terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Murillo Camarotto: Brasil, última temporada

Valor Econômico

Urge para o Brasil pegar o bonde da nova agenda global

Na abertura da Semana de Arte Moderna, 100 anos atrás, o diplomata Graça Aranha alertou, irônico, para a “aglomeração de horrores” que seria apresentada ao público naqueles dias de festival. Em plena era do streaming, um punhado de coincidências com o cenário de 1922 marca o ano em que o Brasil decidirá qual rumo seguir no terceiro século de sua independência.

Impensável até recentemente, um “duelo final” entre Bolsonaro e Lula não apenas se materializou como ganhou a intrigante participação de Sérgio Moro. Se nada sair do roteiro, o embate entre os três protagonistas da política nacional na última década também poderia ser anunciado por Graça Aranha.

Com intensidades distintas, pandemia, crise política, militarismo e dificuldades na economia também ornavam a cena brasileira em 1922, quando foi celebrado o primeiro centenário da independência. O intervalo entre aquela festa e a Proclamação da República, 33 anos antes, coincide agora com o tempo decorrido desde a primeira eleição direta após o fim do governo autoritário.

Lá como cá, urge para o Brasil pegar o bonde da nova agenda global. Na cena artística de 1922, chamavam de “Modernismo”. Na geopolítica atual, inteligência artificial, biotecnologia e uma nova relação com os recursos naturais já estão na ordem do dia, “enquanto aqui embaixo”, como diria Caetano Veloso, “a indefinição é o regime”.

No meio da estrada para o que seremos há a Eleição de 2022. O pleito bem que poderia ser visto como a última temporada da série - categoria drama - iniciada com “Jornadas de Junho” e seguida por “7x1”, “A Reeleição de Dilma”, “Lava-Jato”, “O Impeachment”, “Governo Temer”, “Prisão de Lula”, “A Invenção de Bolsonaro” e “A Pandemia”.

No roteiro de hoje, 4 de janeiro, Lula está mais perto de garantir ao escritor Fernando Morais a parte 2 de sua biografia, com a provável participação no segundo turno. Em 2018, de dentro da cadeia e no auge do antipetismo, o ex-presidente conseguiu transferir ao ex-ministro Fernando Haddad quase 30% dos votos já na primeira ronda.

A confortável posição nas pesquisas, contudo, esconde armadilhas. Iniciada a campanha, o petista terá que encarar fantasmas do passado e explicar o que ainda não explicou, o que não quer explicar e até mesmo o inexplicável. As imagens dos dinheiros desviados e dos aliados algemados voltarão às telas - pequenas e grandes -, a reforçar a frágil memória brasileira.

Lula sabe disso e trabalha para liquidar a disputa no primeiro turno. Além da dianteira nas pesquisas, tem a seu favor a pauta da eleição. Fome, miséria, desemprego e inflação voltaram ao dia-a-dia e, no duelo contra o debate da corrupção, colocam o ex-presidente em franca vantagem. A confirmação de Geraldo Alckmin como parceiro de chapa amplia o favoritismo.

A despeito do que mostram as simulações de segundo turno, uma nova votação preocupa os petistas. A polarização abriria mais espaço para o recrudescimento do discurso anti-PT e para uma coesão das forças refratárias à volta do partido. Se o oponente for Bolsonaro, hipótese mais plausível hoje, inclua uma campanha de ódio sem precedentes, turbinada com dinheiro público, “uma aglomeração de horrores”, recorrendo novamente a Graça Aranha - desta vez sem ironia.

Contra Moro, o fator “aposta” ajuda o ex-juiz. Apesar da constrangedora falta de tino, ele oferece o benefício da dúvida sobre como seria seu eventual governo - algo que os adversários não dispõem. O caminho para o segundo turno, no entanto, é longo e Moro vai navegar um oceano de contradições até outubro. Para reunir as ferramentas mínimas exigidas de um presidenciável competitivo, terá que lidar com muitas das coisas que sua ação como juiz ajudou a demonizar.

Por essas e outras, a candidatura de Bolsonaro não pode ser negligenciada. Mesmo diante dos índices de rejeição e da terra devastada que já deixou, ele conta com 25% da população que já se provou resiliente aos testes mais rigorosos dos limites do absurdo. Também terá a seu dispor o Orçamento da União e uma máquina de desinformação.

Diferentemente de 2018, Bolsonaro estará amparado por uma coligação competitiva e por muito dinheiro do fundo eleitoral. É bastante provável que Ciro Nogueira, Valdemar Costa Neto e Cia o convençam a escancarar ainda mais o cofre, em busca de votos na baixa renda.

Mesmo depois da votação, a “última temporada” ainda pode reservar capítulos sobre a contestação do resultado eleitoral - outra coincidência com fatos do século passado. Em 1922, lideranças militares não reconheceram a derrota de Nilo Peçanha, alegaram fraude e não queriam aceitar que o eleito, Artur Bernardes, tomasse posse.

Os preparativos para a comemoração do primeiro centenário de Independência - para o segundo, ainda não se vê nada - teve entre os fatos mais marcantes a demolição do morro do Castelo, no Rio. O projeto gerou uma profunda divisão entre favoráveis ou contrários à mudança. Fiel ao gosto brasileiro por puxadinhos, o morro acabou parcialmente demolido.

Por trás dessa polêmica, no entanto, estava uma discussão mais importante, sobre o que a República recém-criada deveria conservar ou transformar. Um século depois, o dilema continua atual. Apesar dos sobressaltos, coisas significativas foram construídas desde a redemocratização, como o SUS e a Responsabilidade Fiscal, para ficarmos em poucos exemplos.

A política de destruição deliberada dos últimos anos já fez estragos que levarão outros tantos para serem reparados - na Educação, na política externa e no meio ambiente, para ficarmos, de novo, em alguns poucos exemplos. A ignorância, antes motivo de embaraço, passou a ser empunhada como bandeira, quase que promovida a movimento social.

Quatro anos antes da Semana de Arte Moderna, Monteiro Lobato, contrário ao Modernismo, escreveu “Paranoia ou Mistificação”, texto crítico a uma exposição de Anita Malfatti. A história mostrou que o escritor estava errado nas previsões sobre o futuro do movimento, mas, um século depois, suas palavras ainda podem fazer sentido, em especial quando observados, em retrospectiva, os disparates recentemente vividos neste país.

“São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento”.

 

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