quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Luiz Carlos Azedo - O naufrágio de Bolsonaro

Correio Braziliense

Reacionários são obcecados pelo medo das mudanças e se comportam de maneira nostálgica, sonhando com um passado idealizado, que não é o que a História registra

O analista político e ensaísta Mark Lilla, professor de História das Ideias na Universidade de Columbia, em Nova York, ganhou muita notoriedade após a eleição de Donald Trump, ao publicar um artigo no The New York Times no qual pedia que a esquerda norte-americana abandonasse a “era do liberalismo identitário” e buscasse a unidade diante da especificidade das minorias. É autor de O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias (no original, The Once and Future Liberal: After Identity Politics) e A Mente Naufragada, publicados pela Editora Schwarcz e Cia. das Letras, respectivamente.

Voltou a gerar polêmicas em meados do ano passado, ao articular uma carta-manifesto assinada por 150 intelectuais, entre os quais Noam Chomsky, Gloria Steinem, Martin Amis e Margaret Atwood, no qual reivindicavam o direito de discordar, sem que isso colocasse em risco o emprego de ninguém, uma reação à patrulha ideológica dos setores progressistas dos Estados Unidos contra intelectuais conservadores. Esse posicionamento foi importante para a unidade dos democratas, fundamental para a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais do ano passado e o racha dos republicanos, ao isolar a extrema-direita na tentativa de golpe de Estado de Trump.

Lilla é um estudioso dos dramas ideológicos do século XX. No livro A Mente Naufragada, faz uma clara distinção entre o reacionarismo e o pensamento conservador. Segundo ele, “os reacionários da nossa época descobriram que a nostalgia pode ser uma forte motivação política, talvez mais poderosa até do que a esperança. As esperanças podem ser desiludidas. A nostalgia é irrefutável”. Isso tem tudo a ver com o presidente Jair Bolsonaro, o grupo de militares saudosistas do regime militar que o cerca e os grupos de extrema-direita que organizou por meio das redes sociais, que, agora, estão armados até os dentes.

Ruy Castro - As cores esfregadas no nosso nariz

Folha de S. Paulo

Os bolsonaristas têm quem os teleguie no sequestro das nossas bandeiras, verbais ou simbólicas

Ouço dizer que, num covil da internet, lê-se: “Abaixo o Supremo Tribunal Federal! Não passarão!”. Ouvi direito? A lendária palavra de ordem da Guerra Civil Espanhola (1936-39), consagrada pela ativista Dolores Ibárruri, La Pasionaria, comunista de 400 anos, terá sido adotada pelos seguidores de Jair Bolsonaro? Se sim, seria mais uma prova da ciclópica ignorância dessa gente. Mas não é só isso. Se os bolsonaristas são broncos ou ingênuos, há uma minoria que pensa por eles, teleguia-os e os abastece de slogans. E sabe o que faz.

A estratégia consiste em se apropriar das bandeiras, verbais ou simbólicas, do adversário. Começa pelo sequestro do conceito de democracia, que passa a ser de seu uso exclusivo. Qualquer tentativa de enquadrá-los na lei maior, a Constituição, é chamada de tentativa de ditadura —embora esta lhes sirva muito bem para definir os governos torturadores que defendem. Como a democracia é, por definição, um regime que assiste com notável tolerância a que se trame a sua própria destruição, eles dispõem de tempo e espaço para trabalhar.

Bruno Boghossian – Queiroga e os ultrabolsonaristas

Folha de S. Paulo

Queiroga vai contra a saúde pública ao alimentar ideia de que proteção é escolha pessoal

Em sua segunda visita à CPI da Covid, o ministro da Saúde quis esconder o espírito negacionista que assombrava sua cadeira. Marcelo Queiroga admitiu que seu chefe dava maus exemplos e se encheu de orgulho para lembrar que havia editado "uma portaria obrigando o uso de máscaras" dentro da pasta. "Nós julgamos isso importante", declarou.

