EDITORIAIS
Eleições, cidadania e ‘fake news’
O Estado de S. Paulo.
É notável o esforço da Justiça Eleitoral
para enfrentar as ‘fake news’, mas são também evidentes as limitações de sua
atuação. Cenário exige uma cidadania ainda mais responsável
Desde 2017, a Justiça Eleitoral promove
iniciativas de combate às fake news sobre o processo eleitoral, de forma a
reduzir os danos da desinformação sobre o livre exercício dos direitos
políticos. No período, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) realizou diversas
campanhas informativas sobre as urnas eletrônicas.
De toda forma, por mais que se reconheça o
esforço da Justiça Eleitoral no enfrentamento das fake news, são também
evidentes as limitações de sua atuação. Criada pelo presidente do
TSE, ministro Luís Roberto Barroso, com o
objetivo de aprimorar a fiscalização e auditoria do processo eleitoral, a
Comissão de Fiscalização e Transparência das Eleições mostrou ser, no ano
passado, insuficiente para alterar de forma substancial a dinâmica de notícias
falsas nas redes sociais, mesmo em relação ao sistema eletrônico de votação. O
trabalho da comissão foi e continua sendo importantíssimo, mas é inegavelmente
limitado.
Outra importante medida de combate à
desinformação foi a desmonetização de canais e páginas que propagam fake news,
implementada em 2021 pelo então corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Luis
Felipe Salomão. No entanto, a iniciativa não alcança, por exemplo, os
aplicativos de mensagem Whatsapp e Telegram, por onde se difunde muita
desinformação.
O cenário atual é desafiador. Não há mais espaço para o otimismo visto anos atrás, por ocasião de algumas medidas da Justiça Eleitoral no combate à desinformação nas redes sociais. Em 2018, após a instalação de grupos de trabalho e comitês sobre o tema, o então presidente do TSE, ministro Luiz Fux, anunciou que a Justiça eleitoral seria capaz de “remover imediatamente” as notícias falsas que se espalhassem pelo País. Segundo a promessa de Fux, a ação do TSE seria tão efetiva que “falar que pode haver fake news já é uma fake news”.
Meses depois, a ministra Rosa Weber, que
sucedeu a Luiz Fux na presidência do TSE, reconheceu que o combate à
desinformação ultrapassava as possibilidades da Justiça Eleitoral. “Se tiverem
a solução para que se evitem ou se coíbam fake news, nos apresentem. Nós ainda
não descobrimos o milagre”, disse a ministra Rosa Weber, em fins de 2018.
Não há dúvida de que a Justiça Eleitoral
deve seguir aprimorando as medidas para prover um ambiente eleitoral de
respeito às liberdades políticas. O regime democrático não pode ficar refém da
manipulação e da mentira. De toda forma, seria ilusório imaginar que, em algum
momento, o Estado será capaz de impedir a circulação de toda e qualquer
desinformação. A liberdade sempre envolve riscos, e a pretensão de uma completa
eliminação das fake news envolveria atribuir ao Estado um poder incompatível
com os direitos e garantias fundamentais.
Tudo isso reforça a importância de uma
cidadania ainda mais responsável. Se a Justiça Eleitoral precisa, dentro de
suas limitações, preparar-se para reduzir os danos causados pela desinformação,
também a sociedade, consciente dos riscos provocados pelas fake news e outras
formas de manipulação, deve precaver-se de forma especial perante o atual
cenário. Seria pouco republicano queixar-se que o Estado não é capaz de coibir
as fake news e, ao mesmo tempo, manter um comportamento individual
acintosamente vulnerável à desinformação.
Como afirmado neste espaço em 2018, “é
penoso (...) ver como pessoas instruídas compartilham supostas ‘notícias’ sem o
mínimo senso crítico, repassando para familiares e amigos informações
distorcidas e manipuladas, quando não inteiramente falsas” (A liberdade de
informação, 27.10.2018). Infelizmente, tal comportamento continua muito
frequente. O poder manipulador das fake news sobre o processo eleitoral será
tão menor quanto for o cuidado da população em checar a origem das informações,
buscando fontes confiáveis.
