quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Eleições, cidadania e ‘fake news’

O Estado de S. Paulo.

É notável o esforço da Justiça Eleitoral para enfrentar as ‘fake news’, mas são também evidentes as limitações de sua atuação. Cenário exige uma cidadania ainda mais responsável

Desde 2017, a Justiça Eleitoral promove iniciativas de combate às fake news sobre o processo eleitoral, de forma a reduzir os danos da desinformação sobre o livre exercício dos direitos políticos. No período, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) realizou diversas campanhas informativas sobre as urnas eletrônicas.

De toda forma, por mais que se reconheça o esforço da Justiça Eleitoral no enfrentamento das fake news, são também evidentes as limitações de sua atuação. Criada pelo presidente do

TSE, ministro Luís Roberto Barroso, com o objetivo de aprimorar a fiscalização e auditoria do processo eleitoral, a Comissão de Fiscalização e Transparência das Eleições mostrou ser, no ano passado, insuficiente para alterar de forma substancial a dinâmica de notícias falsas nas redes sociais, mesmo em relação ao sistema eletrônico de votação. O trabalho da comissão foi e continua sendo importantíssimo, mas é inegavelmente limitado.

Outra importante medida de combate à desinformação foi a desmonetização de canais e páginas que propagam fake news, implementada em 2021 pelo então corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Luis Felipe Salomão. No entanto, a iniciativa não alcança, por exemplo, os aplicativos de mensagem Whatsapp e Telegram, por onde se difunde muita desinformação.

O cenário atual é desafiador. Não há mais espaço para o otimismo visto anos atrás, por ocasião de algumas medidas da Justiça Eleitoral no combate à desinformação nas redes sociais. Em 2018, após a instalação de grupos de trabalho e comitês sobre o tema, o então presidente do TSE, ministro Luiz Fux, anunciou que a Justiça eleitoral seria capaz de “remover imediatamente” as notícias falsas que se espalhassem pelo País. Segundo a promessa de Fux, a ação do TSE seria tão efetiva que “falar que pode haver fake news já é uma fake news”.

Meses depois, a ministra Rosa Weber, que sucedeu a Luiz Fux na presidência do TSE, reconheceu que o combate à desinformação ultrapassava as possibilidades da Justiça Eleitoral. “Se tiverem a solução para que se evitem ou se coíbam fake news, nos apresentem. Nós ainda não descobrimos o milagre”, disse a ministra Rosa Weber, em fins de 2018.

Não há dúvida de que a Justiça Eleitoral deve seguir aprimorando as medidas para prover um ambiente eleitoral de respeito às liberdades políticas. O regime democrático não pode ficar refém da manipulação e da mentira. De toda forma, seria ilusório imaginar que, em algum momento, o Estado será capaz de impedir a circulação de toda e qualquer desinformação. A liberdade sempre envolve riscos, e a pretensão de uma completa eliminação das fake news envolveria atribuir ao Estado um poder incompatível com os direitos e garantias fundamentais.

Tudo isso reforça a importância de uma cidadania ainda mais responsável. Se a Justiça Eleitoral precisa, dentro de suas limitações, preparar-se para reduzir os danos causados pela desinformação, também a sociedade, consciente dos riscos provocados pelas fake news e outras formas de manipulação, deve precaver-se de forma especial perante o atual cenário. Seria pouco republicano queixar-se que o Estado não é capaz de coibir as fake news e, ao mesmo tempo, manter um comportamento individual acintosamente vulnerável à desinformação.

Como afirmado neste espaço em 2018, “é penoso (...) ver como pessoas instruídas compartilham supostas ‘notícias’ sem o mínimo senso crítico, repassando para familiares e amigos informações distorcidas e manipuladas, quando não inteiramente falsas” (A liberdade de informação, 27.10.2018). Infelizmente, tal comportamento continua muito frequente. O poder manipulador das fake news sobre o processo eleitoral será tão menor quanto for o cuidado da população em checar a origem das informações, buscando fontes confiáveis.