Considerando os passos seguintes do ministro, a medida só valeu pela propaganda. Queiroga agora diz ser contra a obrigatoriedade das máscaras. Em entrevista ao canal ultrabolsonarista Terça Livre, nesta quarta (18), ele afirmou que o país tem "muitas leis" e que é melhor conscientizar a população. Ficou por aí.

Maria Hermínia Tavares - O perigo que o país ignora

Folha de S. Paulo

O governo dos piores e as oposições empenhadas em impedir o pior afundam o país num dia a dia crispado e medíocre

Na semana passada, o relatório do Grupo 1 do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) reafirmou a responsabilidade humana pelo aquecimento do planeta e o consequente aumento da frequência e intensidade de eventos naturais extremos. Como era de prever, o assunto foi ignorado no Planalto, onde o presidente se entretia disparando ameaças a ministros do STF e açulando suas milícias nas redes sociais.

Embora os 103 cientistas que subscreveram o estudo tenham advertido que nenhum país escapará à catástrofe já em curso se a temperatura do globo subir 1,5º C a 2º C, o site do Ministério do Meio Ambiente ignorou o alerta, e seu titular perdeu a oportunidade de sair do anonimato com uma declaração à altura da importância do problema —para o país, quanto mais não seja.

Os riscos aqui são muitos: desertificação de porções do Nordeste ocupadas pela agricultura familiar; degradação do bioma do sul da floresta amazônica; estiagens fortes e repetidas no Centro-Oeste ocupado pelo agronegócio; tempestades mais comuns no Sul e Sudeste, ampliando o perigo de enchentes e deslizamento de encostas; cidades litorâneas ameaçadas pela elevação do nível do mar.

Conrado Hübner Mendes* - Augusto Aras não é Geraldo Brindeiro

Folha de S. Paulo

Seu dadaísmo jurídico, em vez de protestar contra a brutalidade, chancela Bolsonaro

Augusto Aras está para Geraldo Brindeiro como Jair Bolsonaro está para Fernando Henrique Cardoso. Mas essa síntese não é suficiente para expressar a magnitude do equívoco dessa comparação apressada, incompleta e benevolente.

Brindeiro foi PGR pelos oito anos do governo FHC e se celebrizou como engavetador-geral da República. Não sem razão. Dizia examinar as representações que lhe chegavam "com a cautela que a matéria requer". Costumavam terminar mesmo na gaveta.

Por pressão de FHC, recuou e não pediu intervenção federal no Espírito Santo pelo colapso de segurança pública. Miguel Reale Jr., então ministro, demitiu-se por isso. Sua apuração sobre compra de votos para emenda da reeleição (a "pasta rosa") e os casos contra autoridades do governo também ilustram sua deferência.

Não foi pouco. Apesar disso, Brindeiro nunca foi inimigo do Ministério Público, nunca lutou contra a instituição a pretexto de combater o "facciosismo"; nunca perseguiu ou desqualificou colegas de MP, nunca saiu em defesa gratuita e performática do presidente, nunca disputou publicamente corrida ao STF. Nunca perseguiu críticos do presidente e de si próprio. E não tinha sobre sua mesa a delinquência de Bolsonaro.

Thiago Amparo - Aras não existe

Folha de S. Paulo

O que temos é um espectador-geral da derrocada da República

Eis a provocação trazida pelo meu colega de Folha Sérgio Rodrigues: "Rola por aí uma teoria da conspiração curiosa, a de que Augusto Aras não existe. Isso explicaria muita coisa, mas o fato é que algumas pessoas alegam ter visto Aras e até conversado com ele. O que é verdade e o que é mentira?" Bem, eu nunca vi o Aras pessoalmente, devo frisar.

Defendo que Aras não existe. Talvez em algum lugar em Brasília esteja alguém, um homônimo do dito cujo, a assistir compulsivamente a sessões do STF sonhando em um dia vestir a toga (aliás, PGR nem deveria poder ser indicado ao STF). Talvez esse homônimo até escreva artigos em jornal defendendo que a autocontenção seja o máximo que se pode esperar dele, quando o que se pede é que apenas faça seu trabalho.

