quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Vinicius Torres Freire: A guerra de Putin e Brasil

Folha de S. Paulo

Rússia pode ter meios de bancar sanções e prolongamento da crise na Ucrânia

As retaliações do "Ocidente" contra a Rússia divulgadas até agora não devem tirar o sono do Vladimir Putin, que talvez nem durma. Quem sabe seja um Vampiro Highlander movido a venenos energéticos da defunta, mas viva, KGB.

Além da piada, e daí? Se Putin pode aguentar as sanções, pode ainda por muito tempo comer a Ucrânia pelas bordas e, assim, manter o salseiro na política e na finança do "Ocidente".

Se por mais não fosse, isso nos interessa, habitantes do extremo ocidente, periferia do mundo, do Brasil. Para contínua e quase geral surpresa, o real e a Bolsa continuam a se valorizar, a subir dos buracos profundos onde a epidemia, a dívida e Jair Bolsonaro haviam jogado os preços dos ativos financeiros do país.

Até quando dura esse amor do dinheiro pelas xepas financeiras do Brasil? Quanto pode durar com uma crise fervendo baixo e por tempo considerável na Ucrânia? Até quando pode durar, dado que teremos alta de juros nos EUA a partir do mês que vem e campanha eleitoral mais séria a partir de abril?

A ameaça de guerra não fez coceira na calmaria financeira do Brasil, relativa e recente, é bom lembrar. Mas convém não descuidar do rolo na pobre Ucrânia.

Joe Biden disse que "cortou" o financiamento da Rússia nos Estados Unidos. Não é bem assim. Instituições financeiras americanas não podem comprar dívida nova do governo russo faz algum tempo; agora, não vão poder negociar títulos de dívida no mercado secundário. Não há sanção à vista para empresas privadas (fora aquelas que façam mutreta com Putin, financiem guerra, assassinato, envenenamento etc.).

Apenas um sexto da dívida externa russa é do governo (e equivale a 5% do PIB, US$ 80 bilhões); no mais, é privada. As empresas têm tido e terão mais dificuldade de se financiar e refinanciar, decerto.

Falta de acesso a crédito externo novo pode dar problema, a médio prazo (como uma desvalorização do rublo, entre outros). Mas a Rússia tem superávit externo (mais de 2% do PIB) e US$ 600 bilhões de reservas. Aguenta o tranco; Putin, um autocrata, aguenta ainda mais, a não ser que a elite russa (militares, oligarcas) tenha poder de botá-lo para fora, coisa do que o "Ocidente" não parece fazer a menor ideia.

Se Putin pode pagar para quase anexar um pedaço da Ucrânia (parte das republiquetas separatistas de Donetsk e Lugansk), talvez tente ver quanto custa outro lance de audácia temerária. E a crise se arrasta: petróleo mais caro, talvez trigo, milho, soja e óleo de cozinha também, mais inflação. Rússia e Ucrânia têm peso nos mercados mundiais de grãos e de alguns metais também, para nem falar na energia, claro.

O mercado financeiro americano já está malparado. Inflação, gasolina cara, fiasco no Afeganistão e peitadas de Putin derrubaram e derrubam o prestígio de Joe Biden, de resto. O que vai fazer de mais drástico?

Sanções que ameacem o fornecimento de gás e petróleo para a União Europeia podem dividir os europeus, pois a dependência da energia russa e a capacidade de financeira de aguentar trancos é variada. Há, pois, pelo menos risco de haver opiniões diferentes do que fazer com os russos.

Se não se meter em um conflito aberto de grande escala, um risco e um custo enormes, Putin pode levar a guerra de fricção adiante. Não é uma previsão, é uma hipótese, uma situação que pode causar danos mais relevantes na economia mundial.

Sem estratégia e sem instrumentos ou armas para dissuadir a Rússia sem causar estrago geral, para si inclusive, o "Ocidente" talvez tenha de tourear Putin por muito tempo, com os estragos previsíveis. Essa conta chegaria também à nossa porta.

 

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