Não há solução perfeita. Não há resposta
unilateral capaz de enfrentar eficazmente a manipulação e a desinformação.
Estado e sociedade precisam, cada um no seu âmbito, atuar para proteger as
eleições e as liberdades. A democracia merece esse cuidado.
Mais energia limpa para um mundo melhor
O Estado de S. Paulo.
A geração de energia elétrica a partir de
fontes renováveis tem expansão recorde em 2021 e continuará a crescer
Talvez ainda soem um tanto retóricas
afirmações frequentes de dirigentes da Agência Internacional de Energia (AIE)
de que está se consolidando uma nova economia mundial de energia, baseada em
fontes renováveis e limpas, neutras do ponto de vista da emissão de gás
carbônico. A forte participação de combustíveis fósseis na matriz energética do
planeta alimenta o ceticismo. Dados recentes e projeções para os próximos anos,
no entanto, fortalecem as previsões que esse novo mundo da energia, bem menos
agressivo ao meio ambiente, pode ser alcançado. Políticas governamentais, metas
climáticas mais rigorosas definidas em reuniões internacionais e oportunidades
econômicas geradas pela preocupação mundial com a redução das emissões de
carbono impulsionam a busca por energia sustentável.
A capacidade mundial de geração de energia
elétrica renovável e limpa, como a eólica e a solar, teve aumento sem
precedentes em 2021, de acordo com relatório da AIE. A Agência estima que o
aumento em 2021 será maior do que o de 290 gigawatts (GW) registrado em 2020.
Com essa previsão, a AIE elevou para 4.800 GW suas projeções para as
instalações de energia limpa disponíveis até 2026.
Essa capacidade, se alcançada, será 60%
maior do que a disponível em 2020 e equivalerá a toda a capacidade atual de
geração de energia elétrica de origem nuclear e de energias fósseis juntas.
De todo o aumento da capacidade de energia
nos próximos cinco anos, as energias renováveis devem responder por quase 95%.
A energia solar responderá por metade de tudo o que o mundo ganhará de
capacidade de geração de energia. Para o diretor executivo da AIE, Fatih Birol,
esses recordes “são mais um sinal de que uma nova economia global de energia
está emergindo”.
A China lidera a mudança e deverá responder
por mais de 40% de todo o aumento da capacidade. Em seguida vêm a União
Europeia, os Estados Unidos e a Índia.
Mudanças notáveis observam-se também no
Brasil. A escassez de chuvas que gerou forte preocupação com a capacidade das
usinas hidrelétricas e temor de racionamento ou de apagões – além de ter
elevado o custo médio da energia elétrica em razão da utilização mais intensa
de usinas termoelétricas – fortaleceu a percepção geral da urgência da
diversificação de fontes, para a redução da dependência do País à geração hídrica.
Segundo o Operador Nacional do Sistema
Elétrico (ONS), a energia eólica representa cerca de 11% da matriz elétrica
brasileira. Essa participação pode chegar a cerca de 14% em três anos. Já a
energia solar responde por mais de 2% da matriz elétrica. Seu crescimento tem
sido rápido. Só em 2020, a capacidade instalada em energia solar fotovoltaica
cresceu 66% no País.
Caminha-se para um mundo melhor, do ponto
de vista da geração de energia. Mas o ritmo de crescimento da participação de
fontes limpas na matriz energética ainda é insuficiente para que o mundo
alcance a neutralidade de carbono por volta de 2050, adverte a AIE.
Criada em 1974, logo depois da primeira
crise do petróleo, pelos principais países consumidores para discutir formas de
reduzir a dependência mundial ao fornecimento de um grupo limitado de
produtores, a Agência se transformou ao longo do tempo. A segurança energética
mundial continua sendo seu foco, mas a AIE, da qual fazem parte 30 países, é
hoje um centro de debate mundial sobre energia, buscando a variedade de fontes,
ampliação do acesso, maior eficiência, proteção ambiental e atenção às mudanças
climáticas. Suas análises e suas estatísticas balizam discussões sobre esses
temas para muito além dos países que a integram.
