Pesquisador franco-italiano avalia que crise da Covid-19, em meio à investida contra a ciência, esgotou apelo de discurso antissistema
Marlen Couto / O Globo, 6.2.2022
RIO — Ao documentar as estratégias para a
ascensão de governos populistas no mundo, o cientista político Giuliano Da
Empoli tem acompanhado os desdobramentos da gestão do presidente Jair Bolsonaro
no Brasil. Em 2019, Bolsonaro terminava o seu primeiro ano de mandato com
reprovação de 36% dos brasileiros, segundo o Datafolha, quando o pesquisador
franco-italiano publicou no país, pela editora Vestígio, “Os engenheiros do
caos”. No livro ele faz uma análise sobre como as fake news, teorias da
conspiração e os algoritmos das plataformas digitais compõem uma engenharia que
permitiu a eleição de nomes como Bolsonaro e do ex-presidente dos Estados
Unidos Donald Trump. Hoje, o cenário é bem diferente: Bolsonaro é rejeitado por
mais da metade da população, enquanto se prepara para disputar a reeleição. Em
entrevista ao GLOBO, o cientista político vê na impopularidade do presidente
brasileiro o esgotamento do discurso anti-establishment durante a crise da
Covid-19, alerta para a sofisticação na segmentação da propaganda política nas
redes, e ressalta que é preciso transparência sobre como funcionam as
plataformas.
Recentemente, vimos o apoio a líderes
populistas cair após ocuparem cargos públicos. Trump não foi reeleito nos EUA.
Bolsonaro enfrenta alta rejeição. Por que esses governos têm dificuldade em
permanecer no poder?
Uma vez que esses líderes baseiam sua popularidade em uma rejeição ao establishment, é mais difícil manter sua popularidade quando estão no poder. Para superar esse problema, alguns deles, incluindo Trump e Bolsonaro, tentaram manter a chama acesa, adotando um estilo subversivo de governo, focando em inimigos como o Deep State (estrutura global de poder que seria responsável pelas decisões econômicas, segundo a teoria conspiratória QAnon) ou o Poder Judiciário. Por um tempo, essa estratégia foi bem-sucedida, mas a Covid-19 pôs um fim nisso. Quando a pandemia surgiu, o instinto subversivo de Trump e Bolsonaro os pressionou a lutar contra o establishment médico e científico, e o desastre absoluto que se seguiu foi demais até mesmo para muitos de seus apoiadores.
Bolsonaro enfrentará uma eleição após
quatro anos como presidente do Brasil. É possível ser presidente e e ainda
assim mobilizar o discurso anti-establishment?
Com a Covid, a lógica da estratégia
anti-establishment chegou ao seu limite, e pode ser difícil para Bolsonaro
fazer uma retomada até outubro. Na Itália, porém, tivemos alguém como
Berlusconi (ex-primeiro-ministro), que foi capaz de perder duas eleições
nacionais e voltar tantas vezes, porque, mesmo que ele tenha sido o líder que
passou mais tempo no poder entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2010,
conseguiu transmitir a impressão de que estava lutando contra o establishment e
a “velha classe política”. A mesma coisa pode acontecer ao Trump. Então, quem
sabe o que vai acontecer com Bolsonaro a longo prazo...
O senhor alertou em seu livro que líderes
como Bolsonaro estão destinados a frustrar seus eleitores, mas têm um novo
estilo que impacta as novas gerações. Esse “estilo colérico” continuará ?
Infelizmente, a degradação das normas para
o discurso e debate público será um dos legados mais duradouros desses líderes.
Os jovens de hoje estão sendo introduzidos na política em um clima de abuso
verbal e polarização que teria sido impensável há apenas dez anos.
É mais importante para esses líderes ter o
apoio de um pequeno grupo do que da maioria da população?
Os apoiadores radicais têm um papel
fundamental na estratégia desses líderes. Eles produzem o buzz constante, os
memes, especialmente online, que alimentam sua ascensão. Isso é algo muito
novo: em vez de tentar obter uma maioria, entregando mensagens moderadas sobre
as quais a maioria das pessoas poderia concordar, líderes como Trump e
Bolsonaro inflamam grupos extremos e tentam empilhá-los de modo que atinjam um
número crítico para formar uma parcela majoritária.
O uso de dados para explorar emoções como
ódio e medo será ainda mais comum em eleições futuras?
A propaganda política online está ficando
cada vez mais sofisticada e extrai o máximo não só do progresso tecnológico
como do campo das ciências cognitivas. É claro que a política sempre foi
baseada na exploração de emoções como ódio e medo, mas esta é a primeira vez
que ela pode ser feita cirurgicamente, atingindo as pessoas uma a uma e
enviando precisamente a mensagem certa que ressoará entre elas. Durante a
campanha do Brexit, a equipe responsável pela saída do Reino Unido da União
Europeia foi capaz de dizer aos amantes dos animais que a União Europeia não
protege animais o suficiente e aos caçadores que os protege demais. Você não
poderia fazer isso no passado.
Como líderes políticos não alinhados com
ideias populistas podem reagir?
No caso das notícias falsas, é fundamental
entender que, mesmo que sejam falsas, elas têm alguma forma de “verdade
emocional” e correspondem à percepção de algumas pessoas sobre a realidade.
Você não pode lutar contra isso apenas com a verificação de fatos. É preciso
ser capaz de projetar uma visão, baseada em fatos reais, que também contenha
uma forma de “verdade emocional” porque isso se encaixa na experiência real das
pessoas.
Nos comunicamos adequadamente com adeptos
de teorias da conspiração? Existe uma maneira de retomar o diálogo?
Mais do que simples notícias falsas,
teorias conspiratórias prosperam porque “fazem sentido”, dão uma explicação
sobre a realidade que produz uma ressonância emocional e criam um sentimento de
pertencimento. Seguir algum tipo de teoria da conspiração permite que você faça
parte de um grupo, como num culto religioso, e isso é valioso, especialmente
para pessoas que são marginalizadas. É por isso que é tão difícil combater
teorias conspiratórias. O mensageiro é crucial. Se você quer restabelecer o
diálogo com esses grupos, precisa encontrar intermediários em quem confiam,
como pessoas que costumavam fazer parte do grupo e mudaram de ideia.
Desde a publicação do seu livro, a pressão
sobre as plataformas cresceu. Houve o bloqueio de Trump nas maiores redes. No
Brasil, a Justiça discute o bloqueio do Telegram. Medidas como essas são uma
forma de combater o populismo?
Os dois casos são diferentes, um sendo uma
decisão unilateral de algumas plataformas para proibir um líder político e o
outro um conflito real entre uma empresa e as autoridades judiciárias, mas
ambos apontam para a mesma realidade: as plataformas privadas têm muito poder e
pouca responsabilidade quando se trata de moldar o debate público. Elas
precisam ser reguladas e o primeiro passo para fazer isso é impor transparência
sobre a forma como funcionam, para que parem de ser caixas pretas misteriosas e
poderosas no centro de nossas sociedades democráticas.
Ótima entrevista,curta e direta.
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