Engana-se quem pensa que estamos diante de uma omissão; antiativismo é apenas uma fantasia ufanista usada pelo procurador-geral da República para mascarar o que de fato faz. Quer prender colunistas de jornal. Deixa ministros do STF falando sozinhos. Enterra a democracia em uma pilha de investigações preliminares, as quais, legalmente, nada são: quando se sabem os fatos e o autor em questão, abre-se inquérito.

Talvez haja alguém que se assente todos os dias na cadeira de procurador-geral (será?). Quiçá até seja um robô posto lá para servir à receita do legalismo autocrático à la Polônia e Hungria: conquistarás as carreiras jurídicas e, então, cooptarás o Estado. Ao menos restam subprocuradores em Brasília, 31 deles para ser preciso, denunciando o óbvio: não temos um procurador-geral da República.

Ricardo Noblat - Fux espera sinal de que Bolsonaro se dispõe de fato ao entendimento

Blog do Noblat / Metópoles

Bombeiros atuam para apagar o incêndio político provocado pelo presidente da República

O presidente Jair Bolsonaro desistirá ou não do pedido que disse que apresentará ao Senado para abertura de processos de impeachment contra os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal?

Vai depender do que ele fizer a esse respeito a decisão a ser tomada por Luiz Fux, presidente do Supremo, de remarcar a reunião dos chefes dos três Poderes da República para aparar divergências e tentar se entenderem sobre a condução do país.

A ideia da reunião partiu do próprio Fux que a cancelou depois da série de ataques de Bolsonaro ao Supremo e do anúncio que ele fez de que atravessará a Praça dos Três Poderes, em Brasília, para ir ao Senado pedir o impeachment de Alexandre e de Barroso.

Nas últimas 48 horas, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-AL), respectivamente presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, e Ciro Nogueira (PP-PI), chefe da Casa Civil, foram pessoalmente à Fux para acalmar os ânimos.

William Waack - Restou a confusão

O Estado de S. Paulo

Nem ‘aliados’ de Bolsonaro conseguem apaziguá-lo ou contê-lo, num quadro perigoso

Estão diminuindo depressa as opções políticas para Jair Bolsonaro. No momento ele aposta na mais perigosa delas: pôr gente nas ruas. Consciente dos riscos, e agindo como chantagista, mandou mais de um emissário dizer a várias instâncias em Brasília que não sabe se terá controle do que possa acontecer a 7 de setembro quando – dependendo da fonte bolsonarista – fala-se de protesto ou até insurreição.

O problema para Bolsonaro é que ele está sendo levado pouco a sério, pois confundiu blefe com bravata. Revelou-se intutelável, missão na qual fracassaram representantes do PIB (via Paulo Guedes), dos militares (via generais de pijama) e de partidos do Centrão (via caciques fisiológicos). O resultado disso é o fato de operadores políticos “aliados”, como Arthur Lira e Ciro Nogueira, e chefes de poderes, como Rodrigo Pacheco e Luiz Fux, terem transitado daquilo que em política externa se chama de “appeasement” para “containment”.

Carlos Melo* - A credibilidade e o jogo do presidente do Senado

O Estado de S. Paulo

Ainda que o senso comum não acredite e os políticos façam o impossível para desacreditarem-se, a confiança é a base da relação política. Nos bastidores, honrar a palavra e cumprir acordos é importante ativo: perdem-se batalhas, mas não a plausibilidade e o respeito. Haverá sempre amanhã. Por outro lado, por mais tolerantes que sejam os atores e excepcionais as circunstâncias, a impostura e a fanfarrice, repetidas e continuadas, cansam e corroem o capital político. A credibilidade é algo que se perde irremediavelmente.

Jair Bolsonaro esqueceu que “o perdão também cansa de perdoar”. Parte do sistema político e parcelas relevantes das instituições cansaram do ziguezaguear de seu humor e da inconsistência de suas promessas. A condescendência, quando abusada, morre abandonada. Como apontam as pesquisas, também a sociedade parece exausta de conflitos e ameaças. Bolsonaro tem abusado. E isso só tem lhe piorado a situação.

