quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Elio Gaspari: A carta chinesa virou um mico

Folha de S. Paulo / O Globo

Há 50 anos, Richard Nixon descia em Pequim

Há meio século, o presidente americano Richard Nixon desembarcou em Pequim, coroando uma espetacular reaproximação com a China. Teve de tudo: uma viagem secreta de Henry Kissinger, seu assistente para assuntos de segurança nacional, e convites a equipes de pingue-pongue.

Nixon foi recebido por Mao Tsé-Tung, o Grande Timoneiro da Revolução Chinesa. A fotografia do encontro correu o mundo. Poucos sabiam que Mao estava chumbado, com dificuldade para falar e respirar. (Na sala ao lado, guardava um respirador portátil mandado por Kissinger.)

Nessa reviravolta diplomática, os Estados Unidos jogaram súditos ao mar e acabaram com o isolamento da China. Meses antes, Deng Xiaoping saíra do ostracismo e havia começado uma lenta, segura e gradual ascensão ao poder, transformando a economia chinesa na segunda potência do mundo. Para os americanos, o jogo seria lógico: acabado o isolamento, e aberta a economia, as liberdades democráticas viriam junto. Em 1989, ao ordenar a repressão às manifestações da Praça da Paz Celestial, Deng mostrou que as coisas não seriam bem assim. De lá para cá, a China cresceu e, com ela, a repressão política. Em 1994, pouco antes de morrer, Nixon duvidou de sua política, coisa rara em políticos, raríssima nele:

— É possível que tenhamos criado um Frankenstein.

Bingo. Aos 50 anos da visita de Nixon a Pequim, vê-se que os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin juntaram-se contra os Estados Unidos na questão ucraniana. Reiteraram uma amizade “sem limites” e condenaram “uma maior expansão da Otan”. A vitória de Nixon em 1972 ajudou a emparedar a União Soviética. Meio século depois, o Frankenstein chinês alinhou-se com a Rússia. O coringa era um mico.

Em 1972, Richard Nixon fazia uma política externa espetaculosa, com reviravoltas imprevisíveis. Tinha a seu lado Henry Kissinger, um mestre da diplomacia cenográfica. Saía com artistas de cinema nas noites de sexta-feira em Nova York e, horas depois, voava incógnito a Paris, onde se encontrava secretamente com negociadores vietnamitas. (Ficava no apartamento do general Vernon Walters, velho conhecido dos brasileiros, que acompanhou das batalhas na Itália em 1945 à conspiração contra o presidente João Goulart, em 1964.)

Nixon era um sujeito dinâmico, audacioso e antipático. O presidente Joe Biden pode ser simpático, mas nada tem de dinâmico, muito menos de audaz. Seu secretário de Estado, Antony Blinken, é uma flor da burocracia anódina de Washington.

No ano que vem, Henry Kissinger completará seus 100 anos. Sua fama já não é a mesma. Afinal, em 1971 ele pediu aos chineses que lhe dessem “um intervalo decente” para sair do Vietnã e, em 1975, a tropa saiu deixando para trás os aliados. Mesmo assim, sabe do que fala. Há dias ele escreveu um artigo valioso por duas frases:

1) “A demonização de Vladimir Putin não é uma política, é um álibi para sua ausência”;

2) “A Ucrânia não deve entrar na Otan”.

Ele ecoa as palavras de George Kennan, o diplomata que desenhou a política americana em relação à União Soviética:

—Uma expansão da Otan será o maior erro da política americana em todo o período posterior ao fim da Guerra Fria.

Kennan escreveu isso em 1997. Morreria em 2005, aos 101 anos.

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