, não por ignorância. Bolsonaro vive de tal maneira esse mundo da internet que, para ele, o que há fora dela não existe. Foi o que se viu na quinta-feira, quando chegou ao ápice o exibicionismo de um presidente que vive em um mundo imaginário e usa fake news espalhadas por seus próprios seguidores como verdades incontestáveis que podem mudar a realidade, onde se move com dificuldade.

Os irmãoes Gold, Joel, psiquiatra, e Ian, neurologista, cunharam a expressão "síndrome de Truman", em que o pessoas imaginam-se personagens de uma encenação que não podem controlar, considerando tudo o que acontece resultado de alguma manipulação de imagens. Acho que Bolsonaro não sofre dessa síndrome, e sim a de ser Christof, o diretor do programa de televisão que transmite o show de Truman. A certa altura do filme, já conhecedor de que faz parte de uma encenação, Truman pergunta a Christof se não havia nada de real em tudo aquilo. Christof quase se lamenta dizendo: "você era real".

Bernardo Mello Franco - Guedes e o desemprego

O Globo

Paulo Guedes encontrou um bode expiatório para os quase 15 milhões de desempregados no país. Na visão do ministro, o problema não está em sua política econômica. A culpa seria do IBGE, que mede a população em busca de trabalho.

Contrariado com os números, Guedes disse que o instituto está “na idade da pedra lascada” e ameaçou “rever” seus procedimentos. Não foi a primeira nem a segunda vez que ele agrediu o órgão federal de estatísticas.

No segundo mês do governo, o ministro entregou a presidência do IBGE a uma amiga de sua filha. Ela não tinha experiência em gestão pública e assumiu o lugar de um servidor de carreira.

Sua posse foi um espetáculo de constrangimento. Guedes propôs vender a sede do instituto e cobrou uma redução nas perguntas do Censo, alegando falta de verbas. Questionado sobre os danos à pesquisa, disse: “Se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”. A frase ajuda a entender seu desinteresse pela situação dos desempregados.

Elio Gaspari - O governo empulha até quando age

O Globo / Folha de S. Paulo

Bolsonaro agrava crise hídrica ao maquiá-la

A cloroquina, a “gripezinha” e a “nova política” ganharam uma companheira. É a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética, criada em junho. Atrás dessa salada, escondem-se o risco de um apagão devido à falta de chuvas e a opção preferencial pelo negacionismo que alimenta as marquetagens do governo.

Bolsonaro não pode ser responsabilizado pela redução do volume de água nos reservatórios, mas quando decide encarar o problema maquiando-o, agrava-o. A pandemia mostrou que nos desvãos do negacionismo e da prepotência infiltram-se as picaretagens de intermediários milagreiros.

No caso da falta de chuvas, o governo erra porque quer. Tem à mão a literatura do desempenho do governo de Fernando Henrique Cardoso na crise de 2001. Os demônios de então eram os mesmos de hoje: burocratas negacionistas protegiam-se com a dispersão da autoridade.

FH deu plenos poderes a Pedro Parente, seu chefe da Casa Civil, e ele criou uma Câmara de Gestão da Crise de Energia. Os marqueteiros reclamaram, pois não queriam falar em crise.

Parente bateu o martelo:

— Não, tem que usar a palavra crise. É Câmara de Gestão da Crise de Energia, porque a população precisa entender que estamos vivendo uma crise. Não adianta esconder.

Luiz Carlos Azedo - Mitos e mentiras

Correio Braziliense

Um balanço da atuação do presidente Bolsonaro, em dois anos e meio, mostra uma fuga permanente da realidade, a aversão aos verdadeiros problemas da sociedade

Psicólogos têm uma espécie de protocolo para identificar um mitômano: o sujeito não sente culpa ou medo do risco de ser descoberto; suas histórias são exageradas; inventa sem motivo aparente ou ganho; aparece sempre como herói ou vítima; repete as mentiras com versões diferentes. Tudo para fazer as pessoas acreditarem na imagem que procura construir para si próprio. Não é à toa que a mitomania também é chamada de “pseudologia fantástica” ou “mentira patológica” — um transtorno psicológico, a tendência compulsiva por mentir sem que exista, necessariamente, demência.

