terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Cristian Klein: Bolsonaro, face inversa do PSDB

Valor Econômico

Tucanos minimizavam costumes; eleitores de presidente, a economia

A polarização entre Lula (PT) e Bolsonaro (PL) criou um cemitério de candidaturas das quais já nem nos lembramos mais: do apresentador de TV Luciano Huck, ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (União Brasil), passando pelo incrível caso de João Amoêdo (Novo), alijado da própria legenda que fundou. Em comum, aqueles que tiveram pouco poder de fogo para se manter na disputa padeceram, entre outros fatores, dos ataques vindos das hostes do bolsonarismo.

Em campanha desde o primeiro dia de mandato, Bolsonaro agarrou - com unhas e dentes; cargos e emendas; motociatas e ameaças de quartelada; ‘fake news’ e destruição de reputações - a oportunidade que lhe caiu no colo em 2018: a de ser o dono do campo político-ideológico que começa no centro democrático e vai à extrema-direita militarista, fascista e defensora de nazistas.

Com a máquina federal nas mãos, e o fisiologismo de sempre à disposição, exerceu o poder de dissuasão que enfraqueceu e inibiu potenciais adversários. Escapou do impeachment que abriria margem para que a terceira via se apresentasse com muito mais vigor do que o atual claudicante campo sem líderes, votos e unidade.

O caminho até as convenções assemelha-se a um martírio ou, a depender do otimismo, um conto de fadas. Cai a empolgação com Sergio Moro (Podemos) e logo cria-se um burburinho com a senadora Simone Tebet (MDB) para ver no que vai dar. Não que seja impossível.

Como bem argumentou o sociólogo e cientista político Antonio Lavareda, do Ipespe, em entrevista publicada pelo Valor, a terceira via comete o erro de uma ilusão de ótica. Deveria parar de se enxergar como um ponto central, equidistante, entre Lula e Bolsonaro, quando, na verdade, seus proponentes são a segunda via.

À exceção de Ciro Gomes (PDT), estão todos na direita ou centro-direita, segmento cuja liderança foi do PSDB de 1994 a 2018. Bolsonaro tomou de assalto, se não um campo inteiro conservador, a sua parte mais aguerrida, radical e surpreendentemente numerosa. Cerca de 25% lhe garantem hoje num eventual segundo turno. Se isso se confirmar, é mais uma pá de cal no padrão de competição que opôs petistas e tucanos por mais de duas décadas.

Em meio à rapidez dos fatos, vale a reflexão: como o PSDB permitiu que sua primazia fosse suplantada pelo bolsonarismo? Por que o PT, alvo de crises de corrupção de proporções muito maiores que o célebre escândalo do grão-tucano Aécio Neves, resistiu à tempestade? Teria o eleitor de centro-direita menos complacência com malfeitos?

Para o mesmo Lavareda, o PSDB, ao se alinhar com um partido conservador - o PFL, depois DEM e desde a semana passada União Brasil, após a fusão com o PSL - jamais imaginou que seria ultrapassado por uma força da direita. A aliança daria conta o suficiente de abarcar amplos interesses, numa estratégia “demoblicana”, para usar um neologismo baseado no sistema bipartidário estadunidense. Ou seja, teria uma face democrata, à esquerda, e outra republicana, à direita.

Não à toa, não foram poucos os analistas que apontaram que o Brasil tinha e tem uma forte agremiação progressista, o PT, mas não uma conservadora. Seria um sistema manco. O PSDB era um arremedo de partido de direita e aí residia uma fragilidade original da qual se tornaria vítima.

Nada, porém, que fosse determinante. O erro crucial de liderança de Aécio, ao contestar o resultado eleitoral de 2014, já se tornou consenso entre os pecados capitais cometidos pelo tucanato. Deslegitimar a vitória de Dilma Rousseff, sem evidência de fraude, abriu a caixa de Pandora para outras práticas que transpuseram os muros da boa convivência política e transformaram o jogo democrático numa guerra sem quartel. Campo aberto para o vale-tudo onde Bolsonaro é mestre na briga de rua.

O líder da facção que idolatra torturadores chutou os paus da barraca que sustentavam a representação da Nova República. Para Lavareda, o PT não foi derrubado porque os seguidos escândalos criaram “anticorpos” que imunizaram o eleitor do partido. “Como dizia Nietzsche, o que não me mata, me fortalece”, cita. A vacina para os simpatizantes do PT teve, ainda, o reforço de uma série de políticas públicas distributivas que se tornaram marcas de gestão.

Logo, a chave para explicar a diferente capacidade de resistir às crises pode ser resumida, para além de outras variáveis, a um fator preponderante: o PT enfrentou seus piores momentos enquanto estava à frente do governo federal; o PSDB, em contraste, encarou seu inferno astral, em 2017, quando já estava fora do Planalto havia 14 anos. Lançado 23 anos antes, o Plano Real era apenas uma distante lembrança para o eleitor tucano.

Bem-estar por bem-estar, as administrações do PT, especialmente de Lula, também entregaram resultados à população em matéria econômica. O PSDB teve seu legado enfraquecido na oposição e também quando voltou ao governo federal, ao se tornar satélite de Temer, num fisiologismo que se estendeu às votações em apoio a Bolsonaro.

Os erros estratégicos dos tucanos somam-se ao próprio e antigo perfil do partido. Liberal na economia, o PSDB sempre foi mais progressista na dimensão de costumes. Por esse flanco é que Bolsonaro invadiu e conquistou o eleitorado conservador.

Hoje chega a ser ingênuo lembrar do espanto que a instrumentalização do tema aborto pela campanha de José Serra provocou em 2010, dada a relevância que a questão de valores ganhou desde então. O que era tido como “jogo baixo” entrou definitivamente para o beabá da luta política, sobretudo após o bolsonarismo.

Assim como os tucanos viviam dos louros da estabilidade econômica e do Plano Real, e punham, até onde podiam, as questões morais para debaixo do tapete, Bolsonaro faz o inverso: exacerba a dimensão de valores para um eleitorado cujo desempenho da economia pouco importa para manter a popularidade do presidente.

Desse modo, a direita bolsonarista tem fragilidade tão grande ou maior que a sua versão tucana, posto que prioriza bem-estar ideológico à gestão econômica. Para quem se pergunta sobre o futuro do bolsonarismo, a história recente do PSDB, longe do poder, dá pistas e tem muito a dizer.

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