sábado, 23 de outubro de 2021

Ascânio Seleme - Quem tem fome paga a conta

O Globo

Estado tem que usar toda sua força e poder para evitar que pessoas morram de fome

O Estado tem que usar toda sua força e poder para evitar que pessoas morram de fome. Hoje, 19 milhões de cidadãos nacionais passam fome, de acordo com levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Em casos extremos, até mesmo furar teto de gastos definido por lei deve ser permitido de modo que os famintos possam receber dinheiro para comprar comida. Mais da metade dos brasileiros, 116 milhões para ser mais exato, passam por algum tipo de insegurança alimentar. E é claro que isso é inadmissível.

A fome se caracteriza pela ausência do consumo de proteínas, vitaminas, sais minerais e glicose. Na sua primeira fase, o organismo humano busca fontes alternativas de energia armazenada para sobreviver. Em seguida, passa a subtrair tecido adiposo ou gorduroso e depois consome músculos para manter os órgãos funcionando. Sem fontes renovadas de energia, o cérebro perde funções fundamentais de comando, com prejuízos para o raciocínio. No estágio final, o metabolismo passa a funcionar muito lentamente até parar.

O problema é igual para todos os que passam fome, mas é mais dramático para as crianças. Se submetidas por tempo prolongado à insegurança alimentar, além de perder massa muscular, os mais jovens sofrerão desaceleração e até interrupção do crescimento, depressão, anemia, raquitismo, baixa imunidade e incapacitação cognitiva. Com a redução da capacidade de manter a atenção, o prejuízo para a memória e o aprendizado é imediato. Com isso, as crianças brasileiras pobres e famintas, que já perderam mais do que as outras em razão da pandemia, estão sendo condenadas a um futuro ainda mais duro e miserável. Isso se para elas futuro houver.

As imagens da fome no Brasil, que tinham sumido do noticiário, voltaram com pessoas comprando carne de segunda nos açougues. Depois, comprando pés de galinha e ossos com alguma carne. Em seguida, com gente buscando carcaças de animais em portas de frigoríficos e, finalmente, vasculhando caminhões de lixo. O número de pessoas com fome no Brasil subiu de 10,3 milhões para 19,1 milhões em quatro anos. Significa aumento de 85%, quase todo ele medido nos três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro.

Carlos Alberto Sardenberg - Fura-teto: para gastar e escapar da cadeia

O Globo

Não, não é verdade que será necessário furar o teto de gastos públicos em 2022 para financiar o programa Auxílio Brasil — com o pagamento de R$ 400 por mês para 14 ou até 17 milhões de famílias muito pobres.

Considere apenas um número. Por baixo, o governo federal terá algo como R$ 1,5 trilhão para gastos no ano que vem. Dinheiro para gastar onde quiser. Nessa montanha de recursos, não seria possível encontrar uns míseros R$ 50 bilhões para os mais pobres?

Sim, os números parecem meio chutados. Ocorre que este Orçamento federal é mesmo feito aos chutes e pedaladas. Na primeira versão, calculava-se inflação menor de 4% para 2022, crescimento robusto e juros baixos.

Mas, em consequência mesmo dos improvisos e das inconsistências geradas pelo governo Bolsonaro, o quadro mudou rapidamente ao longo de 2021. Há fatores externos, claro, como os efeitos da pandemia, mas o real se desvaloriza mais que as demais moedas de países emergentes; a inflação aqui sobe mais; os juros que os investidores cobram do Tesouro brasileiro, em títulos de dez anos, já passam de 12% anuais, também acima do padrão emergente; e, finalmente, o risco Brasil (o prêmio exigido pelos investidores para “comprar” Brasil) também é mais alto que o dos nossos pares.

Claramente, o problema está aqui e tem nome: o populismo escrachado do presidente Bolsonaro, cujo único objetivo é tentar se reeleger em 2022, não para fazer reformas ou privatizações ou qualquer outra mentira, mas simplesmente para não ser preso.

Pablo Ortellado - Mea-culpa petista

O Globo

O PT está se organizando para enfrentar as acusações de corrupção que recaem sobre o partido mirando as eleições de 2022. Seus políticos estão sendo treinados para rebater as acusações, e o partido recentemente publicou um manual para treinar os militantes.

Se, por um lado, se trata apenas de uma estratégia (legítima) para disputar a opinião pública em período pré-eleitoral, nos seus efeitos a iniciativa dará sobrevida a um antipetismo radicalizado. O PT está olhando demais para os resultados eleitorais de curto prazo e muito pouco para como sua postura de não assumir os erros políticos alimenta a intolerância e radicaliza a direita.