Não há solução perfeita. Não há resposta unilateral capaz de enfrentar eficazmente a manipulação e a desinformação. Estado e sociedade precisam, cada um no seu âmbito, atuar para proteger as eleições e as liberdades. A democracia merece esse cuidado.

Mais energia limpa para um mundo melhor

O Estado de S. Paulo.

A geração de energia elétrica a partir de fontes renováveis tem expansão recorde em 2021 e continuará a crescer

Talvez ainda soem um tanto retóricas afirmações frequentes de dirigentes da Agência Internacional de Energia (AIE) de que está se consolidando uma nova economia mundial de energia, baseada em fontes renováveis e limpas, neutras do ponto de vista da emissão de gás carbônico. A forte participação de combustíveis fósseis na matriz energética do planeta alimenta o ceticismo. Dados recentes e projeções para os próximos anos, no entanto, fortalecem as previsões que esse novo mundo da energia, bem menos agressivo ao meio ambiente, pode ser alcançado. Políticas governamentais, metas climáticas mais rigorosas definidas em reuniões internacionais e oportunidades econômicas geradas pela preocupação mundial com a redução das emissões de carbono impulsionam a busca por energia sustentável.

A capacidade mundial de geração de energia elétrica renovável e limpa, como a eólica e a solar, teve aumento sem precedentes em 2021, de acordo com relatório da AIE. A Agência estima que o aumento em 2021 será maior do que o de 290 gigawatts (GW) registrado em 2020. Com essa previsão, a AIE elevou para 4.800 GW suas projeções para as instalações de energia limpa disponíveis até 2026.

Essa capacidade, se alcançada, será 60% maior do que a disponível em 2020 e equivalerá a toda a capacidade atual de geração de energia elétrica de origem nuclear e de energias fósseis juntas.

De todo o aumento da capacidade de energia nos próximos cinco anos, as energias renováveis devem responder por quase 95%. A energia solar responderá por metade de tudo o que o mundo ganhará de capacidade de geração de energia. Para o diretor executivo da AIE, Fatih Birol, esses recordes “são mais um sinal de que uma nova economia global de energia está emergindo”.

A China lidera a mudança e deverá responder por mais de 40% de todo o aumento da capacidade. Em seguida vêm a União Europeia, os Estados Unidos e a Índia.

Mudanças notáveis observam-se também no Brasil. A escassez de chuvas que gerou forte preocupação com a capacidade das usinas hidrelétricas e temor de racionamento ou de apagões – além de ter elevado o custo médio da energia elétrica em razão da utilização mais intensa de usinas termoelétricas – fortaleceu a percepção geral da urgência da diversificação de fontes, para a redução da dependência do País à geração hídrica.

Segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a energia eólica representa cerca de 11% da matriz elétrica brasileira. Essa participação pode chegar a cerca de 14% em três anos. Já a energia solar responde por mais de 2% da matriz elétrica. Seu crescimento tem sido rápido. Só em 2020, a capacidade instalada em energia solar fotovoltaica cresceu 66% no País.

Caminha-se para um mundo melhor, do ponto de vista da geração de energia. Mas o ritmo de crescimento da participação de fontes limpas na matriz energética ainda é insuficiente para que o mundo alcance a neutralidade de carbono por volta de 2050, adverte a AIE.

Criada em 1974, logo depois da primeira crise do petróleo, pelos principais países consumidores para discutir formas de reduzir a dependência mundial ao fornecimento de um grupo limitado de produtores, a Agência se transformou ao longo do tempo. A segurança energética mundial continua sendo seu foco, mas a AIE, da qual fazem parte 30 países, é hoje um centro de debate mundial sobre energia, buscando a variedade de fontes, ampliação do acesso, maior eficiência, proteção ambiental e atenção às mudanças climáticas. Suas análises e suas estatísticas balizam discussões sobre esses temas para muito além dos países que a integram.