O mentiroso tradicional usa a imaginação para ter proveito ou vantagem em alguma situação, o que não é incomum na política. Já o mitômano mente com o objetivo de disfarçar a sua própria realidade, ou seja, para se sentir confortável, se tornar mais interessante ou agradar o grupo social do qual faz parte. Qualquer semelhança com o presidente Jair Bolsonaro, que se autodenomina de “mito”, não é mera coincidência.

Na sexta-feira passada, bateu todos os recordes de mentiras sobre as eleições no Brasil, em confronto aberto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na tentativa de criar um ambiente de tumulto e questionamento dos resultados das eleições de 2022, caso não seja eleito.

Suas mentiras desenham um projeto político reacionário, que coleciona atitudes, declarações e fatos para emular a formação de uma falange política armada no país. Somente na semana passada, tivemos a surpresa de um encontro do nosso presidente da República com uma parlamentar alemã de notórias ligações neonazistas, empenhada em articular um movimento de extrema-direita de caráter internacional.

Dorrit Harazim - Madrugadas

O Globo

Existe um Brasil feliz enquanto sonâmbulo. Nesta primeira semana de Olimpíada em Tóquio, quem teve picos de alegria fez jornada dupla: trampo habitual durante o dia, noites e madrugadas de arroubos. Tentar acompanhar as transmissões ao vivo com as 12 horas de diferença de fuso horário é um perrengue — você adormece embrulhado em mantas e cobertores, com a TV ligada, e lá pelas tantas entreabre um olho para espiar. No momento seguinte, você se vê sentado na cama descobrindo que um brasileiro cujo nome e rosto só aficionados conheciam (o skatista Kelvin Hoefler) conquista a primeira medalha para o país (prata). Horas depois, entre alguns cochilos a mais, vem o sinal de que, com ou sem pandemia, o judô continua a honrar o país — o gaúcho Daniel Cargnin abocanha o primeiro bronze. Dias depois, a judoca Mayra Aguiar enche a tela com seu júbilo emotivo: primeira atleta brasileira de provas individuais a conquistar uma terceira medalha em Olimpíadas.

Assim foi semana adentro, num crescendo. A habilidade faiscante da adolescente Rayssa Leal, medalha de prata no skate street, fez o Brasil rir com leveza, sentir-se mais jovem e olhar para essa modalidade agora olímpica como um bem nacional. Sonhar acordado também vale. O longo jejum de 23 anos da natação brasileira em pódios olímpicos foi quebrado por outro gaúcho, Fernando Scheffer, nos 200m nado livre. E quem consegue dormir quando a disputa pelo ouro na estreia olímpica do surfe é tão espetacular? Nem aí para a feiura da praia Tsurigasaki, nem aí para o tempo inclemente no dia da prova. O potiguar Ítalo Ferreira fez o Brasil deslizar sobre as ondas. Conquistou o primeiro ouro para o país mantendo sua encantadora marca pessoal: a não celebridade.

Ricardo Noblat - O que fizeram os filhos de Bolsonaro para que fique em segredo


Blog do Noblat / Metrópoles

Por 100 anos não se saberá quantas vezes estiveram no Palácio do Planalto os filhos Zero Dois e Zero Três do presidente da República

Jair Bolsonaro sabe muito bem por que quer esconder pelos próximos 100 anos o número de vezes que seus filhos Zero, Carlos, vereador, e Eduardo, deputado federal, tiveram acesso ao Palácio do Planalto enquanto ele foi presidente da República.

Certamente não será porque foram muitas vezes; nada haveria de mal nisso, mas porque algumas aconteceram em determinadas datas que poderiam deixar o pai em apuros, ou eles mesmos, os filhos. É isso o que investiga a CPI da Covid-19.

Daí a decisão da Secretaria-Geral da presidência, ainda sob o comando do ministro Onyx Lorenzoni, servidor vassalo de Bolsonaro, de negar acesso a tais informações e de decretar o mais alto grau de sigilo em torno delas.