Pedro Cavalcanti Ferreira, Renato Fragelli Cardoso* - Carta ao Povo Brasileiro 2

Valor Econômico

A subsequente crise econômica profunda contribuiu imensamente para eleger Bolsonaro

Neste momento em que as forças democráticas precisam impedir a reeleição de Bolsonaro, Lula vem tentando construir alianças. Abaixo propomos um embrião de texto a ser usado em sua empreitada.

Brasileiros e brasileiras, venho por esta carta registrar tardiamente o mea-culpa que lhes devo há muitos anos. Começo pedindo perdão ao ex presidente FHC. O Plano Real, contra o qual o meu partido lutou acirradamente, foi um divisor de águas na história do Brasil. O fim da inflação permitiu a reorganização da economia, bem como iniciou a reversão da desigualdade de renda. FHC implantou reformas econômicas estruturais que muito beneficiaram governos futuros como o meu. E poderia ter feito muito mais, se não tivesse sofrido a aguerrida oposição do meu partido. O PT opôs-se às privatizações por puro oportunismo, pois os funcionários de empresas estatais constituíam parcela importante de nossa base eleitoral.

Hoje reconheço que o Estado não deve ter empresas. Numa democracia presidencialista multipartidária como a brasileira, o presidente tem muita dificuldade em formar uma maioria parlamentar estável capaz de aprovar sua agenda no Congresso. Inicialmente, contornei essa dificuldade implantando a negociação direta de votos, mas o esquema veio à tona sob a alcunha de Mensalão. Depois distribuí cargos federais entre os partidos aliados. O resultado foi o escândalo do Petrolão. Enquanto houver empresas estatais será impossível impedir que elas sejam saqueadas pela volúpia dos políticos.

Nós nos opusemos à reforma da previdência de FHC também por puro oportunismo. Num país em que as classes média e alta se aposentavam precocemente por Tempo de Contribuição, enquanto os pobres se aposentavam por idade aos 65 anos, a reforma claramente reduzia desigualdades. Mas meu partido manteve o discurso da retirada de direitos sociais para subtrair votos de nossos adversários. E para não desagradar nossa base de apoio, como servidores públicos e a elite sindical, beneficiada com condições de aposentadoria muito superiores à da massa trabalhadora.

Em 1999, logo após o Brasil ter sido forçado pelos mercados a deixar o real flutuar, houve uma maxi desvalorização de 50%. Meu partido, por intermédio de nossos satélites - CUT e MST -, apoiou a campanha golpista “Fora FHC” destinada a destituir um presidente reeleito em primeiro turno havia apenas quatro meses. Também lutou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, uma reforma fundamental que disciplinou as finanças de estados e municípios.

Maria Cristina Fernandes - Bolsonaro une toga contra

Valor Econômico

O que ameaça o presidente é a inédita unidade do Judiciário

A mobilização em redes sociais contra o Judiciário na Polônia partiu de dentro do gabinete do ministro da Justiça, que também é procurador-geral da República. O governo gastou € 40 milhões na manutenção de contas de notícias falsas contra juízes e tribunais.

Na Hungria juízes foram forçados a renunciar e o regime fez 1284 nomeações políticas. Aqueles que permaneceram em suas funções tiveram sua autonomia confrontada.

Na Turquia 4,5 mil juízes foram presos nos últimos cinco anos. Centenas ainda estão detidos. Seus bens foram espoliados. A Associação Europeia de Magistrados criou um fundo de ajuda humanitária que distribui € 900 para que as famílias de magistrados possam sobreviver ou deixar o país como refugiadas.

Presidente da Associação Europeia de Juízes, José Igreja Matos, desembargador na cidade do Porto, deixou a magistratura brasileira de orelha em pé ao relatar esses casos, em conferência virtual na semana passada.

O presidente Jair Bolsonaro não foi citado uma única vez, mas pressupôs-se ali que aqueles três países não eram casos isolados ante o avanço do populismo autoritário no mundo, em grande parte, sob lideranças eleitas. A independência da magistratura, nos últimos cinco anos, segundo Igreja Matos, que assumirá a União Internacional dos Juízes em setembro, foi mitigada em 72% dos países. Não bastassem os populistas, sobreveio a pandemia.