No momento, a geração de energia renovável enfrenta o problema de alta de preços de componentes e materiais. Se o nível atual se mantiver ao longo de 2022, o custo dos investimentos voltaria ao nível de cinco ou seis anos atrás, eliminando os ganhos conquistados no período. A alta dos combustíveis fósseis, no entanto, pode manter a competitividade das fontes renováveis. No médio prazo, essa competitividade deve se manter.

O fazedor de crises

Folha de S. Paulo

Ao patrocinar reajuste a policiais, Bolsonaro desperta sanha de servidores e provoca novo tumulto

A maior marca a ser deixada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) talvez seja a capacidade do presidente da República de criar graves problemas para si próprio e o país. O mandatário revelou-se insuperável nesse quesito.

Seus arroubos autoritários, a relação errática com o Congresso e o negacionismo na pandemia, entre outros comportamentos desestabilizadores, agravaram nos últimos três anos a delicada situação social e econômica brasileira.

Perspectiva de baixo crescimento, ausência de reformas, dólar caro e inflação elevada refletem, em grande medida, o estilo tosco e barulhento do presidente.

Eis que, na reta final para seu último ano de mandato, Bolsonaro armou talvez a maior bomba contra sua administração, capaz de implodir o que ainda resta da confiança dos agentes econômicos ou levar o país a ondas de paralisações no serviço público, com prejuízos para toda a população.

Ao exigir da equipe econômica, no final de 2021, dinheiro para reajustar salários de policiais federais, sua base de apoio, Bolsonaro despertou a sanha de demais servidores por elevação de vencimentos.

De pronto, centenas de auditores da Receita Federal entregaram cargos de chefia em protesto contra a falta de regulamentação de um bônus de desempenho e cortes no orçamento do órgão.

Agora, funcionários em posição de comando no Banco Central ensaiam fazer o mesmo. E servidores da área de planejamento e orçamento decidiram em assembleia aderir a paralisação, no dia 18 próximo, para pressionar o Planalto a negociar um reajuste salarial.

Novamente por sabotagem do próprio Bolsonaro, seu governo perdeu a chance de fazer uma reforma administrativa nos últimos três anos. A solução da equipe econômica foi congelar os vencimentos dos servidores civis. Pois, segundo estimativa oficial, cada 1% de aumento linear ao funcionalismo custaria R$ 3 bilhões.

É provável que a pressão atual por reajustes não existisse, ou fosse bem menor, se o presidente não tivesse liderado o movimento ao conceder aumento aos policiais e ao ter aventado, no início de dezembro, a possibilidade de um reajuste a todo o funcionalismo.

Afinal, ao longo dos últimos dois anos pandêmicos, os servidores públicos foram talvez o único grupo a não ter perdido parte de seus rendimentos ou empregos —algo que se tornou praxe no setor privado.

Ademais, segundo o Banco Mundial, o prêmio salarial para os servidores federais no Brasil, na comparação com seus equivalentes (inclusive por escolaridade) na iniciativa privada, chega a 67%.

Mas, consistente, Bolsonaro não perderia nova chance de tumultuar.

Retrato da invasão

Folha de S. Paulo

Pesquisa mostra perfil complexo e preocupante dos responsáveis pelo ataque ao Capitólio

A célebre imagem de um homem fantasiado de viking na invasão do Capitólio, há um ano, pode ter passado a impressão de que os responsáveis pela ação se resumiam a fanáticos afiliados a grupos extremistas.

O cenário identificado por uma pesquisa da Universidade de Chicago com base no perfil dos invasores é bem mais complexo e preocupante. Mais da metade são empresários ou trabalhadores não manuais.

Praticamente todos têm ao menos o ensino médio completo, e um terço, curso superior ou pós-graduação. Apenas 1 em cada 7 tem ligação com grupos radicais.