O partido tem todo o direito de denunciar a perseguição judicial de que foi vítima, muito bem documentada na série de reportagens conhecida como Vaza Jato. Não foi à toa que as condenações do ex-presidente Lula foram anuladas. Mas também não há sombra de dúvida de que, durante as administrações petistas, houve conluio entre a Petrobras e um pool de empreiteiras que desviou bilhões de reais para políticos.

Pacheco e Moro definem filiações e ampliam leque de opções da terceira via

Grupo segue à procura de um candidato competitivo para disputar o Palácio do Planalto contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)

Julia Lindner e Paulo Cappelli / O Globo

BRASÍLIA —  A um ano das eleições, dois personagens do cenário político decidiram ingressar em partidos de centro, e devem ampliar o leque de opções para a “terceira via”, que segue à procura de um candidato competitivo para disputar o Palácio do Planalto contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Atualmente no DEM, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG), confirmou que vai se filiar ao PSD, e o ex-ministro Sérgio Moro decidiu entrar no Podemos, conforme antecipou a colunista do GLOBO Bela Megale.

Com a mudança de sigla, além de passar a integrar a segunda maior bancada do Senado, Pacheco estará mais perto da corrida presidencial, embora ele não confirme oficialmente sua intenção de disputar o comando do Executivo federal. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, é um dos maiores entusiastas do plano.

— Pacheco torna-se um dos principais quadros do partido. Por ser jovem, ele expressa a renovação que tantos querem no Brasil, e, ao mesmo tempo, tem muita experiência. Ocupou espaço no cenário político em locais que só pessoas preparadas e com talento ocupam, como as presidências do Senado e da Comissão e Constituição e Justiça (CCJ) — elogiou Kassab.

Questionado se é possível garantir a presença do futuro correligionário na lista de adversários de Lula e Bolsonaro, Kassab diz apenas que o convite já foi feito.

— Se depender de todos nós, ele aceitará o convite que fizemos para que seja o nosso candidato em 2022. Nós entendemos que ele efetivamente poderá vencer as eleições.

PSD pode ter proposta alternativa a Lula e Bolsonaro, diz Pacheco

Em entrevista à Folha, presidente do Senado se esquiva sobre candidatura ao Planalto e diz que decidirá em 2022

Bruno Boghossian e Washington Luiz / Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Momentos após anunciar sua filiação ao PSD, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG), disse acreditar que a sigla pode ter uma "proposta alternativa" aos projetos que devem ser apresentados nas eleições de 2022 pelo PT e pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Citado pelo presidente de sua nova legenda, Gilberto Kassab, como potencial candidato ao Palácio do Planalto no ano que vem, o senador afirmou que não pretende discutir essa possibilidade agora. "A minha posição política em 2022 será decidida em 2022", afirmou Pacheco, em entrevista à Folha.

O presidente do Senado anunciou nesta sexta-feira (22) que decidiu deixar o DEM para se filiar ao PSD. O movimento foi lido como o primeiro passo formal para uma possível candidatura à sucessão de Bolsonaro.

Folha já havia confirmado com integrantes do PSD na última terça (19) que a migração ocorreria. A cerimônia de filiação do senador mineiro deve ocorrer na próxima quarta (27), em Brasília.

Pacheco é visto como possível nome da chamada "terceira via" para 2022, embora uma aproximação de Kassab com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha levantado discussões sobre uma aliança entre o PSD e o petista em 2022.

O senador mineiro, porém, indicou proximidade com o primeiro desenho, apontando diferenças com o PT e com Bolsonaro.

"Há divergências em relação à proposta de Bolsonaro e há divergências em relação à proposta de Lula, e essas divergências têm que ser respeitadas", afirmou.

"No momento certo, o PSD vai tomar suas decisões. Mas eu acredito muito que o PSD possa ter uma proposta alternativa, moderna, nova, de futuro, que possa olhar o Brasil para frente. Eu acredito muito que o partido será protagonista dessa proposta de Brasil", declarou.

Ainda que sua mudança de partido seja vista como um sinal claro de que trabalha por uma candidatura presidencial, Pacheco não quis responder se estuda essa possibilidade.