Gaudêncio Torquato* - Longe do parlamentarismo

Blog do Noblat /Metrópoles

O presidencialismo eleva o mandatário à condição de pai da Pátria

O Brasil adota como sistema de governo um presidencialismo de tipo imperial com sustentação partidária. Sob essa rota capa de uma coalizão, o governo padece de crises cíclicas. Tanto mais extensa a aliança em torno do Executivo, maior a probabilidade de o presidente administrar sismos para garantir a governabilidade. Agora, mais uma vez, o centrão abocanha fatias de poder.

O presidencialismo sofre uma crise crônica no equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo. O primeiro alimenta-se da base política e esta se aproveita para reeleger seus representantes e se perpetuar no poder. Fora disso é utopia.

Um parlamentarismo à moda francesa ou portuguesa não combina com nossa realidade política. Sua arquitetura é mais refinada e define a moderna política: avançada, racional, mais democrática, realista, flexível, sensível à dinâmica social. O Brasil está ainda no ciclo da maria-fumaça.

Eliane Cantanhêde - De volta ao cercadinho

O Estado de S. Paulo

Em agosto: reinício de STF e da CPI da Covid, defesa da democracia e suspeita de “homicídio comissivo”.

Boa definição do senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI da Covid: “Quando tem CPI, o presidente fica restrito ao cercadinho do Alvorada. Quando não tem, ele põe o Brasil no cercadinho”. Em sendo assim, o presidente Jair Bolsonaro vai parar de ocupar tanto espaço na mídia e voltar a falar só com um punhado de apoiadores a partir de amanhã. É quando recomeçam os trabalhos do Legislativo e, de quebra, do Judiciário.

A “ocupação de espaço” nem foi tão boa assim. Bolsonaro sai do recesso da CPI e do Supremo com o Centrão engolindo “a alma do governo”, o liberalismo de Paulo Guedes enterrado pela reeleição e o fiasco do circo sobre “as provas” de fraudes nas urnas eletrônicas, uma farsa, um patético tiro no pé.

Ao tentar comprovar a fragilidade do sistema, Bolsonaro conseguiu exatamente o oposto: ele é a maior prova do quanto a urna eletrônica é segura. Se o presidente, com todos os serviços de inteligência, instrumentos e equipes civis e militares que tem à mão, levou anos buscando fraudes e não encontrou nada... É porque não tem nada mesmo.

Com o fim do recesso, tudo volta ao normal: as revelações sobre vacinas pululam na CPI e a resistência democrática mobiliza o Supremo, aliás, já de véspera: o ministro Alexandre de Moraes reabriu na sexta-feira as investigações sobre a denúncia de Sérgio Moro de ingerência política de Bolsonaro na Polícia Federal.

Entrevista| ‘Há o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário’

O Estado de S. Paulo

Estudioso da forma como o Direito é usado pelos governos autoritários de nosso século – à esquerda e à direita –, o professor de Direito Administrativo da PUC-SP e juiz Luis Manuel Fonseca Pires defende a tese de que os atos e as políticas do governo Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. “Não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante de suas ações.” Autor do livro Estados de Exceção – a usurpação da soberania popular, Pires afirmou ser necessário atualizar a concepção clássica de estado de exceção, pois, na atualidade, ela é acompanhada da ideia de “volatilidade do inimigo”. Ora ele é uma instituição, ora ele é um grupo.

Há um denominador comum por trás das medidas legais do governo Bolsonaro?

É preciso entender que o autoritarismo contemporâneo é um processo em construção. Ele não se dá em um dia, em um momento específico. É um processo que se elabora permanentemente. É preciso ter consciência de que isso não é um sinal de fragilidade da ascensão do autoritarismo. É simplesmente que essa é a estratégia do terceiro milênio, ele se elabora dessa forma gradual. É uma construção que opera por fragmentação. O autoritarismo contemporâneo seleciona âmbitos da vida civil e instituições públicas que ele ataca sistematicamente, mas de um modo circular. Ora é preciso atacar o Judiciário, ameaçar o impeachment de algum ministro, depois, deixa-se isso de lado e se vai para um âmbito civil. Por exemplo: a liberdade de imprensa. E é preciso atacar e massacrar essa liberdade. O estado de exceção tradicionalmente se estrutura pela equação amigo e inimigo. No romance 1984 ninguém sabe direito se Emanuel Goldstein existe ou não, se é uma lenda. Mas há uma cultura de ódio contra ele porque o estado totalitário precisava ter um inimigo, porque sem um inimigo ele não sobrevivia. Já o estado de exceção contemporâneo tem a estratégia de mudar os campos de ataque. Ele não pretende ser totalitário. Ele pretende ir minando vários campos. O pressuposto ainda é o mesmo: ele precisa ter o inimigo como estruturante de suas ações. Os atos e as políticas públicas do governo Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade.