No momento, a geração de energia renovável
enfrenta o problema de alta de preços de componentes e materiais. Se o nível
atual se mantiver ao longo de 2022, o custo dos investimentos voltaria ao nível
de cinco ou seis anos atrás, eliminando os ganhos conquistados no período. A
alta dos combustíveis fósseis, no entanto, pode manter a competitividade das
fontes renováveis. No médio prazo, essa competitividade deve se manter.
O fazedor de crises
Folha de S. Paulo
Ao patrocinar reajuste a policiais,
Bolsonaro desperta sanha de servidores e provoca novo tumulto
A maior marca a ser deixada pelo governo de
Jair Bolsonaro (PL) talvez seja a capacidade do presidente da República de
criar graves problemas para si próprio e o país. O mandatário revelou-se
insuperável nesse quesito.
Seus arroubos
autoritários, a relação errática com o Congresso e o negacionismo
na pandemia, entre outros comportamentos desestabilizadores,
agravaram nos últimos três anos a delicada situação social e econômica
brasileira.
Perspectiva de baixo crescimento, ausência
de reformas, dólar caro e inflação elevada refletem, em grande medida, o estilo
tosco e barulhento do presidente.
Eis que, na reta final para seu último ano
de mandato, Bolsonaro armou talvez a maior bomba contra sua administração,
capaz de implodir o que ainda resta da confiança dos agentes econômicos ou
levar o país a ondas de paralisações no serviço público, com prejuízos para
toda a população.
Ao exigir da equipe econômica, no final de
2021, dinheiro para reajustar
salários de policiais federais, sua base de apoio, Bolsonaro
despertou a sanha de demais servidores por elevação de vencimentos.
De pronto, centenas de auditores da Receita
Federal entregaram cargos de chefia em protesto contra a falta de
regulamentação de um bônus de desempenho e cortes no orçamento do órgão.
Agora, funcionários em posição de comando
no Banco Central
ensaiam fazer o mesmo. E servidores da área de planejamento e
orçamento decidiram em assembleia aderir a paralisação, no dia 18 próximo, para
pressionar o Planalto a negociar um reajuste salarial.
Novamente por sabotagem do próprio
Bolsonaro, seu governo perdeu a chance de fazer uma reforma administrativa nos
últimos três anos. A solução da equipe econômica foi congelar os vencimentos
dos servidores civis. Pois, segundo estimativa oficial, cada 1% de aumento
linear ao funcionalismo custaria R$ 3 bilhões.
É provável que a pressão atual por
reajustes não existisse, ou fosse bem menor, se o presidente não tivesse
liderado o movimento ao conceder aumento aos policiais e ao ter aventado, no
início de dezembro, a possibilidade de um reajuste a todo o funcionalismo.
Afinal, ao longo dos últimos dois anos
pandêmicos, os servidores públicos foram talvez o único grupo a não ter perdido
parte de seus rendimentos ou empregos —algo que se tornou praxe no setor
privado.
Ademais, segundo o Banco Mundial, o prêmio
salarial para os servidores federais no Brasil, na comparação com seus
equivalentes (inclusive por escolaridade) na iniciativa privada, chega a 67%.
Mas, consistente, Bolsonaro não perderia
nova chance de tumultuar.
Retrato da invasão
Folha de S. Paulo
Pesquisa mostra perfil complexo e
preocupante dos responsáveis pelo ataque ao Capitólio
A célebre imagem de um homem fantasiado de
viking na invasão do
Capitólio, há um ano, pode ter passado a impressão de que os
responsáveis pela ação se resumiam a fanáticos afiliados a grupos extremistas.
O cenário
identificado por uma pesquisa da Universidade de Chicago com
base no perfil dos invasores é bem mais complexo e preocupante. Mais da metade
são empresários ou trabalhadores não manuais.
Praticamente todos têm ao menos o ensino
médio completo, e um terço, curso superior ou pós-graduação. Apenas 1 em cada 7
tem ligação com grupos radicais.
