segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Entrevista| ‘Estratégia de Bolsonaro chegou ao seu limite’, analisa o cientista político Giuliano Da Empoli

Pesquisador franco-italiano avalia que crise da Covid-19, em meio à investida contra a ciência, esgotou apelo de discurso antissistema

Marlen Couto / O Globo, 6.2.2022

RIO — Ao documentar as estratégias para a ascensão de governos populistas no mundo, o cientista político Giuliano Da Empoli tem acompanhado os desdobramentos da gestão do presidente Jair Bolsonaro no Brasil. Em 2019, Bolsonaro terminava o seu primeiro ano de mandato com reprovação de 36% dos brasileiros, segundo o Datafolha, quando o pesquisador franco-italiano publicou no país, pela editora Vestígio, “Os engenheiros do caos”. No livro ele faz uma análise sobre como as fake news, teorias da conspiração e os algoritmos das plataformas digitais compõem uma engenharia que permitiu a eleição de nomes como Bolsonaro e do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Hoje, o cenário é bem diferente: Bolsonaro é rejeitado por mais da metade da população, enquanto se prepara para disputar a reeleição. Em entrevista ao GLOBO, o cientista político vê na impopularidade do presidente brasileiro o esgotamento do discurso anti-establishment durante a crise da Covid-19, alerta para a sofisticação na segmentação da propaganda política nas redes, e ressalta que é preciso transparência sobre como funcionam as plataformas.

Recentemente, vimos o apoio a líderes populistas cair após ocuparem cargos públicos. Trump não foi reeleito nos EUA. Bolsonaro enfrenta alta rejeição. Por que esses governos têm dificuldade em permanecer no poder?

Uma vez que esses líderes baseiam sua popularidade em uma rejeição ao establishment, é mais difícil manter sua popularidade quando estão no poder. Para superar esse problema, alguns deles, incluindo Trump e Bolsonaro, tentaram manter a chama acesa, adotando um estilo subversivo de governo, focando em inimigos como o Deep State (estrutura global de poder que seria responsável pelas decisões econômicas, segundo a teoria conspiratória QAnon) ou o Poder Judiciário. Por um tempo, essa estratégia foi bem-sucedida, mas a Covid-19 pôs um fim nisso. Quando a pandemia surgiu, o instinto subversivo de Trump e Bolsonaro os pressionou a lutar contra o establishment médico e científico, e o desastre absoluto que se seguiu foi demais até mesmo para muitos de seus apoiadores.

Bolsonaro enfrentará uma eleição após quatro anos como presidente do Brasil. É possível ser presidente e e ainda assim mobilizar o discurso anti-establishment?

Com a Covid, a lógica da estratégia anti-establishment chegou ao seu limite, e pode ser difícil para Bolsonaro fazer uma retomada até outubro. Na Itália, porém, tivemos alguém como Berlusconi (ex-primeiro-ministro), que foi capaz de perder duas eleições nacionais e voltar tantas vezes, porque, mesmo que ele tenha sido o líder que passou mais tempo no poder entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2010, conseguiu transmitir a impressão de que estava lutando contra o establishment e a “velha classe política”. A mesma coisa pode acontecer ao Trump. Então, quem sabe o que vai acontecer com Bolsonaro a longo prazo...

O senhor alertou em seu livro que líderes como Bolsonaro estão destinados a frustrar seus eleitores, mas têm um novo estilo que impacta as novas gerações. Esse “estilo colérico” continuará ?

Infelizmente, a degradação das normas para o discurso e debate público será um dos legados mais duradouros desses líderes. Os jovens de hoje estão sendo introduzidos na política em um clima de abuso verbal e polarização que teria sido impensável há apenas dez anos.

É mais importante para esses líderes ter o apoio de um pequeno grupo do que da maioria da população?

Os apoiadores radicais têm um papel fundamental na estratégia desses líderes. Eles produzem o buzz constante, os memes, especialmente online, que alimentam sua ascensão. Isso é algo muito novo: em vez de tentar obter uma maioria, entregando mensagens moderadas sobre as quais a maioria das pessoas poderia concordar, líderes como Trump e Bolsonaro inflamam grupos extremos e tentam empilhá-los de modo que atinjam um número crítico para formar uma parcela majoritária.

O uso de dados para explorar emoções como ódio e medo será ainda mais comum em eleições futuras?

A propaganda política online está ficando cada vez mais sofisticada e extrai o máximo não só do progresso tecnológico como do campo das ciências cognitivas. É claro que a política sempre foi baseada na exploração de emoções como ódio e medo, mas esta é a primeira vez que ela pode ser feita cirurgicamente, atingindo as pessoas uma a uma e enviando precisamente a mensagem certa que ressoará entre elas. Durante a campanha do Brexit, a equipe responsável pela saída do Reino Unido da União Europeia foi capaz de dizer aos amantes dos animais que a União Europeia não protege animais o suficiente e aos caçadores que os protege demais. Você não poderia fazer isso no passado.

Como líderes políticos não alinhados com ideias populistas podem reagir?

No caso das notícias falsas, é fundamental entender que, mesmo que sejam falsas, elas têm alguma forma de “verdade emocional” e correspondem à percepção de algumas pessoas sobre a realidade. Você não pode lutar contra isso apenas com a verificação de fatos. É preciso ser capaz de projetar uma visão, baseada em fatos reais, que também contenha uma forma de “verdade emocional” porque isso se encaixa na experiência real das pessoas.

Nos comunicamos adequadamente com adeptos de teorias da conspiração? Existe uma maneira de retomar o diálogo?

Mais do que simples notícias falsas, teorias conspiratórias prosperam porque “fazem sentido”, dão uma explicação sobre a realidade que produz uma ressonância emocional e criam um sentimento de pertencimento. Seguir algum tipo de teoria da conspiração permite que você faça parte de um grupo, como num culto religioso, e isso é valioso, especialmente para pessoas que são marginalizadas. É por isso que é tão difícil combater teorias conspiratórias. O mensageiro é crucial. Se você quer restabelecer o diálogo com esses grupos, precisa encontrar intermediários em quem confiam, como pessoas que costumavam fazer parte do grupo e mudaram de ideia.

Desde a publicação do seu livro, a pressão sobre as plataformas cresceu. Houve o bloqueio de Trump nas maiores redes. No Brasil, a Justiça discute o bloqueio do Telegram. Medidas como essas são uma forma de combater o populismo?

Os dois casos são diferentes, um sendo uma decisão unilateral de algumas plataformas para proibir um líder político e o outro um conflito real entre uma empresa e as autoridades judiciárias, mas ambos apontam para a mesma realidade: as plataformas privadas têm muito poder e pouca responsabilidade quando se trata de moldar o debate público. Elas precisam ser reguladas e o primeiro passo para fazer isso é impor transparência sobre a forma como funcionam, para que parem de ser caixas pretas misteriosas e poderosas no centro de nossas sociedades democráticas. 

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