O Globo
Não, De Gaulle jamais disse que o Brasil
não era um país sério. A frase é de um brasileiro, Carlos Alves de Souza Filho,
embaixador em Paris por ocasião da “Guerra da Lagosta”, entre Brasil e França —
guerra que, como a Batalha de Itararé e a viúva Porcina, foi sem nunca ter
sido.
Também não houve, por enquanto, a invasão da Ucrânia — evitada pela providencial ida de Bolsonaro à Rússia. Pelo menos é o que se deduz do vídeo em que o presidente Putin declara: “Hoje estava prestes a atacar a Ucrânia quando conversei com o presidente Jair ainda em voo. Ele, que veio de um lugar tão longe, disse: ‘Ô Vladi, o mundo é nossa casa. Deus está acima de todos’. Isso tocou na minha alma. Portanto agora decidi retirar minhas tropas da fronteira. E parar essa guerra. Agradeço de coração, presidente brasileiro”.
O vídeo, logo desmentido pelas agências de
checagem, era sobre o Dia Internacional da Mulher, e a ele tinham sido
adicionadas legendas delirantes.
Será que era mesmo preciso desmentir um
meme tão óbvio?
Era. Porque chegamos a um estágio de
desconexão da realidade em que fatos são renegados e memes soam críveis. Se
muita gente se divertiu com o sarcasmo (“Ô Vladi” e a alma sensível do Putin
eram pistas inequívocas), outro tanto exultou com o poder de persuasão do seu mito.
Tornou-se arriscado usar ironia num país em
que o improvável é mais que plausível, e o impossível acontece com regularidade
espantosa.
A instituição de um comitê de notáveis,
representativo de todas as minorias sociais, com a função de avaliar, previamente,
conteúdos problemáticos da mídia — é piada ou proposta para levar a sério?
A expressão “leite materno” precisar ser
banida, por seu caráter transfóbico (afinal, homens trans também podem
amamentar) — é reivindicação justa ou amostra dos despropósitos a que as pautas
identitárias podem conduzir?
“O Brasil não precisa de reformas.” Lula
disse isso sóbrio ou lhe atribuíram esse disparate com o intuito de insinuar
uma recaída no vício?
Na Hungria, onde se encontrou com seu
congênere Viktor Orbán, Bolsonaro declarou que não existe destruição da
Amazônia. Foi um surto ou erro de tradução?
Tudo é igualmente absurdo e verossímil. Daí
nunca se ter muita certeza de estar diante do artigo de uma acadêmica feminista
ou de outra diatribe da Jessicão, personagem humorístico. Se a manchete é de um
jornal tradicional ou do Sensacionalista. Se a crítica do filme “Marighella”
foi feita por um cinéfilo ou um pândego. Se as obras que retratam Bolsonaro com
criancinhas, águias, Jesus e capivaras são uma ode desvairada ou um deboche.
Devemos estar numa zona cinzenta entre a
pós-verdade (daí tanta gente acreditar em mortes decorrentes da vacina e
duvidar daquelas provocadas pelo vírus) e o metaverso analógico (uma
irrealidade toscamente aumentada). Entrincheirados numa espécie de Guerra da
Lagosta 2.0, aquela em que não se disparou um tiro, cuja única consequência foi
vincular para sempre o general De Gaulle a nossa mambembe autoimagem.
O Brasil está virando um caso sério.
O Brasil virou foi do avesso.Algumas pautas da esquerda são,realmente,risíveis.
ResponderExcluirAlgumas da extrema-direita são piores por serem perigosas.