Outra conclusão da pesquisa é alarmante: 8% dos americanos adultos acham justificável o uso de violência para reverter a eleição de Joe Biden com base em suposta existência de fraudes. São 21 milhões de pessoas, ou uma Grande São Paulo, dispostas a praticar atos ilegais de força para reinstalar Donald Trump na Casa Branca.

O estudo mostra como é simplista atribuir o fenômeno da ultradireita a uma minoria de desajustados manipulada por populistas que exploram a precariedade da economia. Parece haver uma razão mais profunda a atrair pessoas bem estabelecidas profissionalmente para processos de radicalização.

Uma hipótese apontada é a avaliação de homens brancos de que sua posição social estaria ameaçada por imigrantes e minorias.

Este cenário não é exclusividade americana. Na França, o candidato presidencial Eric Zemmour abraça a teoria do "declinismo", gerado pela ascensão de grupos muçulmanos, enquanto no Chile José Antonio Kast chegou ao segundo turno da recente eleição prometendo construir um fosso na fronteira norte do país contra imigrantes.

No Brasil, o discurso anti-imigração não tem a mesma força, mas é compensado por "ameaças" exploradas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), das novas expressões de gênero às ações compensatórias raciais.

Na campanha que se avizinha, o presidente deverá ter como estratégia alimentar o sentimento de que a coesão social está sob risco em meio a este novo ativismo identitário.

O risco é o radicalismo presidencial adentrar o mainstream por aqui também, gerando uma situação potencialmente perigosa, especialmente em caso de eleição contestada. Não é um cenário impensável: no passado, setores médios e empresariais já deram mostras de que são permeáveis à retórica do capitão.

Saúde é preservada graças a instituições independentes

O Globo

Em desafio à postura anticientífica do governo federal e aos interesses privados que nem sempre levam em conta a emergência sanitária, as instituições brasileiras têm dado mostra de resistir às pressões, adotando as medidas adequadas para preservar a saúde dos brasileiros na pandemia. Isso ficou claro em pelo menos três casos nos últimos dias: a vacinação infantil contra a Covid-19, a exigência de passaporte sanitário nas universidades federais e a suspensão de cruzeiros turísticos diante do avanço da variante Ômicron do coronavírus.

Depois de criar todo tipo de obstáculo à vacinação das crianças entre 5 e 11 anos — incluindo uma descabida e inédita consulta pública e a absurda exigência de receita médica—, o Ministério da Saúde anunciou que 20 milhões de doses estarão disponíveis até março. Isso só aconteceu após a cobrança do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), por celeridade (ele deu prazo até hoje para que haja um calendário). Estados e municípios ignorarão as exigências estapafúrdias — e as crianças brasileiras enfim serão vacinadas.

Liminar do próprio Lewandowski derrubou o veto do Ministério da Educação à exigência de passaporte de vacinação em instituições federais de ensino. A portaria do ministério desrespeitava a autonomia universitária, ignorava as peculiaridades regionais da epidemia e desprezava recomendações científicas para aumentar a segurança de alunos, professores e funcionários. É ridículo o argumento de que o passaporte só poderia ser determinado por lei. Ele já é adotado na maioria das capitais para acesso a serviços.

Em sua decisão, Lewandowski afirmou que as instituições federais de ensino têm autonomia para exigir o comprovante de vacinação. Disse ainda que o MEC contraria evidências científicas e sustenta a exigência de legislação federal quando já existe uma lei, de fevereiro de 2020, que permite às autoridades tomar medidas para conter o avanço da doença. Na verdade, a decisão do MEC tem o objetivo de agradar ao presidente Jair Bolsonaro, crítico ferrenho do passaporte sanitário e da obrigatoriedade da vacina. O STF não poderia deixar prosperar essa insensatez.