Entrevista | Rodrigo Maia: Centro tem de mirar Bolsonaro por vaga no 2º turno

Para secretário de Doria e ex-presidente da Câmara, 'orgia fiscal' do atual governo torna presidente vulnerável

Fábio Zanini / Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Ex-presidente da Câmara dos Deputados e atualmente secretário do governo João Doria (PSDB), Rodrigo Maia, 51, diz que o alvo prioritário da terceira via por uma vaga no segundo turno tem de ser o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mais do que Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"O adversário é o Bolsonaro, que entrou no nosso eleitor", diz Maia, que se licenciou do mandato parlamentar e atualmente é responsável pela pasta de Projetos e Ações Estratégicas em São Paulo.

Segundo ele, a "orgia fiscal" do atual governo, representada pela tentativa de furar o teto de gastos, vai causar inflação e aumento de juros, anulando qualquer efeito político da elevação do Bolsa Família.

"Quem está na Crefisa [empresa de crédito pessoal] e no agiota não é o rico. Quem está no mercado paralelo de crédito é o pobre. Ele que vai acabar sentindo o aumento da inflação e dos juros", afirma.

Para o secretário, isso vai derrubar a popularidade de Bolsonaro, abrindo caminho para uma candidatura de centro-direita, que ele crê será a de Doria.

No governo paulista, Maia participa da elaboração de projetos como a privatização da Sabesp e o novo trem de passageiros ligando a capital a Campinas.

Expulso do DEM, ele ainda define para qual partido irá, mas já decidiu que disputará novo mandato de deputado federal pelo Rio.

Para Maia, o eleitor fluminense não vai estranhar sua temporada paulista. "Vim para São Paulo fazer política nacional. É óbvio que o carioca, que sempre teve uma visão importante de Brasil, vai compreender."

Como o sr. vê o novo Bolsa Família, e a possibilidade de que fure o teto de gastos? 

O teto já acabou. Isso é a pá de cal. O que não estão entendendo é que o limite de gasto tem relação direta com a vontade da sociedade de não pagar mais impostos. Se você continuar a aumentar despesa acima da inflação, vai ter que arrecadar dinheiro.

E o efeito na popularidade do Bolsonaro, qual vai ser? 

A aliança do [Paulo] Guedes com o Arthur Lira [presidente da Câmara] está copiando a mesma equação da Dilma [Rousseff] em 2014. É uma orgia fiscal. Quando fizemos o auxílio emergencial em 2020, com valor muito alto, e com o governo ampliando para mais gente do que em tese seria necessário, tínhamos inflação de 1%, 2%, 3%. Estamos agora com 10%.

Se você amplia o cenário de desorganização fiscal, está dizendo que vamos perder o controle da inflação. Quem vai pagar essa conta é o próprio beneficiário do Bolsa Família. O câmbio desvaloriza mais, o botijão de gás fica mais caro, o diesel, o alimento. Está dando com uma mão e tirando com a outra.

Como o sr. vê o futuro da agenda de reformas no Congresso? 

Ele [Bolsonaro] fez a emenda de relator de R$ 15 bi. Aprovou a PEC [emenda] Emergencial sem nenhum corte de despesas. Aprovou a MP da Eletrobras com o maior jabuti da história, R$ 83 bilhões que a sociedade terá de pagar para a construção de termelétricas.

O projeto do Imposto de Renda é um desastre. Que projeto o governo aprovou até agora que foi positivo para a sociedade? O presidente da Câmara não entende a importância do teto de gastos e da Lei de Responsabilidade Fiscal. A sociedade não quer pagar mais impostos.

Oscar Vilhena Vieira* - Como chegamos a esse ponto?

Folha de S. Paulo

Desprezo pelos direitos humanos é a receita certa para o fracasso

Acusado de deliberadamente "causar pandemia, mediante a propagação de germes patogênico", além de diversos outros delitos, que resultaram na morte milhares de pessoas, Bolsonaro emerge da CPI como uma figura destituída de qualquer capacidade de expressar empatia pelo povo que governa. O sofrimento, a dor e mesmo as mortes não foram capazes de provocar no presidente, ainda que por mero cinismo, nenhum sinal de compaixão –"todo mundo morre um dia"; "e daí?"; menos ainda foram suficientes para induzi-lo a atos concretos voltados a mitigar a pandemia, concluiu o relatório.