Governo corrói Estado por meio de leis

No Brasil, Bolsonaro repete líderes autoritários e atenta contra direitos civis e liberdades individuais operando o Direito, aponta levantamento

Bruno Ribeiro /Daniel Bramatti / Marcelo Godoy / O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro e seus ministros já editaram 88 decretos, MPs, portarias, pareceres ou resoluções ou patrocinaram projetos com medidas que corroem o Estado ou atentam contra as liberdades civis e os diretos constitucionais. Para o professor e ex-ministro Celso Lafer, esse fenômeno é a “cupinização” das instituições.

Era 2 de julho de 2018 quando o então candidato à Presidência pelo PSL, Jair Bolsonaro, revelou em entrevista um desejo: se eleito, pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Seria, segundo sua justificativa, uma forma de pôr “juízes isentos lá dentro”. Durante a campanha, o tema adormeceu. Mas, pouco depois da posse, o presidente tentou uma manobra para mexer na composição da Corte. Incluiu-se na reforma da Previdência um artigo que retirava da Constituição a idade-limite de 75 anos para os ministros do Supremo, deixando que ela fosse definida em lei complementar.

A medida foi dissimulada em meio à Proposta de Emenda à Constituição patrocinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Não haveria justificativa para estar ali, até porque o impacto de 11 aposentadorias é irrisório para o caixa da Previdência. Tratava-se, segundo os críticos, do primeiro ataque à democracia e à independência dos poderes feito pelo governo de Bolsonaro. A retirada da idade-limite da Constituição permitiria ao presidente fixar por lei nova idade-limite, menor do que a atual, aposentando uma leva de ministros da Corte.

“É o modelo posto em prática na Venezuela e na Polônia”, disse Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ou aposentam ministros ou aumentam o número para garantir o controle da Corte Constitucional. O novo autoritarismo age por meio do Direito para obter legitimidade.” Em 2004, Hugo Chávez elevou o número de ministros da Corte Constitucional da Venezuela de 20 para 32. Na Polônia, o partido Direito e Justiça (PiS) usou a desculpa do combate à corrupção para tentar aposentar à força 27 dos 72 juízes da Corte Suprema.

Bruno Boghossian - A desordem como plataforma

Folha de S. Paulo

Presidente tenta criar impressão de que rejeitar o resultado das urnas é uma demanda popular

O plano de Jair Bolsonaro para 2022 nunca dependeu das provas inexistentes de fraude que ele prometia apresentar. Há outro elemento-chave em sua longa campanha para desacreditar o sistema de votação eletrônica e abrir caminho para a contestação das eleições em caso de derrota: a incitação à desordem.

No comício digital transmitido pela TV do governo na quinta (29), Bolsonaro falou quatro vezes no risco de agitações públicas provocadas pela desconfiança em relação às urnas. Disse que "o povo" pode se revoltar, mencionou um período de inquietação pós-eleitoral e afirmou que alguns grupos estariam dispostos a "realizar ações contrárias ao pleito".

Não é premonição, é incentivo. Com o megafone da Presidência, Bolsonaro tenta criar um ambiente de dúvidas e convencer uma parcela não desprezível de apoiadores a participar de mobilizações a favor de suas teses. O objetivo é criar a impressão de que rejeitar o resultado das urnas não é um projeto pessoal, mas uma demanda popular.

Hélio Schwartsman - O cérebro e a árvore

Folha de S. Paulo

No paradigma materialista, seres vivos são máquinas de sondar o mundo exterior

Quando uma árvore cai na floresta, ela faz barulho se não houver ninguém para ouvir? Essa pergunta costuma ser relacionada ao idealismo radical do filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), muito embora não seja ele o autor da frase. Mas poderia ser. Para Berkeley, tudo o que é é apenas como percepção (pelos sentidos ou pela reflexão) em nossas mentes.