Também agiu corretamente a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ao recomendar a suspensão da temporada de cruzeiros no país. Nos últimos dias, houve uma explosão de contaminação — os cinco navios que operam na costa brasileira confirmaram casos de Covid-19 a bordo. Embora as empresas aleguem que os percentuais são ínfimos em relação à capacidade das embarcações (menos de 1%), os transtornos são inexoráveis, como tem sido fartamente noticiado. Na segunda-feira, antecipando-se ao governo, as próprias operadoras resolveram suspender as viagens até 21 de janeiro.

Num momento em que o número de casos de Covid-19 volta a subir no país, causando temor de uma nova onda, como na Europa e nos Estados Unidos, é fundamental que as instituições continuem a agir com independência, cumprindo seu papel de preservar a saúde dos brasileiros — alguém precisa fazê-lo diante da omissão e inépcia do governo federal. Depois de dois anos de pandemia e quase 620 mil mortos, já ficou claro aonde se pode chegar quando a ciência é relegada a segundo plano em nome de interesses alheios à saúde.

Saldo recorde da balança reflete as características da economia brasileira

O Globo

O recorde da balança comercial registrado no ano passado — um superávit de US$ 61 bilhões, o maior da série histórica — precisa ser encarado de forma serena. Não se trata de uma vitória, mas de um reflexo das características da economia brasileira, tanto positivas quanto negativas.

No campo positivo, o saldo comprova a força do país como grande exportador de matérias-primas. O resultado deriva da alta no preço de produtos como soja e minério de ferro no mercado internacional, decorrente da recuperação econômica desigual e dos gargalos logísticos que sucederam à pandemia. Como o volume nas vendas não cresceu, a tendência é que neste ano as exportações sejam mais modestas.

Ainda no campo positivo, a corrente comercial — soma de exportações e importações — cresceu 36%, para US$ 500 bilhões, demonstrando maior integração do país nos fluxos globais de mercadorias e serviços. A alta de 38% nas importações, para perto de US$ 220 bilhões, resulta da recuperação da atividade em relação à base deprimida pela recessão pandêmica de 2020.

No campo negativo, o resultado ficou aquém das projeções iniciais do Ministério da Economia, sobretudo em virtude da necessidade maior de importações de energia e da variação cambial. O próprio ministério reconhece que o desempenho neste ano será inferior. Parte da responsabilidade caberá à desaceleração da economia da China, nosso maior parceiro comercial.

Seria um erro considerar que, quanto maior o saldo comercial, melhor para o país. É verdade que o Brasil depende de capital externo para investimentos que dinamizem sua economia. E que a balança comercial contribui para reduzir a necessidade de captar recursos no mercado internacional. Mas essa necessidade é hoje menor do que já foi no passado, sobretudo em virtude das reservas acumuladas (elas fecharam 2021 em US$ 362 bilhões).

O maior problema da nossa economia continua a ser a dificuldade de gerar um nível de poupança interna que nos permita reduzir essa dependência de capital externo. O saldo positivo da balança comercial não resolve essa deficiência.

A necessidade de atrair recursos externos também obriga o governo a manter os juros mais altos, encarecendo o crédito e a produção. Seria mais saudável para o país se as contas públicas apresentassem superávits consistentes ao longo do tempo. Isso permitiria que o governo usasse os recursos excedentes para assegurar sua poupança externa (foi o que a China fez para acumular suas reservas). Com nossa dificuldade crônica para enxugar a máquina pública e manter o Estado num tamanho compatível com a geração de riqueza pela sociedade, tal estratégia é inviável. Daí ainda dependermos tanto dos saldos comerciais e das exportações de matérias-primas.

Saldo comercial recorde expõe ineficiência produtiva

Valor Econômico

O Brasil será uma das economias emergentes que menos crescerá este ano - se crescer

Fortes desvalorizações do dólar ao longo da pandemia levaram a um superávit comercial recorde no ano passado, de US$ 61 bilhões, e a um recorde em exportações (US$ 280,39 bilhões), mas não evitou a decadência da competitividade dos manufaturados brasileiros. A pauta de vendas ao exterior está cada vez mais concentrada e com seu dinamismo voltado para os bens primários provenientes da agricultura e da indústria extrativa. A balança da indústria de transformação registrou déficit de US$ 53,36 bilhões no ano passado.