Outra conclusão da pesquisa é alarmante: 8%
dos americanos adultos acham justificável o uso de violência para reverter a
eleição de Joe Biden com base em suposta existência de fraudes. São 21 milhões
de pessoas, ou uma Grande São Paulo, dispostas a praticar atos ilegais de força
para reinstalar Donald Trump na Casa Branca.
O estudo mostra como é simplista atribuir o
fenômeno da ultradireita a uma minoria de desajustados manipulada por
populistas que exploram a precariedade da economia. Parece haver uma razão mais
profunda a atrair pessoas bem estabelecidas profissionalmente para processos de
radicalização.
Uma hipótese apontada é a avaliação de
homens brancos de que sua posição social estaria ameaçada por imigrantes e
minorias.
Este cenário não é exclusividade
americana. Na França, o
candidato presidencial Eric Zemmour abraça a teoria do "declinismo",
gerado pela ascensão de grupos muçulmanos, enquanto
no Chile José Antonio Kast chegou ao segundo turno da recente eleição prometendo
construir um fosso na fronteira norte do país contra imigrantes.
No Brasil, o discurso anti-imigração não
tem a mesma força, mas é compensado por "ameaças" exploradas pelo
presidente Jair Bolsonaro (PL), das novas expressões de gênero às ações
compensatórias raciais.
Na campanha que se avizinha, o presidente
deverá ter como estratégia alimentar o sentimento de que a coesão social está
sob risco em meio a este novo ativismo identitário.
O risco é o radicalismo presidencial adentrar o mainstream por aqui também, gerando uma situação potencialmente perigosa, especialmente em caso de eleição contestada. Não é um cenário impensável: no passado, setores médios e empresariais já deram mostras de que são permeáveis à retórica do capitão.
Saúde é preservada graças a instituições
independentes
O Globo
Em desafio à postura anticientífica do
governo federal e aos interesses privados que nem sempre levam em conta a
emergência sanitária, as instituições brasileiras têm dado mostra de resistir
às pressões, adotando as medidas adequadas para preservar a saúde dos
brasileiros na pandemia. Isso ficou claro em pelo menos três casos nos últimos
dias: a vacinação infantil contra a Covid-19, a exigência de passaporte
sanitário nas universidades federais e a suspensão de cruzeiros turísticos
diante do avanço da variante Ômicron do coronavírus.
Depois de criar todo tipo de obstáculo à
vacinação das crianças entre 5 e 11 anos — incluindo uma descabida e inédita consulta
pública e a absurda exigência de receita médica—, o Ministério da Saúde
anunciou que 20 milhões de doses estarão disponíveis até março. Isso só
aconteceu após a cobrança do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal
Federal (STF), por celeridade (ele deu prazo até hoje para que haja um
calendário). Estados e municípios ignorarão as exigências estapafúrdias — e as
crianças brasileiras enfim serão vacinadas.
Liminar do próprio Lewandowski derrubou o
veto do Ministério da Educação à exigência de passaporte de vacinação em
instituições federais de ensino. A portaria do ministério desrespeitava a
autonomia universitária, ignorava as peculiaridades regionais da epidemia e
desprezava recomendações científicas para aumentar a segurança de alunos, professores
e funcionários. É ridículo o argumento de que o passaporte só poderia ser
determinado por lei. Ele já é adotado na maioria das capitais para acesso a
serviços.
Em sua decisão, Lewandowski afirmou que as
instituições federais de ensino têm autonomia para exigir o comprovante de
vacinação. Disse ainda que o MEC contraria evidências científicas e sustenta a
exigência de legislação federal quando já existe uma lei, de fevereiro de 2020,
que permite às autoridades tomar medidas para conter o avanço da doença. Na
verdade, a decisão do MEC tem o objetivo de agradar ao presidente Jair
Bolsonaro, crítico ferrenho do passaporte sanitário e da obrigatoriedade da
vacina. O STF não poderia deixar prosperar essa insensatez.