A questão que se coloca é como chegamos até aqui? Como uma parcela substantiva do eleitorado, que certamente não é formada por uma maioria de pessoas destituídas de senso moral, foi capaz de se identificar com uma figura que passou a vida a repudiar e desprezar a dignidade e os direitos das pessoas? Como confiaram em alguém obcecado pela violência, pelas armas, pela destruição do meio ambiente e da cultura; um defensor intransigente de uma liberdade absoluta de discriminar, ofender e excluir mulheres, negros, indígenas e gays; um político empenhado por décadas em demonizar todos aqueles que se contrapõem às suas ideias, como ficou registrado na recente e infame imputação de pedofilia dirigida a ex-ministros de direitos humanos?

Cristina Serra - Uma CPI para a história

Folha de S. Paulo

O relatório da comissão vai estarrecer historiadores e as gerações futuras.

As descobertas da CPI da Covid no Senado trazem fortes elementos a indicar a duração do bolsonarismo entre nós. Que outro presidente foi acusado de crimes contra a humanidade no exercício do cargo, sem estar em guerra com outros países ou em guerra civil, e, ainda assim, permaneceu no poder e com base social de apoio significativa, como mostram as pesquisas?

A gargalhada de Flávio Bolsonaro ao tomar conhecimento do relatório também é um lembrete sinistro de que o bolsonarismo terá muitos herdeiros, mesmo que Bolsonaro não se reeleja, fique sem mandato, seja processado e preso. Infelizmente, essa corrente política veio para ficar. Por quanto tempo? Difícil saber, mas é certo que não vai se desintegrar como poeira cósmica, porque se ampara em traços fundadores da sociedade brasileira: violência, desapreço à vida, banalização da morte.

Demétrio Magnoli - Genocídio da linguagem

Folha de S. Paulo

Não se protege a democracia replicando a estratégia retórica dos extremistas

Nossos indígenas foram vacinados em ritmo mais rápido que a média da população; na Austrália, a imunização dos aborígenes andou sempre atrasada. A priorização dos indígenas decorreu de decisões judiciais que contrariaram a política do governo Bolsonaro. Democracias não produzem genocídios.

Os quatro grandes genocídios do século 20 –o armênio (1915-17), a Shoah (1941-45), o do Camboja (1975-79) e o de Ruanda (1994)– foram provocados por Estados autoritários ou totalitários.

Discute-se a pertinência da aplicação do conceito para outras catástrofes humanas, como o Holodomor, na Ucrânia soviética, em 1932-33, a limpeza étnica na Bósnia, em 1995, os massacres de Darfur, desde 2003, e a atual perseguição contra os rohingya, em Mianmar. Todas são frutos sangrentos de regimes de força.

Nos sistemas democráticos, governos são capazes de cometer crimes hediondos, mas nada que se aproxime de genocídio.

João Gabriel de Lima - Os desafios da revolução verde

O Estado de S. Paulo

Hoje, defender o planeta dá votos na Europa Ocidental, especialmente entre os jovens

Em 14 de julho deste ano, aniversário da queda da Bastilha, a Comissão Europeia propôs ao mundo uma nova revolução: o “European Green Deal”. O ambicioso projeto tem três objetivos: zerar as emissões de carbono até 2050, promover um crescimento econômico que não destrua o planeta, e compensar, de alguma forma, os perdedores da nova economia verde. O “European Green Deal” será amplamente discutido na COP 26, a conferência do clima que começa no próximo dia 31 em Glasgow.

O nome evoca o “New Deal” americano. Não é por acaso. Na década de 1930, os Estados Unidos viviam a ressaca da quebra da Bolsa de Nova York, e o presidente Franklin Roosevelt investiu pesado para recuperar a economia dos Estados Unidos. A Europa vive atualmente a ressaca da pandemia. Será gasto 1,8 trilhão de euros na recuperação econômica. Um terço desse valor será destinado ao “European Green Deal”.

Os europeus querem transformar a crise em oportunidade. Trata-se, antes de tudo, de um grande projeto de política setorial. A União Europeia investirá dinheiro público para incentivar indústrias da economia verde – painéis solares, carros elétricos, materiais de construção energeticamente eficientes, por exemplo – e para promover o desenvolvimento das respectivas tecnologias.

Adriana Fernandes - Guedes ficou para ajudar a remar na campanha

O Estado de S. Paulo

Podem dizer o que quiserem. O teto de gastos morreu. Só não foi enterrado porque no momento não há outra âncora fiscal para ficar no lugar, e o governo (Centrão) precisa sustentar a narrativa enganosa de que o teto está vivo para não piorar a crise econômica.

É falsa a versão do presidente Jair Bolsonaro de que não houve furo no teto e que o aumento de gastos será feito dentro das regras orçamentárias.