Sua audiência era composta de ministros do STJ, presidentes de tribunais federais e estaduais, desembargadores e juízes. Se nas gerações mais novas, o bolsonarismo um dia teve adeptos, como o ex-juiz Sergio Moro já mostrou, este encanto não apenas se quebrou como se transformou em medo.

Entre relatos colhidos na audiência, prevalece o temor, se não de uma situação radicalizada, como na Turquia, de uma afronta tanto ao Estado de direito quanto à corporação e suas prerrogativas. Não apenas em decorrência da escalada autoritária como do próprio risco de falência do país e seus desdobramentos para o custeio do Estado e de suas instituições.

Merval Pereira - Tempos estranhos

O Globo

A reunião do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com os representantes de plataformas digitais como Facebook, YouTube, Instagram, Twitter e outras, para definir regras de pagamento a sites e plataformas durante o período eleitoral com o objetivo de evitar a propagação de fake news, deveria estabelecer critérios mais rígidos de monetização das notícias também em tempos além do eleitoral.

Me incomodou a decisão do corregedor-geral do TSE, ministro Luiz Felipe Salomão, de proibir o pagamento de qualquer notícia divulgada por canais bolsonaristas, com a intenção de cessar o financiamento dos blogs que espalham notícias falsas com objetivos políticos.

A “imprensa marrom” existe muito antes das redes digitais e deve ser combatida com a legislação existente quando calunia, difama e constrange cidadãos ou instituições, ou quando espalha boatos com a intenção de obter lucros econômicos ou políticos.

A expressão surgiu no fim do século XIX e vem do inglês “yellow press” (“jornalismo amarelo”). Os jornais New York World e The New York Journal disputavam as aventuras de Yellow Kid, a primeira história em quadrinhos. Uma disputa tão pesada que o amarelo passou a designar publicações sensacionalistas e sem ética.

A cor para identificar uma imprensa inescrupulosa passou a ser “marrom” no Brasil em 1959, na redação do jornal carioca Diário da Noite. Para noticiar um escândalo internacional da época, a manchete se referia à “imprensa amarela”, como nos jornais dos EUA, mas o editor achou que amarelo é uma cor muito alegre para classificar notícias escandalosas. Mudou para “marrom”, cor de excrementos.

Míriam Leitão - General, muitos não estão aqui

O Globo

O general Braga Netto mentiu sobre a História do país, ao dizer que não houve ditadura no Brasil. Ontem foi a vez de o general Ramos ofender os fatos. O ministro da Defesa disse que se tivesse havido ditadura “muitos não estariam aqui”. Ele está querendo dizer que as mortes foram poucas, e isso é odioso. Mas está também usando o mesmo método identificado pela Polícia Federal nos disseminadores de fake news, que é o de dissolver a fronteira entre a mentira e a verdade. Essa técnica de Steve Banon serve para o assalto ao poder, mas tem tido também como consequência trágica a morte de centenas de milhares de brasileiros pela Covid.

Muitos não estão aqui porque foram assassinados pela ditadura que o general Braga Netto nega ter existido. Para o general Ramos, segundo disse ontem, tudo é apenas uma questão semântica. Nesse raciocínio, basta usar algum eufemismo que o problema desaparece. Generais, muitos brasileiros foram assassinados dentro de quartéis militares e por ordem de seus comandantes. Por isso não estão aqui. A técnica da negação faz vítimas ainda hoje. Milhares de vítimas desta pandemia poderiam estar aqui. Teriam sido protegidos da morte se mentiras sobre a Covid-19 e sobre as medidas de proteção, o uso de máscara, a cloroquina e as vacinas, não tivessem sido divulgadas com tanta insistência pelo presidente da República e pelos bolsonaristas.

Malu Gaspar - A batalha de Formosa

O Globo

O primeiro tiro foi dado num tuíte. O presidente Jair Bolsonaro acordou no sábado e, antes mesmo das 9 da manhã, já teclou: “Todos sabem das consequências, internas e externas, de uma ruptura institucional, a qual não provocamos ou desejamos. De há muito, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, extrapolam com atos os limites constitucionais. Na próxima semana, levarei ao Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, um pedido para que instaure um processo sobre ambos, de acordo com o art. 52 da Constituição Federal”.