Apesar do câmbio favorável, e contrariando os manuais, as importações da indústria de transformação cresceram mais que as exportações - 35,1% e 26,3%, respectivamente. Também em contradição com o que se poderia supor diante de um real superdesvalorizado, o país teve déficits em praticamente todos os mercados compradores relevantes, com exceção da Ásia, onde a participação da China é preponderante. O Brasil teve pequeno saldo negativo em suas transações com a Argentina (de US$ 70 milhões), um resultado negativo pouco maior com União Europeia (- US$ 1,73 bilhões) e outro, substancial, com os Estados Unidos (-US$ 8,28 bilhões).

As commodities agrícolas e minerais garantiram o saldo positivo da balança brasileira, e a China, mercado do qual o país é cada vez mais dependente, assegurou dois terços do resultado comercial, ou US$ 41,4 bilhões. A Ásia compra quase metade dos bens exportados brasileiros (46,3%) e a China, quase um terço (32,1%), embora a fatia da região e do país tenham tido um pequeno declínio no ano passado.

Como esses mercados relevantes são também concorrentes mais competitivos do Brasil em bens manufaturados, as commodities continuaram avançando na composição da pauta de vendas brasileiras. Minério de ferro, óleos brutos e cobre somam US$ 78,1 bilhões das exportações, mais de um quarto do total. Se a eles forem acrescidos, soja e café não torrado, mais farelo de soja e carnes de aves (ambos classificados como produtos da indústria de transformação), as vendas somam US$ 137 bilhões - apenas sete categorias de produtos compõem a metade de tudo o que o Brasil exportou no ano passado.

Em 2022 a performance das exportações brasileiras provavelmente não se repetirá, mesmo que expectativas de valorização do real não se concretizem. 2021 foi o ano de consolidação da recuperação da devastação provocada pela pandemia e o comércio mundial, segundo estimativa da Organização Mundial do Comércio, deve ter crescido 10,8%. Para este ano a cifra cai a menos da metade, 4,7%.

Além disso, o pico da recuperação já ficou para trás nas principais economias desenvolvidas, em particular nos EUA, onde o crescimento deverá desacelerar para 4% este ano, ainda assim bem acima de sua tendência histórica. Esta perspectiva supõe que o início da redução da enorme liquidez global por parte do Fed e dos demais bancos centrais se dê de forma tranquila e previsível e não provoque tumultos financeiros, o que não está de forma alguma assegurado. A China está em desaceleração, sua participação no impulso ao crescimento da economia global diminuiu e é crescente a possibilidade de que não mais repetirá as taxas de expansão aceleradas da última década.

O crescimento mais moderado das economias desenvolvidas deve conter os preços das commodities, que serão mais comportados e possivelmente menos voláteis do que foram nos últimos dois anos. Em 2021, o crescimento dos preços foi determinante para o saldo recorde, com evolução de 28,3%, ante apenas 3,5 nas quantidades vendidas. Nas commodities metálicas, os preços saltaram 62,4%. Dada a dependência crescente delas, o saldo comercial pode cair um pouco. Para a inflação doméstica isto será positivo e poderá aliviar a carga de juros necessária para trazê-la de volta à meta, desde que a variação do dólar em relação ao real não dispare, como no passado recente. As chances de valorização do real em um ano eleitoral, porém, são diminutas.

Por outro lado, o Brasil será uma das economias emergentes que menos crescerá este ano - se crescer. Ainda que seja difícil bater novo superávit recorde, a participação do setor externo no crescimento será positiva, ao contrário de 2021, quando deve ter retirado 1,4 ponto percentual do PIB (segundo previsão do Banco Central). As importações diminuirão com a menor atividade, enquanto que as exportações aumentarão, embora em ritmo mais comedido que no ano passado.

 

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