terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Carlos Andreazza: Otimismo

O Globo

Entramos o Ano-Novo com muitos doentes num país doente. O Brasil está débil, infecção que antecede à peste. E há a peste. A peste insiste. Também há o vírus influenza. Como não testamos a população, ficamos todos sob uma massa disforme de perturbação, ameaçados, amassados, entre sintomas — ao mesmo tempo aquela vontade de nos lançarmos às ruas, aos beijos, aos suores de um verão em que talvez haja carnaval. Talvez. (Avante, Império Serrano!)

Estamos cansados. Queremos acreditar e ir, sem máscaras. Terá passado? Vai passar? O mal-estar, contudo. A esperança desafiada pelo medo. Ou haverá quem não saiba, agora, de ao menos um que vai contaminado? Não é bom.

É baixo o astral. Mas será o último ano de Bolsonaro — dizem. Será? Não tenho essa certeza, em que vejo algum salto alto. E ainda que sim: serão muitos os meses — e muitos os dispostos à forra — até esse fim. Muitos os ressentidos, a serem muitos os estragos.

Até esse fim, sendo esse o fim, teremos essa briga de rua — essa pegada miliciana nas relações sociais — concretizada, executada, com cidadãos se espancando por filiações político-partidárias?

É chão que deveria nos preocupar. A beligerância é instituição estabelecida. O nosso horizonte ainda é um queiroga. E o bolsonarismo veio para ficar, mesmo sem Bolsonaro. O bolsonarismo é a materialização do espírito do tempo violento que empurra ao conflito, ao confronto, mesmo os não bolsonaristas; que aguça a mentalidade autocrática mesmo nos democratas.

Episódio recente me ocorre. O de Gilberto Kassab, em entrevista a Nadedja Calado, da rádio CBN, reagindo com agressividade a perguntas — contraposições jornalísticas — tecnicamente perfeitas. Queria uma live para si, para falar — microfone aberto — o que quisesse; e indisposto, em termos autoritários, a responder sobre o presidenciável que forjara, Rodrigo Pacheco, cuja gestão do Congresso formalizou o orçamento secreto.

Kassab foi Bolsonaro. Quantos mais serão?

Nosso tecido social se liquidifica; como liquidificadas estiveram as cidades do sul baiano, transtornadas pelas chuvas — transtornadas, como transtornado o país, por um presidente cuja ausência é método. Bolsonaro não foi ver. Recorta-se um mundo. Ficou sobre o jet ski. O desprezo, a ofensa, é alimento ao sectarismo. Ele não foi ver, com o que o não visto existência não terá. Fabrica-se um universo apartado.

Não é boa a sensação de que pouco andamos — e andamos muito, no entanto. Como andaremos se, de súbito, é política de governo minar a vacinação de crianças? A impostura se desloca. Não faz muito, o presidente agia contra a vacinação de adultos. O mundo real se impôs. Vacinados, fazemos menos pressão sobre o sistema de saúde. Vacinados, morremos menos. São obviedades. Ainda assim, o Brasil definha. Vacinado e definhante — eis o país que virou para o novo ano. Definha porque a farsa — que alicerça a necessidade de conflito — reconfigura-se, uma vez derrubada pela realidade.

Vacinados os brasileiros, a depressão brasileira se aprofunda. Sobreviveremos num país só não morto porque países não morrem. Mas que precisará renascer. É o que expressa Janaína Paschoal ao desinformar sobre vacinas: “Vivemos um momento tão intrigante, que pessoas vacinadas, com todas as doses, pegam Covid e recomendam a vacinação! Parece piada. Ninguém acha, no mínimo, curioso?”. Não nos enganemos. É pessoa inteligente. Que distorce — barbariza — conscientemente. Que se lança a esse papel por haver identificado que seu futuro eleitoral depende de emular a radicalização bolsonarista. Não estará sozinha.

Tenho um mau pressentimento sobre este 22. Menos para a eleição. Menos relativamente à pandemia. Mais pela atmosfera. Pela linguagem. Por tudo que está contratado até outubro — independentemente do resultado das urnas. Sairemos moídos. Penso que se menospreza a capacidade competitiva de Bolsonaro. Seu Sete de Setembro, permanente, é ordem-unida. Investirá na instabilidade. Soprará o apito sem parar. Tem base social. Vai acioná-la como se para guerra. Fará o diabo. E é o presidente. Sentado na cadeira desde a qual, com seus sócios e Paulo Guedes, compôs um orçamento dedicado à reeleição. Fará o diabo.

Precisaremos de honestidade intelectual para que haja algum debate público. Ou Bolsonaro, ainda que derrotado, vencerá. Sergio Moro foi o líder num processo que fraudou o Estado de Direito. E a Petrobras foi pilhada, nos governos petistas, para financiar um projeto de poder. Uma premissa importante é que se possam criticar os adversários de Bolsonaro, o pior presidente da História do Brasil democrático, sem que isso seja tomado como manifestação de apoio a ele. Lula é extremamente criticável. Mas já se tornou necessário resistir à pressão canceladora — com pretensões de interditar — segundo a qual apontar-lhe as fraquezas será trabalhar por Bolsonaro.

Estamos no mesmo barco, turma, se a democracia liberal for o norte — e ainda não é segundo turno. Vamos conversar.

 

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