Não foi uma revisão do teto com discussão ampla sobre a eficácia ou não dessa regra, criada há apenas cinco anos.

O que ocorreu foi uma manobra casuística para conseguir quase R$ 90 bilhões de espaço para gastar mais nas eleições. Querem furar, mas querem dizer que gostam do teto… E buscam ainda mais licença para gastar no programa eleitoral do presidente.

O teto vem segurando muitas tentativas de ampliação de gastos. Os técnicos que lidam no dia a dia da gestão do Orçamento têm absoluta convicção de que, se tirassem o teto, as despesas explodiriam.

Marco Aurélio Nogueira* - Oliveiros Ferreira, uma ausência sentida

O Estado de S. Paulo

Nos momentos mais agudos de crise e confusão institucional, muitos o procuravam, em busca de uma opinião diferenciada, fora do mainstream, uma compreensão mais abrangente da vida.

Oliveiros S. Ferreira (19292017), que faleceu há exatos quatro anos, é uma voz cuja ausência nos faz falta. Heterodoxo, provocador, observador atento dos processos políticos e de seus bastidores, era um intelectual completo, que não fugia da responsabilidade de trabalhar com ideias. Não evitava as críticas, gostava de atrai-las, transformando-as em alimento para as próprias elucubrações.

Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor. Trabalhou também como professor na USP (desde 1953), na PUC, na Unesp. Notabilizou-se como um dos pioneiros no estudo das relações internacionais. Foi meu orientador no doutoramento, período em que descobri quanto ele era um intelectual diferenciado, que reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas. Era um professor cativante, sabia ensinar e instigar, atiçava os estudantes com suas elipses e metáforas.

Ainda hoje me valho da “teoria das posses essenciais” (das almas, dos corpos, do poder, do excedente), que fundamentava a ciência política de Oliveiros. Nela havia influências múltiplas: Durkheim, Weber, Marx, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Oliveira Viana, Hobbes, Maquiavel, Clausewitz, Rousseau, Trotsky, Gramsci. Ao marxista italiano, Oliveiros dedicou estudo sistemático, convencido de que Gramsci era um vigoroso pensador do Estado. Sua tese de livre-docência, defendida na USP, foi uma leitura dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Oliveiros deu-lhe o título de Os 45 Cavaleiros Húngaros, numa remissão à história dos soldados húngaros que, em reduzido número, submeteram a população inteira de uma cidade.

Bolívar Lamounier* - Piada pronta, ideias fixas

O Estado de S. Paulo

Na AL, o clássico absoluto é o de que o sistema presidencialista de governo é o único que se coaduna com nossa ‘índole’

Tem-se dito que o Brasil é o país da piada pronta, e exemplos disso não faltam; mas não nos esqueçamos de que somos também mestres em ideias fixas.

Piadas prontas não fazem mal a ninguém, ao contrário das ideias fixas, que podem causar sérios danos. Destas, na América Latina, o clássico absoluto é o de que o sistema presidencialista de governo é o único que se coaduna com nossa “índole”. Certa vez ouvi um presidente latino-americano dizer com toda seriedade que o presidencialismo é irremovível porque expressa a ideia do “chefe”, uma necessidade do inconsciente popular que remonta às comunidades indígenas de séculos atrás. No Brasil, desde a proclamação da República, os adeptos desse sistema não se cansam de afirmar que a concentração das duas funções, chefia de Estado e de governo, numa entidade unipessoal, o presidente, assegura a estabilidade do regime democrático e confere unidade aos programas de governo. Consumado o golpe militar encabeçado pelo marechal Deodoro, o Brasil não tinha como retornar ao parlamentarismo do Império, porque as regiões exigiam a Federação e porque, em tal hipótese, o sucessor de D. Pedro II na chefia do Estado seria uma mulher, ainda por cima casada com um conde estrangeiro.

Nos primeiros anos do regime de 1891, toda uma geração de intelectuais influenciados pelo fascismo em ascensão concordou com Rui Barbosa por ter ele elaborado uma Constituição presidencialista, mas lhe desceram o cacete por ter escolhido um modelo “fraco”, o dos Estados Unidos, por mero instinto de imitação. Queriam uma ditadura presidencial.

