domingo, 30 de janeiro de 2022

Poesia| João Cabral de Melo Neto: Volta a Pernambuco

A Benedito Coutinho

Contemplando a maré baixa

nos mangues de Tijipió

lembro a baía de Dublin

que daqui já me lembrou.

 

Em meio à bacia negra

desta maré quando em cio,

eis a Albufera, Valência,

onde o Recife surgiu.

 

As janelas do cais da Aurora,

olhos cumpridos, vadios,

incansáveis como em Chelsea

veem rio substituir rio,

 

e estas várzeas de Tiúma,

com seus estendais de cana,

vem devolver-me os trigais

de Guadalajara, Espanha.

 

(Culturas de folhas finas

e mais discreta presença,

lá como aqui, dos desertos

possuem a transparência,

 

e o canavial me devolve,

na luz de páramo puro,

um mar sem ilha, os trigais

onde senti Pernambuco.)

 

Mas as lajes da cidade

não me devolvem só uma,

nem foi uma só cidade

que me lembrou estas ruas.

 

As cidades se parecem

nas pedras do calçamento,

artérias iguais regando

faces de vário cimento,

 

por onde iguais procissões

do trabalho (sem ardor)

vão levar o seu produto

aos mercados do suor.

 

Todas lembram o Recife,

este em todas se situa,

em todas em que é um crime

para o povo estar na rua,

 

em todas em que este crime

– traço comum que surpreende –

pôs nódoas de vida humana

nas pedras do pavimento.

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