Pronto. Daí em diante, as maiores autoridades da República foram instadas a se manifestar para garantir que a democracia brasileira e suas instituições estão funcionando.

Poucas horas depois, viralizou o áudio de WhatsApp em que o sertanejo Sérgio Reis dizia ter almoçado com o presidente da República e mais “os grandes do Brasil” e combinado de encher os acessos a Brasília de caminhões em 7 de setembro.

Cora Rónai - Lições da CPI

O Globo

Bem ou mal, o Afeganistão está conectado à internet, e controlar o fluxo de informações é mais difícil. Isso significa que resistir é possível

O presidente Joe Biden, seus assessores e o mundo em geral ficaram perplexos no domingo, quando o Talibã entrou em Cabul sem pedir licença. Vinte anos de presença americana, 6,5 mil vidas aliadas, mais cerca de 66 mil militares e policiais locais mortos, para não falar nos 110 mil civis feridos ou assassinados — e tudo voltou ao que era em uma semana. Dois trilhões de dólares evaporaram como uma poça d’água numa tempestade de areia.

(A revista Forbes fez as contas: US$ 300 milhões por dia, todos os dias, durante 20 anos.)

Mais de 250 mil afegãos já tiveram que abandonar as suas casas. Assistimos a cenas de caos indescritível no aeroporto de Cabul, como um remake macabro da retirada de Saigon.

O presidente Joe Biden, seus assessores e o mundo em geral seriam poupados da perplexidade se acompanhassem a CPI da Covid, que dia a dia nos mostra como funcionam os intestinos podres de um governo com a carta branca de uma emergência em mãos: desinformação geral, coronéis pedindo propina a atravessadores, generais especialistas em logística despachando insumos para cidades erradas, burrice e má-fé disfarçadas com pose e arrogância.

Ah, mas são outras circunstâncias, o Brasil é o Brasil.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Sombra nos mercados

O Estado de S. Paulo

A baderna fiscal, as brigas e desvarios do presidente Jair Bolsonaro estão influenciando a bolsa e o câmbio mais do que os lucros e as perspectivas de empresas com ações no mercado. Bons balanços e expectativas otimistas levaram o Ibovespa a 130.776,27 pontos, nível recorde, em 4 de junho. A festa durou pouco. Depois de alguma oscilação, o indicador despencou e no dia 17 de agosto chegou a 117.903,81 pontos, cerca de 10% abaixo do pico alcançado no meio do ano. O presidente e sua equipe eliminaram o contraste entre a bolsa vigorosa e a economia em recuperação lenta, desigual e com alto desemprego.

A confusão, os erros e a insegurança da política econômica também se refletem no mercado, afetam os preços das ações e mexem com o câmbio. Com exportações em alta e boas cotações internacionais, o comércio exterior brasileiro continua superavitário, mas o dólar oscila, diante do real, como se houvesse muita insegurança nas contas externas.

Poesia | João Cabral de Melo Neto – O Rio

Trecho: Do riacho as Éguas ao ribeiro do Mel

Caruaru e Vertentes
na outra manhã abandonei.
Agora é Surubim,
que fica do lado esquerdo.
A seguir João Alfredo,
que também passa longe e não vejo.
Enquanto na direita
tudo são terras de Limoeiro.
Meu caminho divide,
de nome, as terras que desço.
Entretanto a paisagem,
com tantos nomes, é quase a mesma.
A mesma dor calada,
o mesmo soluço seco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca.

Coronéis padroeiros
vão desfilando com cada vila.
Passam Cheos, Malhadinha,
muito pobres e sem vida.
Depois é Salgadinho
com pobre águas curativas.
Depois é São Vicente,
muito morta e muito antiga.
Depois, Pedra Tapada,
com poucos votos e pouca vida.
Depois é Pirauíra,
é um só arruado seguido,
partido em muitos nomes
mas todo ele pobre e sem vida
(que só há esta resposta
à ladainha dos nomes dessas vilas).