Numa dessas ironias da história, a ciência, a filha do materialismo que Berkeley tanto combatia, cada vez mais dá razão ao filósofo. Uma boa demonstração disso está em “Sentient” (senciente), de Jackie Higgins.

A autora começa cada um dos capítulos escolhendo um bicho que tenha algum sentido especialmente aguçado. No caso da visão, é o camarão mantis; na audição, a coruja lapônica; no tato, a toupeira de nariz estrelado. E, ao descrever o que cada um desses animais tem de singular, ela mostra como os sentidos funcionam também para humanos.

Janio de Freitas – O estado de golpe

Folha de S. Paulo

No STF e TSE, repousam opções diante de olhos que as conhecem e não as querem ver

O desvario de Bolsonaro se propagou. Vive-se uma situação de maluquice institucional em que os juízes do Supremo Tribunal Federal passam a acusados, quem venceu a principal eleição condena-a por fraudulenta, o maior falsário de verdades no país tem o cargo de presidente, o general encarregado da Saúde dá condições para a morte prematura de centenas de milhares, a grande questão nacional é a derrubada ou permanência do sistema que encerrou mais de um século de roubalheira eleitoral.

Confrontam-se agora os adeptos e os críticos das máximas criadas por ninguém menos do que o ministro do nazismo Joseph Goebbels. Haja desatino.

Os inúmeros protagonistas dessa situação maluca, ou a impulsionam, ou se mantêm na inércia dos dementes dopados de velhos hospícios. Aos que veem o mundo de baixo para cima, é prudente não procurar nos poderes amalucados onde se encontram os sensos de vergonha, ridículo, dever e compromisso, presente e futuro.

Míriam Leitão - O incêndio e a grande mentira

- O Globo

A Cinemateca pegava fogo em São Paulo, no mesmo momento em que o presidente Bolsonaro começou a live da grande mentira. Ele promete há três anos apresentar provas de que há fraude eleitoral no Brasil. O canal dele no Facebook foi retransmitido pela TV Brasil, paga pelos contribuintes brasileiros. Mentiu durante duas horas às nossas custas. Era quinta-feira à noite, 29 de julho, no Brasil, enquanto os arquivos da história do cinema pegavam fogo, Bolsonaro usava o aparato da presidência para fazer o ataque mais histérico contra a democracia brasileira.

Na mesma semana, fomos felizes por alguns instantes e nos orgulhamos de jovens fazendo história nas Olimpíadas. As medalhas e as trajetórias dos vencedores, tão cheias de simbolismos, pareciam janelas que nos ajudavam a respirar na asfixiante atmosfera do Brasil.

A adolescente Rayssa Leal, ao conquistar a medalha de prata no skate com apenas 13 anos, pediu que não houvesse aglomeração em Imperatriz no Maranhão. “Infelizmente, não é esse o momento.” A ginasta Rebeca Andrade nos ensinou tanto em cada fala que é assombroso. Rebeca, cheia de graça, técnica e talento, fez uma apresentação linda. Mas não só. Homenageou as moças que vieram antes. Disse “eu sou preta e represento preto, branco, pardo”. Afirmou, coberta de razão, que mesmo se não tivesse medalha teria feito história. E deu uma lição fundamental sobre a importância da saúde mental dos atletas ao dizer que entendia e se orgulhava de Simone Biles, a campeã que desistira de disputar admitindo estar emocionalmente abalada. O ouro do surfista Ítalo Ferreira transformou o Brasil, por um instante, numa grande Baía Formosa. Fomos nós que dominamos as ondas do mar, nós que tivemos saudades da avó, nós que choramos naquela madrugada de terça. Esses e outros respiros nos ajudaram nessa semana pedregosa.

Fernando Henrique Cardoso - A morte é sempre desagradável

O Globo / O Estado de S. Paulo

Com o passar do tempo, tudo isso vira memória, e o que conta são os laços mais permanentes, que se formam quando se tem amizade

Sempre achei ruim morrer em dia triste, chuvoso. Morrer é sempre desagradável, já escreveu um poeta. Pois não é que nestes últimos tempos sombrios de São Paulo já perdi dois amigos, e dos mais queridos, José Arthur Giannotti e Leôncio Martins Rodrigues?

