O Globo
Sabe-se que o Brexit, isto é, a retirada
britânica da União Europeia, foi um desastre político e econômico
autoinfligido. O filme “Munique: no limite da guerra”, de Christian Schwochow,
que estreou há pouco, sugere que deflagrou, também, um desastre moral. Nada
contra o envelope estético, de alta qualidade tanto nas ambientações de época
quanto nas atuações do trio de protagonistas formado por George MacKay, Jannis
Niewohner e Jeremy Irons (Chamberlain). O ponto é outro: o filme condensa uma
narrativa revisionista destinada a lavar as estrebarias da elite britânica.
Na Conferência de Munique, 30 de setembro de 1938, auge da política do apaziguamento, o francês Daladier e o britânico Chamberlain entregaram os Sudetos à Alemanha nazista, traindo os tratados de aliança firmados com a Tchecoslováquia. O ato desonroso proporcionou a Hitler um triunfo internacional maiúsculo, acelerando a marcha rumo à guerra mundial.
“Munique”, o filme, reescreve o episódio
como um lance genial de Chamberlain que, em cenário desesperado, teria ganhado
o tempo crucial para a preparação do confronto inevitável. A hora da vergonha
converte-se, assim, na hora da previdente sabedoria.
Ganhar tempo — a alegação foi usada, a
posteriori, pela historiografia stalinista como justificativa moral do Pacto
Germano-Soviético de agosto de 1939 que, durante os dois anos da ofensiva
ocidental de Hitler, garantiu-lhe uma retaguarda segura. “Munique” inspira-se
nos apologistas de Stálin, mas para promover uma patriotada britânica. Nos dois
casos, ficam na sombra as motivações de fundo dos pactos ignóbeis.
A URSS serviu-se do pacto com Hitler para
ocupar os Estados Bálticos e a parte oriental da Polônia. Chamberlain queria, de
Munique, bem mais que o aplauso fácil de uma nação assustada com a hipótese de
uma nova guerra europeia. Segundo a sua lógica estratégica, a entrega dos
Sudetos tchecos não só evitaria a guerra no ocidente europeu como precipitaria
a ofensiva alemã contra a URSS. O cálculo dele estava errado, como logo se viu,
mas isso não muda suas motivações.
Todos os fatos vieram à luz em 1999, numa
obra de Michael J. Carley baseada em extensiva pesquisa em arquivos russos e
ocidentais. Chamberlain nutria uma aversão à URSS muito maior que seu desprezo
pelo nazismo. O primeiro-ministro representava a visão de ampla parcela da
elite britânica, que enxergou em Hitler uma providencial ferramenta contra o
espectro do Estado Soviético. O “apaziguamento” era a troca de uma guerra
errada por uma guerra necessária. Os pacifistas queriam a carnificina — mas do
outro lado da Europa.
A vertente principal da historiografia
britânica jamais desculpou o primeiro-ministro da traição de Munique. Sabia-se,
bem antes da obra de Carley, que o conflito entre Churchill e Chamberlain
refletia as posturas contrastantes da elite britânica diante do nazismo.
“Munique”, o filme, resgata um fio narrativo minoritário que, em nome do
prestígio nacional, tenta ocultar as raízes políticas da conciliação com
Hitler. Até aí, nenhuma novidade. O curioso é o ressurgimento desse tipo
particular de revisionismo nas circunstâncias geopolíticas atuais.
“Cada um joga com as cartas que tem à mão”,
diz Chamberlain em “Munique”, sintetizando a tese do filme. Não existiria
nenhuma divergência conceitual com Churchill, mas apenas uma coleção
circunstancial de cartas diferentes. O primeiro, diante da precária preparação
militar, ganhou tempo, pagando o preço da desonra pessoal. O segundo lançou-se
à guerra inelutável, colhendo tanto as próprias glórias quanto as devidas ao
antecessor injustiçado.
“Munique”, suspeito, não é um ponto fora da
curva, mas uma revisão histórica que nasce no solo do Brexit, ou seja, do
orgulhoso isolamento britânico. “Este trono real de reis, esta ilha, esta ilha
do cetro, gema preciosa delineada num mar de prata”: o Reino Unido não salvou a
Europa apenas uma vez, com Churchill, mas duas, sucessivamente. A conferência
da traição teria sido o episódio inaugural da heroica saga de resistência à máquina
de guerra nazista. E viva a pós-verdade.
Tive que ler duas vezes para entender,conhecimento é tudo,quer dizer,quase tudo.
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