sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Flávia Oliveira: Brasil que esperança

O Globo

Vez em quando, o ambiente de trevas que engolfa o país é riscado por raios de luz que nos devolvem ao Brasil de afeto, generosidade e talento pelo qual permanecemos, lutamos, insistimos. E esperamos. No par de anos de pandemia, brilharam Teresa Cristina em lives; Emicida em “Amarelo”; Fabiana Cozza no álbum “Dos Santos”, Nei Lopes em “Pagode black tie”, Caetano Veloso em “Meu coco”, Maria Bethânia em “Noturno”, Ney Matogrosso em “Ney 80 anos”. Teve Gilberto Gil celebrando o São-João com a sanfona de Mestrinho; Milton Nascimento cantando “Clube da esquina” com Orquestra Ouro Preto; Leci Brandão se apresentando no Trem do Samba, de Marquinhos de Oswaldo Cruz; no cinema, “Marighella” e “Medida provisória”, estreias de, respectivamente, Wagner Moura e Lázaro Ramos na direção. Iluminaram-nos os livros de Eliana Alves Cruz (“Nada digo de ti que em ti não veja”), Djamila Ribeiro (“Cartas para minha avó”), Renato Nogueira (“Por que amamos?”), Leonardo Bruno (“Canto de rainhas”), Luiz Antonio Simas (“Umbandas — Uma história do Brasil”). Participamos das campanhas humanitárias que levaram comida a quem tem fome na temporada de desassistência aos vulneráveis pelo Estado.

Apresento o rol de afagos n’alma para chegar ao recém-chegado e intensamente reconfortante “O canto livre de Nara Leão”. Nelson Motta definiu o repertório da cantora, que completaria 80 anos neste janeiro, como uma lasanha: em cada camada, um gênero musical; numa fatia, o conjunto da obra. A série documental em cinco episódios, dirigida por Renato Terra, costurada por José Bial, neto de Nara, é lasanha também. Acomoda o que a cantora fez e foi, com quem andou. Oferece sublime prato. Sacia.

A produção acerta ao privilegiar assuntos, em detrimento da ordem cronológica. Começa na Bossa Nova, vai ao samba, à MPB, à Tropicália, à Jovem Guarda, ao Nordeste. Passeia pelos encontros com Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, Edu Lobo, João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes; Zé Keti, Cartola e Nelson Cavaquinho; um comovente João do Vale no “Opinião”; Chico Buarque com “A banda”; Roberto e Erasmo Carlos; Dominguinhos e Fagner. Descortina o casamento com Cacá Diegues, a maternidade, o câncer que a levou precocemente, aos 47 anos. Aponta o protagonismo — e os pioneirismos — de Nara Leão na música, na política, nos costumes. Revela Brasis.

Confirma a Bossa Nova como vertente do samba, comentário recorrente de Nei Lopes — o que é Menescal contando que João Gilberto moldou “Chega de saudade” ao toque do tamborim? Mostra a moça rica apresentada ao morro, à fome e à desigualdade social, que impulsiona a carreira de gênios negros como Cartola, Elton Medeiros e Nelson Cavaquinho, já no primeiro LP, de 1964. Escancara a perseguição, a brutalidade e o ridículo da ditadura militar, tudo exposto num poema de Carlos Drummond de Andrade dedicado à cantora após crítica ao Exército.

A série é um encontro apaixonante com uma mulher poderosa camuflada em voz suave. Nara abarcou a música do Brasil, assumiu posições políticas corajosas, desprezou padrões de beleza, exerceu e naturalizou a autonomia feminina no trabalho e na vida. Esteve à frente do seu tempo, porque atravessou a breve existência descobrindo novidades e nelas se lançando. Um dos muitos momentos bonitos da série é quando Maria Bethânia a apresenta como chave para seu conto de fadas, a carreira. Nara foi, indubitavelmente, ponte.

“O canto de Nara Leão” é obra deste tempo, a terceira década do século XXI. É resultado de intensa mobilização de mulheres por reconhecimento. Nara Leão era tudo aquilo, mas foi secundarizada. Até aqui, era lembrada quase somente como jovem musa da Bossa Nova, quando “era música”, nas palavras de Menescal, autor dos depoimentos mais emocionantes. Logo no primeiro episódio, entre desconfortável e irônica, ela dispara, em entrevista a Sérgio Cabral, pai, ao lado do amigo:

— A musa existia nos jornais. O que, aliás, para mim é um mistério, porque todo mundo, mesmo o pessoal da Bossa Nova, me escorraçava um pouco. Os jornais talvez vissem uma menininha, uma garota. Era uma coisa simpática, meio mascote. Eles não me davam muita colher de chá, me maltratavam muito, achavam que eu cantava mal, que desafinava. Eu ficava meio perdida. Eu sabia muito. Se um cara tocava, eu sabia na hora harmonia e letra, tudo. Era um computador. Mas eles achavam que eu era mixuruca. Não davam muita bola.

Como Tia Ciata, na matriz do samba, Nara Leão foi por décadas relegada a coadjuvante, dona do cenário onde a magia acontecia — no caso dela, o apartamento em Copacabana, personagem central também na série. O protagonismo restituído à artista é produto de uma época em que as pessoas e o tempo são observados por outras lentes. Hoje, como nunca antes, Nara nos arrebata, do início à cena final, inesquecível.

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