Também agiu corretamente a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) ao recomendar a suspensão da temporada de
cruzeiros no país. Nos últimos dias, houve uma explosão de contaminação — os
cinco navios que operam na costa brasileira confirmaram casos de Covid-19 a
bordo. Embora as empresas aleguem que os percentuais são ínfimos em relação à
capacidade das embarcações (menos de 1%), os transtornos são inexoráveis, como
tem sido fartamente noticiado. Na segunda-feira, antecipando-se ao governo, as
próprias operadoras resolveram suspender as viagens até 21 de janeiro.
Num momento em que o número de casos de
Covid-19 volta a subir no país, causando temor de uma nova onda, como na Europa
e nos Estados Unidos, é fundamental que as instituições continuem a agir com
independência, cumprindo seu papel de preservar a saúde dos brasileiros —
alguém precisa fazê-lo diante da omissão e inépcia do governo federal. Depois
de dois anos de pandemia e quase 620 mil mortos, já ficou claro aonde se pode
chegar quando a ciência é relegada a segundo plano em nome de interesses
alheios à saúde.
Saldo recorde da balança reflete as
características da economia brasileira
O Globo
O recorde da balança comercial registrado
no ano passado — um superávit de US$ 61 bilhões, o maior da série histórica —
precisa ser encarado de forma serena. Não se trata de uma vitória, mas de um
reflexo das características da economia brasileira, tanto positivas quanto
negativas.
No campo positivo, o saldo comprova a força
do país como grande exportador de matérias-primas. O resultado deriva da alta
no preço de produtos como soja e minério de ferro no mercado internacional,
decorrente da recuperação econômica desigual e dos gargalos logísticos que
sucederam à pandemia. Como o volume nas vendas não cresceu, a tendência é que
neste ano as exportações sejam mais modestas.
Ainda no campo positivo, a corrente
comercial — soma de exportações e importações — cresceu 36%, para US$ 500
bilhões, demonstrando maior integração do país nos fluxos globais de
mercadorias e serviços. A alta de 38% nas importações, para perto de US$ 220
bilhões, resulta da recuperação da atividade em relação à base deprimida pela
recessão pandêmica de 2020.
No campo negativo, o resultado ficou aquém
das projeções iniciais do Ministério da Economia, sobretudo em virtude da
necessidade maior de importações de energia e da variação cambial. O próprio
ministério reconhece que o desempenho neste ano será inferior. Parte da
responsabilidade caberá à desaceleração da economia da China, nosso maior
parceiro comercial.
Seria um erro considerar que, quanto maior
o saldo comercial, melhor para o país. É verdade que o Brasil depende de
capital externo para investimentos que dinamizem sua economia. E que a balança
comercial contribui para reduzir a necessidade de captar recursos no mercado
internacional. Mas essa necessidade é hoje menor do que já foi no passado,
sobretudo em virtude das reservas acumuladas (elas fecharam 2021 em US$ 362
bilhões).
O maior problema da nossa economia continua
a ser a dificuldade de gerar um nível de poupança interna que nos permita
reduzir essa dependência de capital externo. O saldo positivo da balança
comercial não resolve essa deficiência.
A necessidade de atrair recursos externos
também obriga o governo a manter os juros mais altos, encarecendo o crédito e a
produção. Seria mais saudável para o país se as contas públicas apresentassem
superávits consistentes ao longo do tempo. Isso permitiria que o governo usasse
os recursos excedentes para assegurar sua poupança externa (foi o que a China
fez para acumular suas reservas). Com nossa dificuldade crônica para enxugar a
máquina pública e manter o Estado num tamanho compatível com a geração de
riqueza pela sociedade, tal estratégia é inviável. Daí ainda dependermos tanto
dos saldos comerciais e das exportações de matérias-primas.
Saldo comercial recorde expõe ineficiência
produtiva
Valor Econômico
O Brasil será uma das economias emergentes
que menos crescerá este ano - se crescer
Fortes desvalorizações do dólar ao longo da
pandemia levaram a um superávit comercial recorde no ano passado, de US$ 61
bilhões, e a um recorde em exportações (US$ 280,39 bilhões), mas não evitou a
decadência da competitividade dos manufaturados brasileiros. A pauta de vendas
ao exterior está cada vez mais concentrada e com seu dinamismo voltado para os
bens primários provenientes da agricultura e da indústria extrativa. A balança
da indústria de transformação registrou déficit de US$ 53,36 bilhões no ano passado.