Procurei na memória, que ainda não desapareceu, mas me obriga a recordar fatos do passado com alguma dificuldade, quando e como os conheci. Giannotti foi colega de minha irmã, Gilda, na Faculdade (obviamente a de Ciências e Letras, da USP). Estudavam Filosofia. Como eu entrei nela em 1950 para fazer o curso de Ciências Sociais, devo tê-lo conhecido em 1951. Já Leôncio foi meu aluno no colegial, quando eu ainda era estudante. Eram aulas de História (não me lembro se do Brasil ou Geral) no colégio Fernão Dias Paes, que era em Pinheiros, como permanece até hoje. Eu e Ruth obtivéramos uma oportunidade para ensinar de quem era, na época, secretário de Educação do estado de São Paulo e se casara com uma de suas tias.

Com o passar do tempo, tudo isso vira memória, e o que conta são os laços mais permanentes, que se formam quando se tem amizade. Como foi o caso com Leôncio e com Giannotti.

Os dois eram muito diferentes e não se conheciam quando os conheci. Só se haviam encontrado (se é que) ocasionalmente. Leôncio na época era trotskista. Giannotti estudava e tinha pouco interesse por política, menos ainda a “operária”. Ambos gostariam de mudar o mundo: um era mais socrático, perguntava sem parar; outro, mais dogmático, sabia onde encontrar o Paraíso terrestre: nos ombros da classe operária. Eu mais ouvia do que falava. Talvez por temperamento quisesse mudar menos o mundo...

Não se preocupe o leitor. Não contarei 70 anos de nossa história. Meu senso de oportunidade o impediria. Recordarei apenas alguns fatos que nos levaram a viver experiências em comum, a principal das quais foi ler “O Capital”, de Marx, na tradução de Venceslau Roces, editado pelo Fondo de Cultura Económica, do México. Lemos os quatro volumes inteiros, durante vários anos; a tal leitura seguiu-se outra, também exegética dos imensos volumes da “História Crítica da Mais Valia”, do mesmo autor. Cada um de nós lia o texto em uma língua: alemão, francês, espanhol. Inglês, para cotejar e tirar dúvidas... Entretanto, como fui obrigado a ir para o Chile, deixei o grupo logo no começo das leituras da História Crítica.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

É preciso reagir

Folha de S. Paulo

Cabe responsabilizar Bolsonaro por palavras, mesmo que importem cada vez menos

A palavra e o poder nem sempre estão conectados. Há sociedades menos complexas em que o chefe discursa para o vento. Emposta a voz em ladainhas rotineiras, enquanto as pessoas tocam suas vidas sem dar ouvidos à falação.

As famigeradas “lives” de quinta-feira do presidente Jair Bolsonaro assemelham-se cada vez mais àquelas encenações tribais de vazio de poder. A extensão dos discursos —e o conteúdo delirante das mensagens— corre na contramão da credibilidade e da popularidade do mandatário brasileiro. Quanto mais fala, menos manda.

A comparação, no entanto, tem o seu limite. À diferença do que ocorre em organizações políticas elementares, no Estado democrático de Direito o chefe do governo detém poder e responsabilidade e, por isso, deve prestar contas à sociedade de seus atos e palavras.

Bolsonaro passou mais de duas horas, na noite do último dia 29, a vituperar contra a urna eletrônica. Como se não tivesse nada importante a fazer, em meio ao morticínio de mais de 550 mil brasileiros pelo coronavírus, mobilizou recursos da União para atacar com uma profusão de mentiras o mecanismo responsável há anos pelo sucesso das votações no país.

Que ele alimenta a farsa a fim de encontrar pretexto para a possível derrota no ano que vem parece evidente. Mas isso não anula, da parte das autoridades incumbidas de impor limites ao Bonaparte do Planalto, a necessidade de responsabilizar um presidente da República que dobra a aposta na campanha de sabotagem contra um pilar do regime democrático.