Marco Antonio Villa - Bolsonaro e a extrema direita

Revista IstoÉ

O voto de protesto, em 2018, acabou sendo canalizado para candidaturas que, sob a capa democrática, ocultavam a perspectiva reacionária

A extrema-direita brasileira veio para ficar. Nada indica que seja um fenômeno passageiro. Pelo contrário, sempre esteve presente nas bordas do sistema político. Não era levada a sério, era motivo de riso e de desprezo. Eventualmente obtinha algum êxito eleitoral, mas em momento algum ditou os rumos do País, de um estado ou, sequer, de um município.

Os acontecimentos da segunda década deste século permitiram que o que era considerado uma excrescência se transformasse em um ator importante na cena política. Vale ressaltar que o extremismo nativo tem tinturas de nazifascismo combinado com o velho reacionarismo brasileiro. Em meio ao processo, que nasceu nas ruas, do impeachment de Dilma Rousseff, os extremistas, de forma oportunista, entraram no vácuo e ocuparam um espaço que não era deles. E isto ficou claro quando das eleições de 2018 acabaram sendo eleitos parlamentares de extrema-direita em quantidade nunca vista na história republicana.

Dora Kramer - Doria no labirinto

Revista Veja

O governador vem perdendo terreno dentro do partido e chega a um mês do encontro marcado para 21 de novembro próximo à condição de quase azarão

Favorito absoluto quando o PSDB marcou a realização de consulta prévia para escolher o candidato à Presidência da República, o governador de São Paulo, João Doria, vem perdendo terreno dentro do partido e chega a um mês do encontro marcado para 21 de novembro próximo à condição de quase azarão.

Trocou de posição com o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, um novato cuja projeção até outro dia era restrita ao âmbito regional e que entrou na disputa sob o signo do descrédito. No momento, Leite desponta como predileto. Menos por seus méritos, ainda desconhecidos, e mais pela antipatia que Doria atrai para si. Justa ou injustamente, não é essa a questão.

O governador de São Paulo tem “entregas” inequívocas e reconhecidas. Dispõe de bom mostruário do ponto de vista da administração do estado e por isso sua gestão é bem avaliada. Foi muito diligente na contratação e produção da vacina CoronaVac, tendo, assim, dado início à imunização no país e obrigado o governo federal a sair do imobilismo negacionista.

Marcus Pestana* - Prévias, o centro e o futuro do país

Ainda que tenhamos doze longos meses pela frente até as eleições presidenciais no Brasil, o debate sobre as candidaturas e o que representam, ganha cada vez mais força nos bastidores políticos, na imprensa e nas redes sociais.

Lula usufrui de seu recall e presença política, para acumular forças, cativar apoiadores e aguardar os desdobramentos, tendo aparentemente presença segura no segundo turno, embora em política nada seja definitivo.

A questão posta hoje é: quem disputará o segundo turno com Lula? Bolsonaro fez um recuo tático depois do 7 de setembro, moderou sua polarização radical diária e busca alternativas para o Auxílio Brasil e conquistas governamentais, que possam reverter sua significativa perda de apoio. Ciro Gomes prossegue sua caminha um tanto solitária em torno de seu carisma pessoal e das ideias materializadas em seu livro “Projeto Nacional: o dever da esperança”.

Mas as novidades no cenário estão surgindo na órbita do chamado centro democrático. A fusão do Democratas com o PSL, dando lugar ao União Brasil, foi um importante fato. Sérgio Moro voltou a ser assediado e ter seu nome colocado em campo. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, se movimenta claramente como alternativa nas eleições presidenciais.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Perda de confiança

Folha de S. Paulo

Bolsonaro e Guedes aumentam os riscos para a economia ao minar credibilidade de regime fiscal

A gambiarra feita pelo governo Jair Bolsonaro com o Congresso para fechar o Orçamento de 2022 colocou em xeque a credibilidade do teto dos gastos públicos, o mecanismo criado há cinco anos para conter a expansão das despesas federais.

A comissão encarregada de buscar saída para o problema aprovou nesta quinta (21) uma emenda constitucional que autoriza o governo a dar calote em parte de sua dívida com precatórios judiciais e muda o cálculo do teto, abrindo espaço para outros gastos.

Se as contas dos responsáveis pela proposta estiverem certas, será possível acomodar despesas de mais de R$ 83 bilhões, incluindo o Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família, e projetos apadrinhados por emendas parlamentares dos aliados do governo no centrão.

Quatro integrantes da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, pediram demissão. Para eles, as mudanças representam o abandono da disciplina fiscal e põem em risco a recuperação da economia após quase dois anos de enfrentamento da Covid-19.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - O amor bate na porta

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...