Apesar do câmbio favorável, e contrariando
os manuais, as importações da indústria de transformação cresceram mais que as
exportações - 35,1% e 26,3%, respectivamente. Também em contradição com o que
se poderia supor diante de um real superdesvalorizado, o país teve déficits em
praticamente todos os mercados compradores relevantes, com exceção da Ásia,
onde a participação da China é preponderante. O Brasil teve pequeno saldo
negativo em suas transações com a Argentina (de US$ 70 milhões), um resultado
negativo pouco maior com União Europeia (- US$ 1,73 bilhões) e outro,
substancial, com os Estados Unidos (-US$ 8,28 bilhões).
As commodities agrícolas e minerais
garantiram o saldo positivo da balança brasileira, e a China, mercado do qual o
país é cada vez mais dependente, assegurou dois terços do resultado comercial,
ou US$ 41,4 bilhões. A Ásia compra quase metade dos bens exportados brasileiros
(46,3%) e a China, quase um terço (32,1%), embora a fatia da região e do país
tenham tido um pequeno declínio no ano passado.
Como esses mercados relevantes são também
concorrentes mais competitivos do Brasil em bens manufaturados, as commodities
continuaram avançando na composição da pauta de vendas brasileiras. Minério de
ferro, óleos brutos e cobre somam US$ 78,1 bilhões das exportações, mais de um
quarto do total. Se a eles forem acrescidos, soja e café não torrado, mais
farelo de soja e carnes de aves (ambos classificados como produtos da indústria
de transformação), as vendas somam US$ 137 bilhões - apenas sete categorias de
produtos compõem a metade de tudo o que o Brasil exportou no ano passado.
Em 2022 a performance das exportações
brasileiras provavelmente não se repetirá, mesmo que expectativas de
valorização do real não se concretizem. 2021 foi o ano de consolidação da
recuperação da devastação provocada pela pandemia e o comércio mundial, segundo
estimativa da Organização Mundial do Comércio, deve ter crescido 10,8%. Para
este ano a cifra cai a menos da metade, 4,7%.
Além disso, o pico da recuperação já ficou
para trás nas principais economias desenvolvidas, em particular nos EUA, onde o
crescimento deverá desacelerar para 4% este ano, ainda assim bem acima de sua
tendência histórica. Esta perspectiva supõe que o início da redução da enorme
liquidez global por parte do Fed e dos demais bancos centrais se dê de forma
tranquila e previsível e não provoque tumultos financeiros, o que não está de
forma alguma assegurado. A China está em desaceleração, sua participação no
impulso ao crescimento da economia global diminuiu e é crescente a
possibilidade de que não mais repetirá as taxas de expansão aceleradas da
última década.
O crescimento mais moderado das economias
desenvolvidas deve conter os preços das commodities, que serão mais comportados
e possivelmente menos voláteis do que foram nos últimos dois anos. Em 2021, o
crescimento dos preços foi determinante para o saldo recorde, com evolução de
28,3%, ante apenas 3,5 nas quantidades vendidas. Nas commodities metálicas, os
preços saltaram 62,4%. Dada a dependência crescente delas, o saldo comercial
pode cair um pouco. Para a inflação doméstica isto será positivo e poderá
aliviar a carga de juros necessária para trazê-la de volta à meta, desde que a
variação do dólar em relação ao real não dispare, como no passado recente. As
chances de valorização do real em um ano eleitoral, porém, são diminutas.
Por outro lado, o Brasil será uma das
economias emergentes que menos crescerá este ano - se crescer. Ainda que seja
difícil bater novo superávit recorde, a participação do setor externo no
crescimento será positiva, ao contrário de 2021, quando deve ter retirado 1,4
ponto percentual do PIB (segundo previsão do Banco Central). As importações
diminuirão com a menor atividade, enquanto que as exportações aumentarão, embora
em ritmo mais comedido que no ano passado.
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